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Resenha

VIAL, Jean. Jogo e Educação. : as ludotecas. Tradução de: FERREIRA, Maria. Petrópolis: Editora Vozes, 2015

O presente livro, pertencente à coleção "Clássicos do Jogo", da Editora Vozes, foi lançado originalmente em língua francesa com o título de "Jeu et éducation: les ludothèques ", no ano de 1981, pela editora P.U.F, Paris. No ano de 2015, o livro foi traduzido por Maria Ferreira e está na sua primeira edição em língua portuguesa.

Vale ressaltar que este livro colabora significativamente com o debate concernente ao jogo no contexto da Educação Escolar, uma vez que o autor toma como ponto de partida, para suas reflexões, a denúncia da dicotomia jogo-educação, acusando a escola de preterir o tempo lúdico, como se o jogo e a brincadeira fossem algo incompatível com a própria instituição.

Destarte, o objetivo do autor é refletir sobre as questões supracitadas, intentando validar a presença do jogo na escola (e diante da sociedade) como algo "[...] indispensável ao desenvolvimento físico, psicológico, moral e até mesmo social da criança" (p. 238), e, igualmente, um modo de equilibrar a vida (entre o jogar e o trabalhar) e de preservar a expressividade humana a partir do lúdico.

Vial também defende que a sociedade vive um tempo de canalização do lúdico, pois há um aumento constante nas práticas de lazer. Dessa forma, tornou-se urgente a educação de crianças para o lúdico, assim como das famílias, das associações culturais e/ou de outras instituições (escola, hospitais, casas de reclusão, etc.). Um lugar privilegiado para tal tarefa seria as ludotecas, concebidas pelo autor como um espaço social próprio à infância, em que concatena num mesmo ambiente a liberdade, a expressividade, o diálogo e o prazer.

Por outro lado, o autor depreende que sem a escola, essa educação é incompleta. Portanto, o brincar pelo brincar, o jogo educativo e/ou as outras formas de brinquedo no contexto escolar podem até parecer questionáveis, entretanto, não se pode negar uma educação do/pelo jogo enquanto forma de prazer, expressividade, resistência e libertação.

Nesse sentido, o livro é dividido em três partes (atreladas à Introdução, Conclusão e Referências): "O jogo: antecedentes e características"; "O brinquedo"; e "A escola e os jogos".

Na primeira parte, intitulada de "O jogo: antecedentes e características", Vial elabora um tratado geral sobre o jogo, trazendo ao debate autores de diferentes áreas de conhecimento (Psicologia, Filosofia, Sociologia, entre outras), tais como Karl Groos, Frederik Buytendijk, Jean Piaget, Herbert Spencer, Friedrich Schiller e Roger Caillois. Essa parte é dividida em quatro capítulos: História e Geografia do jogo; Teorias e funções do jogo; Efeitos do jogo; e Os "jogos" sem brinquedos.

No primeiro capítulo, o autor defende que a história e a geografia do jogo permitem constatar que o jogo é próprio da condição humana, portanto, é mais natural e profundo do que a própria educação, já que esta última engendra, amiúde, a criação do espírito que conduz ao artificial. Assim, tal faceta possibilita encetar uma discussão sobre as "funções do jogo".

No segundo capítulo, Vial se empenha em traçar as principais teorias e funções do jogo, a partir de uma análise concernente ao pensamento de intelectuais que se dedicaram a estudar o jogo, tais como: Schiller, Spencer, Buytendijk, Stanley-Hall e Gross. Ademais, de modo abreviado, elabora um esboço das concepções de jogo segundo a Psicologia, a Psicanálise e a Sociologia. Entrementes, Vial não tão somente se dedica à análise, mas, igualmente, à crítica. Destarte, o autor busca caracterizar o jogo de uma forma mais globalizante, no nível das interações (fisiológicas, psicológicas e/ou sociais), visando tergiversar das sínteses mecânicas e superficiais produzidas sobre o jogo.

O terceiro capítulo é subdividido em cinco seções. Sumariamente, todas elas se dedicam em explanar os efeitos profícuos do jogo na esfera corporal, mental, social, cultural e moral. Ao passo que o autor elucida os efeitos do jogo, também traz características que estruturam e classificam o jogo. Para tanto, Vial coaduna diferentes perspectivas teóricas (Filosofia, Sociologia e Psicologia) que, por sua vez, o permite findar seu capítulo sintetizando que o jogo é fenômeno, movimento e estrutura.

O quarto capítulo é subdividido em quatro seções. Resumidamente, o autor busca estabelecer relações entre o lúdico e as atividades típicas das crianças e jovens, tais como: cinema, teatro, escrita, literatura e televisão. Vale dizer que essas atividades lúdicas são classificadas pelo autor como "jogos sem brinquedos" e, ademais, são imprescindíveis na educação do indivíduo.

Na segunda parte, Vial se dedica a analisar o brinquedo, tomando como pressuposição a tese de que o jogo e o jogador se "materializam" no brinquedo, isto é, "nas reações perceptíveis desse à ação do jogador". (p. 102). Além disso, assevera que "[...] a unicidade do brinquedo caracteriza o jogo, assim como sua especificidade define um jogo". (p. 102). Em outros termos, o autor considera que as ações do jogador (jogar) se concentram no uso correto e eficaz do brinquedo. Enfim, analisa igualmente os problemas levantados pela produção e venda de brinquedos e, mais especificamente, o importante papel dos "brinquedos por si mesmos" (uso livre do brinquedo), ou seja, a vivência lúdica das crianças nas ludotecas.

Essa parte é dividida em cinco capítulos: O brinquedo, sua história e sua geografia; Finalidades e tipologia do brinquedo; A fabricação e a venda do brinquedo; O educador diante do brinquedo; e Os brinquedos por si mesmos: as ludotecas.

No primeiro capítulo, Vial contesta a possibilidade de uma história dos brinquedos, uma vez que cada brinquedo possui sua própria história. Em contrapartida, as tentativas de inventariar a história de um brinquedo, em particular, esbarram nas duas historicidades presentes que o brinquedo enfrenta: a história da espécie humana e a história do próprio jogador. Subterfugindo desse paradoxo, o autor se sustenta nas visões pluralistas atinentes ao brinquedo, sob a égide da Etnografia, particularmente, das teorias de jogo e brinquedo ideadas por Robert Jaulin.

O segundo capítulo é subdividido em duas seções: "O brinquedo e a expressão do prazer" e "O brinquedo e a afirmação da pessoa". Nesse capítulo, o autor parte do pressuposto de que "[...] um brinquedo só tem sentido se responde às necessidades do jogador". (p. 113). Desse modo, Vial arrola as contribuições educativas do brinquedo para a formação do indivíduo e do lúdico como expressão de prazer. De resto, defende que a criança pela prática com o brinquedo não apenas se identifica com o outro, mas há uma superação de si (fator que corrobora com a formação da personalidade da criança).

O terceiro capítulo é subdividido em duas seções: "O mercado do brinquedo" e "As normas do brinquedo". Em suma, o autor busca, no presente capítulo, analisar a produção e a venda do brinquedo industrializado e sua estreita relação com a economia, com as mídias sociais (especialmente a televisão) e, sobretudo, o seu impacto na cultura infantil por intermédio dos mecanismos de publicidade.

O quarto capítulo é subdividido em quatro seções: "O brinquedo na família"; "O brinquedo no hospital"; "O brinquedo em ruptura de tempo"; e "O brinquedo em ruptura de espaço". Precipuamente, Vial ressalta, nessas seções, a necessidade de o educador depreender o brinquedo como algo inseparável da educação. Em outras palavras, o autor compreende que pelo brinquedo é possível uma educação plena, constituída de atitudes, valores, sensibilidades, hábitos e aptidões. Todavia, não é uma educação fundamentada no "brinquedo-imposto", mas no "brinquedo-libertação" e no "brinquedo-expressão". Com isso, tendo estas duas concepções de brinquedo como ponto de partida, o autor ratifica a importância do lúdico (manifestado a partir do brinquedo e/ou do jogo) na formação do indivíduo em diferentes instituições, tais como: família; hospital; praças de jogos; Casas de Jovens; clubes de férias; e, escola.

O quinto capítulo é subdividido em quatro seções: "Dificuldades e razões de ser"; "A extensão estrutural"; "O funcionamento"; e "Os ludotecários". Nesse capítulo, Vial se esforça em demonstrar a trajetória, o escopo e o funcionamento das ludotecas na França, assim como, o papel pedagógico destas na educação das crianças. Nessa perspectiva, o autor defende peremptoriamente que a ludoteca é um lócus que privilegia o brinquedo como um meio permanente e eficaz de prazer e alegria, que proporciona à criança um espaço de socialização, de formação moral e de cultura. Além destes predicados, é essencial reforçar que a ludoteca é um espaço social próprio à infância, quer dizer, é um ambiente de liberdade, expressividade, visibilidade e autoafirmação das crianças frente à sociedade.

Na terceira e última parte, sendo esta o escopo do seu livro, Vial amplia o debate, visando questionar os limites instaurados entre o jogo, o jogar e a escola, perpassando pela questão do tempo lúdico (lazer, brincar livre, etc.) e da própria formação de professores para o jogo. Essa parte é dividida em três capítulos: As dificuldades de uma revolução; As promessas de uma revolução; e, As condições de uma evolução.

No primeiro capítulo, Vial elabora, a priori , uma análise histórica dos jogos didáticos, partindo da Antiguidade com Platão até a ascensão desta categoria de jogo na escola, sobretudo, no século XIX e XX, com os chamados "jogos didáticos sofisticados" (gramática ilustrada em formato de jogo, jogos para a música, jogos de cartas para a leitura, carimbos numéricos, bingos, quebra-cabeças, etc.). A posteriori , o autor arrola antíteses a esta categoria de jogo. Assim, trazendo ao debate autores como Lhôte, Rabecq-Maillard, Leif e Brunelle, Vial constrói rigorosas críticas ao jogo didático, classificando-o como: equívoco, enganação e contradição. Nesse contexto, o autor indica que é contraditório associar prazer e estudo, já que são polos entendidos como opostos, ou seja, é conflitante atrelar o aspecto gratuito e livre do jogo (prazer, liberdade, expressividade) ao aspecto sério, imposto e utilitário do trabalho escolar.

No segundo capítulo, o autor busca em Oberlin, Froebel e Decroly, uma interlocução, objetivando defender a inclusão dos jogos/brinquedos/brincadeiras na escola, demonstrando a importância da atividade lúdica na formação da criança. Nessa perspectiva, o autor defende os jogos educativos em oposição aos jogos didáticos. Conforme Vial, os jogos educativos se voltam para três esferas: aprendizagem, desenvolvimento sensorial e formação moral. Resumidamente, é basilar não confundir jogo educativo com jogo didático, uma vez que o jogo educativo envolve ações mais ativas, sendo livres ou direcionadas, em que a criança explora o meio ambiente e, a partir disso, desenvolve funções motores, afetivas, cognitivas, além de construir conhecimentos. No que concerne ao jogo didático, este é mais limitado, visto que está intrinsecamente concatenado ao ensino de conteúdos muito particulares (matemática, português, geografia, etc.).

O terceiro capítulo é subdividido em quatro seções: Uma mudança de mentalidade e de objetivos; Diferenças de inserção de acordo com os estabelecimentos; Pedagogia de animação; e, A formação dos novos "professores". Sinteticamente, o autor debate, no presente capítulo, a necessidade de uma pedagogia que considere o lúdico, isto é, que crie espaços de prazer, alegria, liberdade e criatividade, a partir da prática do jogo/brinquedo.

Destarte, Vial indica que é possível incutir o jogo na escola, sem propender exclusivamente ao jogo didático. Nesse sentido, sugere que é essencial uma pedagogia do jogo na escola, que contemple uma formação pelo jogo (aprendizagens, conhecimentos, prazer, expressividade, etc.) e para o jogo (lazer fora da escola). De resto, o autor esclarece que há dois tipos de professores em relação ao jogo, sendo um, aquele que insere uma atividade lúdica (ou de lazer) em seu tempo de trabalho escolar e, o outro, aquele que faz do lúdico (lazer) o dominante de seu trabalho profissional (os animadores, os responsáveis por projetos sociais, os assessores de lazer, etc.). Segundo Vial, é precípuo formar ambos, mas, especialmente, o professor, pois na escola ele deve se focar em uma dupla tarefa: formar as crianças para o trabalho e para o jogo.

Em linhas gerais, o presente livro traz uma imensa contribuição para a Educação e áreas afins. Não só em se tratando da defesa de uma educação mais lúdica, prazerosa e alegre, que coaduna o trabalho escolar ao jogo, mas, principalmente, no que tange à necessidade de um tempo lúdico, ou seja, um tempo livre dedicado ao jogo, ao brinquedo e ao lazer, na qual crianças, jovens e adultos podem desfrutar de suas atividades para além do âmbito do trabalho.

Contudo, embora haja esta imensa contribuição, Vial defende, muitas vezes, a inserção do jogo na escola pelo viés do desenvolvimento de habilidades e competências motoras, cognitivas e/ou afetivas. Ao fazer isso, o autor, de certo modo, volta a tratar o jogo como um instrumento didático (elemento do trabalho escolar), quer dizer, como uma atividade que não tem um fim em si. Contrariamente, em grande parte de seu livro, o autor defende a importância do jogar pelo jogar, do brinquedo livre e do cultivo da liberdade e do prazer na escola.

Além da crítica supracitada, as análises que Vial faz a respeito do trabalho de autores como Buytendijk, Groos, Spencer, Schiller e outros, merecem um maior cuidado, visto que o autor dedica apenas uma ou duas páginas para a análise crítica.

Embora o livro possua estas fragilidades, ele tem uma dupla qualidade. Primeira, possibilita um ponto de partida para as diferentes áreas de conhecimento (Psicologia, Ciência da Educação, Sociologia, Educação Física, etc.) que se dedicam a pesquisar o jogo, a infância, o lúdico e as brinquedotecas.

Segunda, as ideias de Vial defendem um tempo para o lúdico na escola. Em outras palavras, o autor critica o banimento do jogo e a falsa dicotomia jogo-trabalho como algo inseparável e irreconciliável no contexto escolar, quando, de fato, o jogo e o trabalho, apesar de possuírem diferentes estruturas, se relacionam no aspecto lúdico (arrebatamento), isto é, ambos podem ser prazerosos, imaginativos, desafiantes e meios de expressividade humana.

Ora, se "o jogo vale o sacrifício" (p. 240), por que não o jogo na escola?

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2016

Histórico

  • Recebido
    22 Dez 2015
  • Aceito
    04 Jan 2016
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