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BONDADE, SUBSTANTIVO FEMININO: ESBOÇO PARA UMA HISTÓRIA DA BENEVOLÊNCIA E DA FEMINILIZAÇÃO DA BONDADE

Ana Paula Vosne Martins

Resumo


Este artigo trata do processo de feminilização das ações de socorro, proteção e assistência aos pobres e a outras categorias de pessoas em situação de fragilidade, desamparo e abandono. A organização dos cuidados com os chamados desafortunados tem sido historicamente uma ação dispensada pelos poderosos, associada à sua capacidade de prover e de socorrer aqueles que batiam às suas portas pedindo abrigo temporário, víveres ou remédios para seus males, ou então aos religiosos, de quem se esperava a caridade para com os sofredores de toda espécie. Numa visão de mundo profundamente marcada pela religião cristã, o gênero não hierarquizava nem a dádiva, nem a caridade, associadas ao poder e ao prestígio das famílias e da religião, operando e adquirindo sentido no interior de uma lógica simbólica do sangue, das famílias e da esfera do sagrado. A bondade, portanto, adquiria sentido e significado numa ordem hierárquica mais estável e intimamente relacionada às capacidades distributivas do poder patriarcal e religioso. O gênero passou a desempenhar um papel importante nesta economia da dádiva quando os cuidados e o conjunto de ações e de significados a eles associados foram ressignificados por novos discursos na modernidade, fundados numa reorganização dos espaços, dos sujeitos, das práticas sociais e dos valores e comportamentos. Desde meados do século XVIII e especialmente a partir do século XIX, observa-se a configuração de espaços, de práticas e de sentimentos definidores de subjetividades consideradas femininas, associadas ao amplo terreno moral dos cuidados. Tal processo de generificação dos cuidados se articula ao afastamento e posterior exclusão das mulheres dos espaços públicos, processo este que se configura nas sociedades ocidentais modernas. As mulheres das elites e das classes médias passaram a ser associadas às virtudes regeneradoras da ordem moral e social e a uma concepção natural de bondade, altruísmo e dedicação aos necessitados, valores presentes tanto nas ações de motivação caritativa quanto na organização racionalizada da filantropia, na definição e implementação das políticas assistenciais e na organização das profissões femininas criadas a partir da experiência heterogênea dos cuidados.

This article deals with the process of feminization of relief, protection and assistance actions to the poor and to other categories of people in situations of fragility, helplessness and abandonment. The organization of the care of the so called unfortunate has historically been an action given by the powerful, associated with their ability to provide and to assist those knocking at their doors asking for temporary shelter, food or medicines for their ailments, or by religious, from whom charity for sufferers of all kinds was expected. In a deeply marked by the Christian religion worldview, the gender did not prioritize gift nor charity, associated with the power and prestige of the families and religion, operating and acquiring sense within a symbolic logic of the blood, of the families and the sacred sphere. The goodness therefore acquired sense and meaning in a hierarchical order more stable and closely related to the distributive capabilities of patriarchal and religious power. The gender went on to play an important role in this economy of the gift when the care and the set of actions and of meanings associated with them were redefined by new discourses in modernity, founded on a reorganization of the spaces, subjects, social practices and values and behaviors. Since the mid-18th century and especially from the 19th century on there is a configuration of spaces, practices and subjectivities defining feelings considered feminine, associated with the broad moral field of care. Such gendering process of care articulates the removal and subsequent exclusion of women from public spaces, this process represented in modern Western societies. The elite and middle class women began to be associated with the regenerative virtues of moral and social order and with a natural conception of goodness, unselfishness and dedication to those in need, values present in the charitable motivation actions, in rationalized organization of philanthropy, in the definition and implementation of assistance policies and in the organization of professions for women created from the heterogeneous care experience.


Palavras-chave


sentimentos; cuidados; gênero; filantropia.

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DOI: http://dx.doi.org/10.5380/his.v59i2.37037