Chamada para publicação Cadernos-PET v.22, edição Psicanálise e Filosofia.

Exórdio do momento oportuno

A mãe de todos os poetas está presa no banheiro feminino da Faculdade de Filosofia e Letras – com os pés sobre a latrina, a calcinha algemando suas canelas magras –, como que prestes a parir. Ela ouve as passadas, cada vez mais próximas, de um soldado que vasculha o prédio. O vento sopra entre as flores de papel, mas ninguém pode escutá-la. Sabemos apenas que, caso a porta seja forçada, ela está disposta a resistir, como se aquele mictório fosse o último reduto de toda autonomia universitária na América Latina. Enquanto ela resiste, insubmissa, neste território que nomeia e sustenta a própria obediência, abre-se então uma disputa, a qual chamaremos, simplesmente, momento oportuno.

Está em jogo a maneira com que a Filosofia e a Psicanálise dispõem seus objetos, desde diferentes pontos cegos: de Ulisses a Ulisses, de Édipo-Rei ao Anti-Édipo, ou ainda, de toda história que faz marca na subjetividade a cada marca que determina, concretamente, o destino do sujeito. Está em disputa não apenas o sentido dos fatos, dos traumas e dos fantasmas, mas os termos e as condições de nosso próprio exílio, inapropriável, sempre em disputa. Em nosso auxílio, por outro lado, está aberto o espaço de escuta, permeado pela memória: ambígua, instável e confusa, mas insubmissa: com os pés sobre a latrina, prestes a parir.

Partimos então desse exórdio: em dezembro de 1968, o exército mexicano cercou o prédio da Facultad de Filosofía y Letras, da UNAM, e a estudante uruguaia Alcira Soust esteve exilada no banheiro do quarto andar por oito dias. Os fatos, em busca de sentido, encontram no relato do chileno Roberto Bolaño o próximo capítulo: Auxilio Lacouture, a Mnemosyne latino-americana, mãe de todos os poetas, está presa no banheiro da universidade. Ela conhece o passado, o presente e o futuro, mas ninguém pode escutá-la. É o próprio vento que sopra entre as flores de papel.

Mas Auxilio não é apenas a mãe de todos os poetas, senão uma verdade escrita com o corpo. Pois, as marcas, insistimos, não se cansam de determinar, concretamente, o destino do sujeito. Talvez por isso, uma colega sua, Ruth Pesa, em entrevista à rádio UNAM, em 2018, tenha declarado que Alcira tenía una figura muy imponente, alta, delgada; (siempre andaba limpia y ella se encargaba de hacer el jardín de la facultad, donde plantaba rosas). Pero tenía una enfermedad que nosotros no podíamos controlar… siempre pegando carteles de papel con sus dibujos por todos lados, de repente gritando… no estaba bien de la cabeza. [Ambígua, instável e confusa, mas insubmissa].

Alcira, cujo nome remete à origem espanhola, e quer dizer “a ilha” (al-ǧazīra), nos convoca a romper a ordem de ferro. Através do auxílio de sua figura – sobre a latrina e prestes a parir –, vemos essa metáfora magnífica, que é a metáfora do amor, aquela que pede para parirmos o filho que não temos. Pois, do contrário, é a ordem dos uns sozinhos, ilhados, no trono herdado da colônia: de onde sabemos quem não somos, resistimos.

Eis então o convite: desta latrina que nomeia e sustenta a própria desobediência, abre-se então uma disputa, a qual chamaremos, simplesmente, momento oportuno.

Quem chama?

A edição Psicanálise e Filosofia da revista Cadernos-PET Filosofia UFPR é fruto do ciclo de estudos, enraizado pelo grupo PET, entre 2020 e 2021, cuja tutoria coube ao Leandro Neves Cardim, ao Luan Corrêa da Silva e ao Antonio Edmilson Paschoal.

Esse ciclo de estudos teve como cerne o conceito de Pulsão, a partir dos escritos de Freud e Lacan, até se ramificar em Deleuze e Guattari, mas não apenas. Em uma rápida consulta às atas desses encontros, estão presentes: Schopenhauer, Merleau-Ponty e Machado de Assis; Pascal, Adorno e García Márquez; Foucault, David-Ménard e Butler; Comte, Marx e Dunker; Nietzsche, Andreas-Salomé e Lispector; Aristóteles, Austin e Cassin; Ésquilo, Bergson, Benjamin e essa lista se multiplica, o que, pensamos, apenas reafirma a fertilidade de tal encontro.

Tendo como tema Psicanálise e Filosofia, a publicação convida pesquisadorxs do âmbito da graduação e da pós-graduação, tanto de Filosofia como de suas áreas afins, e incentiva a publicação de textos originais em formato de artigos, resenhas ou traduções.

Cadernos-PET Filosofia é um periódico acadêmico, ligado ao Departamento de Filosofia da UFPR, e está sediada no sétimo andar do edifício Dom Pedro II. Feita por estudantes e para estudantes, através da gestão ativa do Grupo PET, foi publicada pela primeira vez em 1999. A revista é avaliada pelo sistema Qualis, da CAPES, com revisão por pares às cegas, e todas as suas edições estão disponíveis, na íntegra. É gratuita para quem publica e para quem lê.