CHAMADA PARA O NÚMERO TEMÁTICO: ASPECTOS ÉTICO-ESTÉTICOS DO SIGLO DE ORO E SUAS REVERBERAÇÕES NA CONTEMPORANEIDADE IBERO-AMERICANA
O filósofo se refere à vida de aventuras de Cervantes, a qual o levou a vários lugares como Itália e África. Se sua vivência teve muitas trajetórias, sua condição de espanhol nunca deixou de ser o fundamento de seu ethos. Sabendo que cada experiência de vida fora da Espanha significou uma sorte distinta, Marías considera que a liberdade do escritor espanhol que o levou a ter tantas experiências foi a base de sua conduta, a qual semeou cada ventura. Assim, o filósofo argumenta: “Si la españolía es el cauce de todas las trayectorias, podemos decir que la libertad es la cualidad que tienen todas ellas, la forma de su consistencia. Y es también un carácter permanente, aunque no tiene esa realidad de encontrarse desde luego, de instalación; diríamos que a la libertad le pertenece más bien un carácter proyectivo: desde su condición primaria de español, Cervantes se proyecta hacia la libertad; o, si se prefiere, se proyecta libremente hacia todas las metas que van surgiendo en su vida.” (MARÍAS, 2003, s.p.)
Dessa forma, destacamos duas vertentes filosóficas importantes do Siglo de Oro decorrentes dessa españolía: o apreço pela liberdade como uma condição para o ethos do artífice da própria ventura, ou seja, o tão peculiar modo de filosofar com a inventiva e com as referências do real; e a abertura para as experiências sem cálculo, ou, em outras palavras, o profundo compromisso com o instante, tão caro para a corrente mística. Debruçando-nos ainda sobre a imagem escolhida por Marías, a concepção do homem como artífice e da vida como ventura admite o insondável da existência e aceita a plasticidade humana nesta jornada, concebida como teatro do mundo no contexto de Cervantes. Nesse sentido, e sob o ponto de vista da ética, é importante salientar a percepção das vidas mundanas como papéis a ser representados neste plano finito, cópia vã e efêmera, do mundo divino.
Julián Marías assevera que a literatura e a cultura espanholas herdaram esse apreço pelo instante e pelo pensamento fronteiriço entre inventiva e realidade de maneira desigual, motivo pelo qual intitula seu país atual como discontinua España cervantina. Esse modo de ser, pensar e criar reverbera na América Latina. Um interessante estudo sobre as peculiaridades da narrativa insólita no continente defende justamente o fato de se tratar de uma ética e de uma estética tributárias do Siglo de Oro. O crítico literário argentino Carlos Gamerro denomina ficciones barrocas algumas narrativas hispano-americanas contemporâneas comumente analisadas como fantásticas. Gamerro atribui a característica barroca de ficção a Cervantes e a Calderón de la Barca. Com isso, explica que escritores como Borges, Bioy Casares, Cortázar, Silvina Ocampo, entre outros, são, na verdade, autores de ficções as quais, assim como a ficção barroca, constroem um jogo de estruturas narrativas, de personagens e do referencial de real universal para apostar no potencial da plasticidade humana, o que Nietzsche, posteriormente, propõe como estética da existência, ou seja, fazer da própria vida uma obra de arte. Gamerro argumenta que, assim como Cervantes e Calderón, esses escritores têm “una adicción o afición al juego de intercambiar, plegar o mezclar los distintos planos de los que la realidad se compone” (GAMERRO, 2010, p.7).
A presente chamada pretende reunir artigos que apresentem reflexões sobre o Siglo de Oro ou sobre suas reverberações na contemporaneidade ibero-americana. Nesse sentido, interessa-nos a discussão sobre a capacidade plástica da vida humana possível de ser efetivada, ética e esteticamente, pelo jogo da ficção, uma proposição da tradição humanista espanhola, marcada pela indissociável fusão entre literatura e filosofia. Destacamos alguns temas no campo da ética e da estética, importantes para a discussão sobre as contribuições do Siglo de Oro:
- O homem como artífice de sua própria ventura: debate sobre ética e estética durante o período e seus desdobramentos ao longo do tempo;
- O profundo compromisso com o instante: a mística cristã e a secular;
- O teatro do mundo;
- Inventiva e Realidade;
- Literatura como Filosofia – mirada mediterrânea;
- Geração de 27 e Vanguardas;
- Humanismo Secular – Transcendência na imanência;
- O insólito e as ficções barrocas na narrativa ibero-americana.