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Interações de Rudolf Steiner com uma Educação Anticolonial1 1 As reflexões desenvolvidas neste texto resultaram dos debates realizados pelo autor com professores e grupos de pesquisa das universidades Nariño e Cauca, na Colômbia, e das universidades brasileiras Universidade Regional de Blumenau, Universidade Estadual de Campinas e Universidade Nove de Julho. Essa interação se deu como processo de intercâmbio, decorrente de programa de pesquisa vinculado ao Observatório da Educação Escolar Indígena, financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior e coordenado pelo autor de 2009 a 2012. Nele foi apurado o propósito de desenvolver uma pedagogia que se caracterizasse como anticolonial e afinada com saberes originários.

Interactions of Rudolf Steiner with Anticolonial Education

Resumos

Neste artigo apresentamos argumentos que podem viabilizar o debate para a organização de uma Educação Anticolonial como processo que tem como referenciais conhecimentos e posturas próprias de cosmovisões originárias. Esse referencial se soma a princípios do legado de Rudolf Steiner, na perspectiva de processo educativo pautado na liberdade. A linguagem e a cosmovisão assumem papel relevante nesse processo como identidade e representação. Dentro dos limites permitidos por este texto, pretende-se analisar, principalmente na perspectiva da filosofia, da ontologia e da antropologia, como é possível desencadear um processo de educação que tenha por base a cosmovisão de povos originários, submetidos a processo colonial impositivo e invasivo. Um ponto relevante do texto é a abordagem fenomenológica e hermenêutica como referencial para a pesquisa científica na postura metodológica, que perpassa todo o processo tratado, gerando certo confronto com a tradicional abordagem empírico-analítica. O fechamento do texto aponta para breves pressupostos que sustentam uma Educação Anticolonial como processo, que tenha possibilidade de se caracterizar como processo viável de ruptura de fronteiras no contexto planetário, ou seja, a favor da Pachamama, que é a expressão referente à Mãe Terra.

Educação Anticolonial; Rudolf Steiner


In this article we present arguments capable of enabling the debate towards the organization of Anticolonial Education as a process that has as its frame of reference knowledge and attitudes proper to native worldviews. This frame of reference joins forces with principles from the legacy of Rudolf Steiner, in the perspective of educational processes based on freedom. Language and worldview take on a relevant role in this process as identity and representation. Within the limits allowed by this text, we intend to analyze primarily from the perspective of philosophy, ontology and anthropology how it is possible to trigger a process of education based on the worldview of native peoples subjected to an imposing and invasive colonial process. A relevant point in the text is its phenomenological and hermeneutical approach as a frame of reference for scientific research on a methodological stance, permeating the entire process examined and bringing the confrontation to a certain extent in relation to the traditional empirical-analytical approach. The text concludes by indicating brief assumptions that underpin anticolonial education as a process capable of breaking down borders in the planetary context, i.e. in favour of Pachamama, the term that refers to Mother Earth.

Anticolonial Education; Rudolf Steiner


Introdução

Na esteira de um processo educativo como postura anticolonial identificado com a matriz originária dos povos andinos e caribenhos, a palavra originária Pachamama tem especial significado, pelo fato dela ser a expressão por eles utilizada para designar a Mãe Terra. A importância e relevância dessa observação se amparam na posição de que a educação a que se refere este texto tem como referencial o cuidado e a atenção para a saúde desse ser planetário/cósmico, pois é em seu seio que nos mantemos vivos. Amparada nessa expressão originária, este texto considera que a educação, ao ter esse referencial, caracteriza-se como um genuíno movimento de libertação da matriz colonialista. Essa matriz se caracteriza como dinâmica que leva ao esgotamento planetário, das possibilidades de manutenção da vida com dignidade. Pachamama remete, neste texto, ao desafio de enfrentar posições políticas, referentes à expressão Educação Ambiental, a qual pode significar, entre outras possibilidades, que devemos educar os ambientes para suportar os desatinos do modelo econômico produtivista e desenvolvimentista vigente.

O processo de emancipação e manutenção da vida, inerente à expressão pachamama no contexto da educação, adéqua-se ao que é preconizado por Rudolf Steiner, na medida em que o autor tem sua proposta educativa voltada para a vida coletiva e planetária. Deste autor buscamos sua abordagem teórica na perspectiva da ontologia e da fenomenologia referendada principalmente em sua obra "Filosofia da Liberdade". A opção se justifica também pelo fato dela se aproximar do que é preconizado pela cosmovisão e pelos saberes ancestrais, de povos originários das Américas e do continente Africano, os quais são apresentados como referenciais para uma educação que tenha o cuidado e a preservação da vida como foco.

A linguagem e a cosmovisão como identidade e representação

A opção por se adotar a expressão Pachamama e amparar este texto em saberes originários se justifica no debate da questão educativa de natureza anticolonial, na medida em que a construção de sentido se alia ao reconhecimento do espírito correspondente e inerente a cada expressão. Dessa forma, é coerente que os saberes originários sejam evidenciados para se buscar o sentido pretendido de uma proposta anticolonial, isto é, que supere as marcas colonialistas e colonizadoras que impregnam os sentidos da vida nas regiões colonizadas por saberes e interesses exógenos.

Nessa perspectiva, Bakhtin (1992BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.) em sua obra aponta que a palavra somente tem sentido quando situada num certo contexto e em circunstâncias definidas. Assim, ao buscar o sentido/significado das palavras, considerando o contexto linguístico, buscamos meios para evidenciar a compreensão da cultura e da cosmovisão, assentadas na ancestralidade de uma comunidade e de uma nação, o que possibilita o reconhecimento de como estão constituídas suas formas de pensar e viver. Com esse pressuposto se propõe o debate em torno de múltiplas pedagogias pautadas no que caracteriza cada grupo humano, considerando que eles possuem cosmovisão e cultura ancestral própria e particular, por isso, são únicos. Essa posição exige a compreensão da complexidade e particularidade de cada proposta, para viabilizar uma relação educativa de interação e não de intervenção caracterizada como colonialista e colonizadora.

Nesse sentido, a cosmovisão e a cultura se caracterizam como elementos referenciais ao movimento de libertação e autonomia, de natureza anticolonial. Elas, cosmovisão e cultura, se apresentam como prioritárias, quando se trata de assumir a dignidade e a emancipação humana como foco operativo e estrutural. Esse propósito traz de Habermas (2012HABERMAS, Jürgen. Sobre a Constituição da Europa. São Paulo: Ed. Unesp, 2012., p. 24) o significado de dignidade humana, o que para o autor se apresenta "como um conceito jurídico moderno, no qual a dignidade humana se vincula ao status que os cidadãos assumem em uma ordem política auto-criada". O conceito mostra o quanto a dignidade é algo exógeno e, portanto, moral, por estar submetida aos pressupostos de quem coloniza e também por estar atrelada à organização da sociedade organizada sob a égide da dominação. Em contrapartida, segundo Habermas (2012HABERMAS, Jürgen. Sobre a Constituição da Europa. São Paulo: Ed. Unesp, 2012.), a emancipação humana se caracteriza como postura de foro íntimo e, por isso, de natureza ética. Assim, a dignidade humana se situa no campo do direito, por isso, de natureza moral, e a emancipação humana se situa no campo da justiça, por isso, de natureza ética, conforme o autor acima citado.

Ao trazer a expressão anticolonial como prerrogativa para a educação, se tem como foco a natureza colonial, colonialista e colonizadora impregnada nos povos que foram submetidos a esse processo de dominação, cabendo à educação promover processo que o denuncie e possibilite sua superação. Dessa feita, referenciar dignidade humana no contexto de uma Educação Anticolonial significa debater para superar a lógica jurídica imposta por quem dominou e impôs princípios para reger a organização social. Neste contexto a libertação se dá como movimento que promove a emancipação, ao fortalecer a postura humana no viés da ética, a fim de: superar a naturalização pela historicização; superar o individualismo competitivo pela reciprocidade; e superar a alienação pela conscientização, considerando que os humanos têm a vocação inata de Ser Mais, segundo Paulo Freire (1996FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.).

Essa posição evidencia a necessidade de desenvolver proposta educativa que tenha o ponto abrangente na matriz do que convencionamos chamar humanidade, ou seja, a relação do humano humanizado com seu planeta, a Pachamama. Agir com humanidade significa adotar princípios de convivência de tal forma que a responsabilidade pelo bem-estar da Mãe Terra seja um referencial maior, a favor da vida compreendida em sua diversidade, dinamismo e complexidade. Essa dinâmica é nomeada por Keim (2011KEIM, Ernesto Jacob. Educação da insurreição. Jundiaí, SP: Paco Editorial, 2011., p. 28) como dinâmica eco-desorganizativa/organizativa, a qual é ininterrupta numa perspectiva de infinito e eternidade.

Assim, é fundamental reconhecer a cultura e a cosmovisão de cada comunidade para constituir o que vem a ser autonomia e libertação. Essa posição remete a Axel Honneth (2003HONNETH, Axel. A luta pelo reconhecimento. São Paulo: Editora 34, 2003.), quando destaca que é fundamental que cada povo, cada comunidade e cada nação sejam capazes de responder às seguintes questões básicas: Como me reconheço? Como me reconhecem? O que faço para ser reconhecido? O que fazem para me reconhecer? As respostas a essas perguntas conduzem o integrante da comunidade em questão a visitar seu universo imaterial, assim como o universo imaterial de sua comunidade e nação, o que reporta à ancestralidade, à historicidade e à ontologia social e pessoal, conforme Keim (2011KEIM, Ernesto Jacob. Educação da insurreição. Jundiaí, SP: Paco Editorial, 2011.).

Nesse viés trazemos o depoimento oral do teólogo Titi João Lubengo2 2 Teólogo natural do Congo, atuando como pastor evangélico do Brasil, onde busca, por meio de investigação acadêmica, o sentido e a presença da filosofia africana de sagrado e divino, nas religiões afro-brasileiras. , originário do Congo, ao dizer que seu povo, nominado Bantu, se manifesta por meio de determinadas características, com as quais seus conterrâneos se identificam como povo, com destaque para a solidariedade, a reciprocidade, a amorosidade, a acolhida e o cuidado. As características se fazem presentes na identidade desse povo ao ponto de, quando essas pessoas são interrogadas sobre o que vem a ser uma pessoa integrante do povo Bantu, nominada como Muntu, apontarem para um cotidiano movido pela solidariedade, reciprocidade, amorosidade, acolhida e cuidado. Essa posição coincide com as características do que vem a ser Bantu. Desta forma, ser Muntu é ter incorporado o que vem a ser Bantu3 3 Destacamos que essa referência não desconsidera que nessas comunidades existam posições contrárias, de tal forma que não nos posicionamos com base na famosa abordagem antropológica do "Bom Selvagem". .

Frente a essa explicação, esse teólogo reflete sobre qual a resposta que é dada pelas pessoas integrantes do contexto civilizatório eurocêntrico, que se autodenominam como seres humanos. Essas pessoas, ao serem interrogadas de forma assistemática, sobre o que vem a ser um Ser Humano, têm como reação a essa interrogação certa perplexidade e a resposta dada é muitas vezes desconexa e desarticulada, o que é muito diferente da reação identificada na maioria das pessoas integrantes do povo Bantu.

Essa diferença pode se caracterizar pela importância que é atribuída ao significado e ao sentido do que move a existência das relações interpessoais e sociais nos contextos comunitários desses dois grupos humanos. Com os Muntu a resposta é amparada em vivências coletivistas e favoráveis à vida. Essa posição contrasta com os entrevistados originários da matriz eurocêntrica, denominados civilizados, mas que não têm plena consciência de que não se caracterizam como referencial de civilizado o individualismo, a competitividade e o egoísmo. Essa posição denuncia que as pessoas caracterizadas como 'civilizadas' movem relações de abrangência global, sem que tenham a compreensão do que as move como seres humanos, capazes de serem responsáveis pelo bem coletivo e planetário.

Essa observação, apesar de não se referenciar em algo publicado, tem importância na medida em que evidencia o reconhecimento da existência de singularidade e especificidade como referencial de identidade dos grupos humanos. Dessa forma, se tem como referencial nessa abordagem que as relações humanas, mediadas nas diferentes linguagens de cada grupo humano, evidenciam a manifestação do Espírito da Língua. Esse Espírito da Língua se manifesta na cosmovisão e na cultura de cada povo, segundo Eduardo de Oliveira (2006OLIVEIRA, David Eduardo de. Cosmovisão africana no Brasil: elementos para uma filosofia afrodescendente. Curitiba: Ed. Gráfica Popular, 2006.), em três aspectos referenciais, ou seja: Ser como identidade; Sentir como interação; e Emoção como reação pessoal. Esses três aspectos referenciais estão presentes na dinâmica comunicativa e relacional, tanto dos povos originários como das comunidades contemporâneas.

Assim, a humanidade se manifesta pelos registros ancestrais e pela cosmovisão dos povos, ao considerar que sua originalidade tem a dimensão do SER como manifestação atribuída aos sentidos e manifestos como algo racional, representados simbolicamente pela cabeça ao caracterizar uma dimensão de pertencimento. A dimensão do SENTIR se manifesta pelos sentimentos que são representados simbolicamente pelo coração, ao caracterizar uma dimensão de relação. A dimensão da EMOÇÃO se manifesta pelo prazer e pelos sentimentos, os quais são representados simbolicamente pela pelve, caracterizando uma dimensão de fecundidade4 4 Essas posições também se caracterizam como base referencial da teoria que rege o movimento de Biodança organizado pelo terapeuta argentino Rolando Toro, com inspiração na sabedoria ancestral do povo Mapuche. .

Essas três expressões, Ser, Sentir e Emoção, desafiam o contexto civilizatório forjado na competitividade e na acumulação individualista de matriz eurocêntrica. O confronto de posições tem o propósito de apontar para o leitor a necessidade de inserir em seu cotidiano aspectos que pareçam inusitados, os quais se mostram relevantes e necessários se o propósito é a emancipação humana. Assim, Ser, Sentir e Emoção como referência de abordagem anticolonial, manifestos de forma inerente ao Espírito da Língua, organizam o conhecimento e os saberes, característicos da sabedoria de diferentes grupos humanos. Essa posição mostra a dificuldade e a responsabilidade de traduzir um texto que tem sua forma originária referenciada em determinado contexto de cultura e de cosmovisão, o que constitui um desafio para o tradutor não caracterizar o texto conforme sua convicção e compreensão.

Frente a esse desafio é oportuno esclarecer que cosmovisão se caracteriza como um processo construído junto aos integrantes de uma comunidade humana como registro de conhecimentos acumulados no tempo e no espaço, incorporados a partir das formas de enfrentamento e de interação, próprias das interações vitais, com base na ancestralidade. Assim, a cosmovisão se manifesta como singularidade e particularidade de pensamento e de ação dos integrantes de certa comunidade, constituindo seu universo imaterial e cultural ao se manifestar como identidade da coletividade.

Partindo então da perspectiva da linguagem como elemento da educação, que pode viabilizar libertação do jugo colonial, cabe citar Wittgenstein, que em 1922 publicou a obra "Tractatus-Logico-Philosophicus", da qual Moreno (2000MORENO, Arley R. Wittgenstein: os labirintos da linguagem. São Paulo: Ed. Moderna; Campinas: Ed. da Unicamp, 2000., p. 27) destaca que "os limites da linguagem significam os limites de meu mundo". Assim, linguagem insere e incorpora uma lógica e uma representação que sempre está vinculada com a cultura e a cosmovisão de quem a utiliza. Com essas posições se tem que toda linguagem é ideológica e determinista, pois se insere em determinado contexto e circunstância de poder e representação. Ainda da mesma obra referenciada de Wittgenstein (1922, citado por Moreno, 2000, p. 24), se tem que o "Tractatus", apesar de ser uma obra com o propósito de definir a ética, não o faz, porque a linguagem é uma manifestação humana incapaz de dizer o que é ética. O autor justifica essa impossibilidade: "Simplesmente porque o ético, assim como o estético e o religioso não podem ser expressos pela linguagem: deles nada podemos dizer, mas apenas mostrar." Essa posição se soma à de Habermas no que se refere à ética como postura e abordagem de foro íntimo e a moral como postura e abordagem de foro social. Assim, ele aponta para a emancipação humana como algo mais subjetivo que objetivo.

Com base nessa argumentação apontamos como movimento inicial, para organização de uma proposta pedagógica anticolonial, a necessidade de considerar a força de cada palavra, para evidenciar seu significado originário e efetivamente representativo, numa perspectiva de cosmovisão amparada na historicidade e na ancestralidade de cada grupo a ser referenciado. Essa posição é necessária na medida em que os significados de saberes originários, no contexto colonialista, são deformados pelos colonizadores quando eles desafiam os interesses e as posições da dominação. Essa deformação se dá de forma intencional, como processo de efetivação e manutenção de determinados interesses e procedimentos, típicos das dinâmicas colonizadoras, colonialistas e colonizantes.

Nesse sentido a Filosofia Africana e a Filosofia Andina, manifestas de forma restrita em trabalhos acadêmicos desenvolvidos pelas universidades reconhecidas como referenciais acadêmicos, contribuem para a proposição de uma Pedagogia Anticolonial. Essa contribuição se deve à abordagem de as nações originárias dos continentes africano e americano5 5 Depoimentos coletados pelo autor deste artigo, na forma de entrevistas, como parte das investigações referentes à cosmovisão dos povos ameríndios originários, como pesquisa de uma pedagogia anticolonial. terem de forma originária, anterior à ocupação europeia, posturas que privilegiavam a relação fraterna, com prevalência da bondade, da amorosidade, da reciprocidade e do prazer. Essa abordagem tão positiva não desconsidera que paralelamente existiria a maldade, o desamor, o individualismo competitivo e o desprazer, mas os registros disponíveis apontam que as relações apoiadas em dualidades opostas não predominavam como, por exemplo, certo e errado, justo e injusto, pecado e virtude, dentre outras. Apesar de toda a pressão colonialista, a posição de cosmovisão e ontologia social ainda vigoram em muitas das comunidades originárias, apesar de terem assumido valores e referenciais decorrentes da colonização.

A Pedagogia de Steiner e o Ser de Liberdade

Com base nessas observações preliminares, a obra "Filosofia da Liberdade" (Steiner, 2000STEINER, Rudolf. Filosofia da liberdade. São Paulo: Antroposófica, 2000.) pode contribuir para que a qualidade da vida planetária possa ser refletida e mediada para viabilizar vida emancipada com dignidade.

A proposta de educação desenvolvida por Steiner, reconhecida como Pedagogia Waldorf, se caracteriza como um processo de matriz filosófica e ontológica, manifesta com a chancela da Antroposofia, em torno da qual foi desenvolvida a agricultura biodinâmica e a medicina natural, dentre outros procedimentos que atestam sua abrangência e importância. Essa produção se alicerça em um ponto fundamental, ou seja, a concepção evolutiva e sistêmica inerente a todos os integrantes do cosmo. A matriz de sua epistemologia e de sua filosofia é o conhecimento amparado em observação para o conhecimento, a qual possibilita compreender o desenvolvimento, seja dos seres humanos, dos demais componentes ambientais ou dos integrantes do cosmo, como processo de interação complexa e ininterrupta.

Essa posição, caracterizada como um idealismo objetivo, revitaliza a dimensão espiritual como contraponto à dimensão materialista e pragmática, que permeia o contexto cultural e civilizatório no qual interagimos.

Sua proposta pedagógica se ampara no "desenvolvimento da personalidade - ego - não na simples aquisição de conhecimentos". (Wilson, 1988). Conforme Marcelo da Veiga (2014, p. 24), o desenvolvimento da personalidade pela educação "não visa à acumulação de conhecimentos, mas sim à estimulação e ao cultivo de capacidades e competências" de pensar e sentir para interagir a dimensão interna e externa da pessoa com o mundo, para então gerar conhecimentos sintonizados com o todo. O autor continua, destacando que "A Pedagogia Waldorf se origina metodológica e essencialmente de uma competência específica de observação e de conhecimento do ser humano e em especial de seu desenvolvimento", e complementa apontando que a proposta educativa se ampara na perspectiva antroposófica de "um realismo espiritual de Steiner". (Veiga, 2014VEIGA, Marcelo da. O Significado do Pensamento Filosófico para a Pedagogia Waldorf. In: VEIGA, Marcelo da; STOLTZ, Tânia (Orgs.). O pensamento de Rudolf Steiner no debate científico. Campinas: Editora Alínea, 2014. p. 9-32., p. 24). Essa posição se coloca como algo que ocupa o lugar deixado pela metafísica, diante do reinado da materialidade empirista, desencadeada como hegemônica pela ciência produtivista com base na materialidade e na busca de certezas e verdades objetivas.

Ainda quanto à Pedagogia Waldorf, como representação da concepção educativa decorrente da obra de Steiner, cabe destaque, conforme Marcelo da Veiga (2014VEIGA, Marcelo da. O Significado do Pensamento Filosófico para a Pedagogia Waldorf. In: VEIGA, Marcelo da; STOLTZ, Tânia (Orgs.). O pensamento de Rudolf Steiner no debate científico. Campinas: Editora Alínea, 2014. p. 9-32., p. 13), de que "Uma exposição e discussão sistemática das bases de conhecimento e métodos da Pedagogia Waldorf ainda não foi realizada.", apesar da "prática da Pedagogia Waldorf operar com um número de tipificações como a dos temperamentos, dos setênios e das forças da alma, as quais são apontadas como princípios antropológicos e psicológicos válidos para todos os seres humanos." (Veiga, 2014VEIGA, Marcelo da. O Significado do Pensamento Filosófico para a Pedagogia Waldorf. In: VEIGA, Marcelo da; STOLTZ, Tânia (Orgs.). O pensamento de Rudolf Steiner no debate científico. Campinas: Editora Alínea, 2014. p. 9-32., p. 28). Esses elementos de classificação e tipificação se configuram na Pedagogia Waldorf como referenciais cognitivos que dão sentido à proposta educativa, mas não a direcionam. Esses aspectos de tipificação se evidenciam com base no desenvolvimento individual de cada pessoa, pois parte da premissa de cada pessoa ser única e insubstituível. Assim, apesar da importância desses aspectos de tipificação, eles não se caracterizam como ponto central dessa pedagogia, uma vez que o ponto central é a relação da pessoa com o mundo, para com ele interagir e ser capaz de gerar conhecimentos que lhe são adequados, necessários e inovadores.

No âmbito do presente texto não se busca Steiner como metodologia de educação, mas como fundamento filosófico. Esse fundamento filosófico possibilita a percepção da condição humana dos humanos, como seres integrados ao mundo e ao cosmo, numa dimensão que incorpora a perspectiva de materialidade e espiritualidade. Essa posição entra em sintonia com a filosofia originária dos povos ameríndios e africanos, e por isso se justifica como subsídio filosófico, ontológico e antropológico para essa proposta educativa e pedagógica.

Essa diversidade de dimensões se pauta numa visão de mundo planetário inserido no cosmo, a qual transcende a perspectiva usual de materialidade, objetividade e diretividade. Sua obra aponta para a perspectiva de a vida e todas as estruturas planetárias e cósmicas incorporarem, de forma inseparável, uma dimensão de materialidade que corresponde ao corpo físico; de imaterialidade correspondente ao que é nominado como corpo etérico, no qual estão registrados os referenciais para a constituição do corpo material, bem como o acervo de conhecimentos acumulados nas diversas encarnações vividas por aquela pessoa, e de transmaterialidade, que corresponde à dimensão de interação da pessoa com uma perspectiva cósmica. Essas três posições estão muito simplificadas nestas poucas linhas, cabendo destacar que elas correspondem à parte significativa da obra e do pensamento da Antroposofia, que se caracteriza como construção teórica do pensamento de Rudolf Steiner.

Nessa abordagem os humanos, os demais viventes e também os componentes ambientais incorporam de diferentes formas a dimensão sensível (neuronal), a dimensão suprassensível (espiritual) e a dimensão suprafísica (cósmico). Acima destas três posições os humanos, em particular, possuem consciência de sua existência, na medida em que se assumem como portadores de um EU que é próprio e particular de cada pessoa.

Esse EU se caracteriza, entre outros aspectos, por ser a manifestação junto ao corpo material das vivências e conhecimentos acumulados em suas diversas existências reencarnatórias. (Steiner, 1996aSTEINER, Rudolf. A educação prática do pensamento. São Paulo: Antroposófica, 1996a., p. 9-12). Essa condição o caracteriza como ser único, insubstituível e inigualável, apesar de circunscrito em contexto de linguagem e representações culturais, com o qual se apresenta na vida presente. Esses saberes ancestrais com algumas diferenças se coadunam com o pensar ancestral dos povos originários das Américas e da África, conforme Oliveira (2006OLIVEIRA, David Eduardo de. Cosmovisão africana no Brasil: elementos para uma filosofia afrodescendente. Curitiba: Ed. Gráfica Popular, 2006.), e como destaca Steiner em sua obra "Mistérios do México" (1996bSTEINER, Rudolf. Mistérios do México. São Paulo: Antroposófica, 1996b.).

Assim, a vida se caracteriza como um processo transitivo entre diferentes dimensões manifestas nas pessoas humanas, por meio de seu EU, com o qual cada um se caracteriza como ser único e individualizado, agindo de forma integrada no que constitui a vida. As diferentes dimensões são por isso consideradas como referencial de educação na constituição do sentido de liberdade, que perpassa a condição de humano. Esse conjunto, de acordo com os saberes dos sábios ameríndios e africanos, mostra que o processo reencarnatório é inerente à condição de humano. Eles defendem a posição de a dimensão da imaterialidade registrar todas as ações desenvolvidas pelas pessoas em suas vidas, e nela ficam também registradas as ações da vida presente, sendo esse acervo acumulado, caracterizado como referencial importante do que se convencionou chamar de inteligência e capacidade cognitiva. Neste sentido se destaca de Steiner (2002) a seguinte síntese:

Três coisas condicionam o rumo de vida de um ser humano entre o nascimento e a morte; e com isto ele é triplicemente dependente de fatores situados aquém do nascimento e além da morte. O corpo está sujeito às leis da hereditariedade. A alma está sujeita ao destino criado pelo próprio ser humano; esse destino criado pelo homem é denominado com a antiga palavra carma. E o espírito obedece às leis da reencarnação, das repetidas vidas na Terra. Sendo assim, a relação entre corpo, alma e espírito pode ser expressa da seguinte maneira: o imperecível é o espírito; o nascimento e a morte imperam na corporalidade segundo as leis do mundo físico; a vida anímica, sujeita ao destino, serve para unir o espírito e a corporalidade durante uma vida terrena. Todos os demais conhecimentos sobre a natureza do homem pressupõem o conhecimento dos 'três mundos' a que ele pertence. (Steiner, 2002, p. 66).

Esses aspectos trazem para a educação a dimensão de inerente, transcendente e imanente, constituinte da natureza humana, efetivando a sintonia com os conhecimentos que constituem a cosmovisão e a dimensão ontológica, característica da dimensão imaterial dos humanos, por meio de inúmeras reencarnações. De certa forma podemos destacar que esse aspecto se constitui na natureza transcendente dos humanos. É interessante como todo o esforço judaico-cristão, imposto pelos sistemas e processos colonialistas de matriz europeia, não conseguiram apagar essa vertente da matriz de pensamento e conhecimento das comunidades originárias a ela submetidas nas Américas e na África.

Esses argumentos apontam a sincronia entre o pensamento manifesto na cosmovisão dos povos originários e o pensamento de Rudolf Steiner, mas cabe destacar que a posição apresentada neste texto tem base na coleta de informações com nativos dessas comunidades e, por isso, não se dispõem de citações publicadas a respeito. Esse fato se constitui em mais um propósito deste texto, pois pretende trazer para o meio acadêmico a necessidade de ser superada a hegemonia da visão empírico-analítica. A abordagem objetivista, amparada no experimentalismo, não comporta todos os pontos a que este texto se referencia, mas se deve considerar que eles se sustentam academicamente ao serem referendados pela abordagem fenomenológica e hermenêutica da investigação científica.

Apesar dessa justificativa, este texto tem o propósito de evidenciar a possibilidade de desencadear meios pelos quais os pressupostos aqui apontados sejam debatidos, criticados e referenciados pelas diferentes abordagens que a academia elege como geradoras de conhecimentos significativos, para promover vida com liberdade e dignidade. A visão de natureza acadêmica, fundamentada numa perspectiva empírico-analítica, de certa forma é desafiada pela perspectiva científica amparada na abordagem fenomenológica. A abordagem fenomenológica de pesquisa e ação científica evidencia que os saberes devem se consolidar na diversidade e na pluralidade. Com esses referenciais os debates devem ser geradores de mudanças promotoras de compreensão do que desafia a inteligência humana e de como se desenvolve a complexa dinâmica eco-desorganizativa/organizativa, com a qual permeiam as dinâmicas planetárias, cósmicas e vitais.

Steiner, na obra "Filosofia da Liberdade" (2000), destaca que é fundamental romper a lógica na qual se ampara o realismo que sustenta a abordagem empírico-analítica, bem como a abordagem à crítica, e aponta para a perspectiva fenomenológica como possibilidade nomeada como monismo, por meio da qual a cognição depende da percepção e das articulações mentais do sujeito pesquisador. Ele enuncia as questões e para elas organiza as informações e os conhecimentos necessários e pertinentes. Assim, o conhecimento se estabelece na relação direta do pesquisador com o tema em estudo, num contexto de percepção e pensamento, amparado evidentemente em todo acervo acumulado em sua mente e no acervo de informações disponíveis sobre o tema. Esse processo se constitui em algo dinâmico que desencadeia uma interação complexa do acervo inerente a cada pessoa com o resultado de suas observações, descrições e comparações, sem se caracterizar como algo apenas comparativo ou dedutivo. (Steiner, 2000STEINER, Rudolf. Filosofia da liberdade. São Paulo: Antroposófica, 2000., p. 37-40).

Nessa perspectiva a física desafia a filosofia e também a educação, ao referenciar as teorias do Caos, da Complexidade, do Acaso, da Relatividade e dos Quanta, as quais perpassam desde os laboratórios mais sofisticados de investigação até os gabinetes dos filósofos, como referência inafiançável de convivência com uma nova metafísica. Aponta-se para uma metafísica amparada na ciência e não num contexto de fé medieval, ou de crenças fundamentadas em aspectos essencialmente transcendentes e míticos, apoiados em perspectiva de revelação, portanto, religiosa. Nesta perspectiva temos a metafísica ameríndia e africana, que se referenda em um acervo arqueológico e cosmológico, constituído como acervo milenar de experiências humanas, rigorosamente transmitidas e preservadas. Os conhecimentos constituintes desse processo podem ser apontados como os meios que garantiram a sobrevivência desses povos durante séculos, apesar dos incontáveis desafios que tiveram de superar. Aspectos similares a esses podem ser identificados na obra de Steiner, em diversas conferências que foram exaustivamente debatidas e criticadas. Com essa base, as posições aqui apresentadas se afirmam cada vez mais como alternativa para pensar e fazer ciência, no contexto contemporâneo de forma integrada à filosofia.

A educação como processo de liberdade e libertação Anticolonial

A educação, ao ser colocada no debate acadêmico como processo anticolonial agregado a uma proposta vinculada a povos originários, tem como foco a superação das fronteiras que discriminam, alienam e marginalizam. É uma abordagem para a educação que se volta para a libertação, para a liberdade e para a emancipação humana. Nesta perspectiva trazemos para o debate a concepção de educação destacada a seguir para gerar argumentos na direção de refletir seu sentido, importância e abrangência. Assim apresentamos:

Educação como busca contínua de interação/superação, em conformidade com o inédito viável, considerando as tensões decorrentes dos conflitos existenciais e transcendentais, inerentes ao contexto pós-moderno multirreferencial a que estamos submetidos. É processo cultural de matriz ontológica que constrói discernimento historicizado e político, por isso crítico, a partir e em torno da raiz. (Keim, 2011, p. 22).

Assim, a educação se apresenta como algo dinâmico que busca alternativas "inéditas e viáveis" (Pinto, 1968PINTO, Álvaro Vieira. Sete lições sobre educação de adultos. São Paulo: Cortez, 1968.) para questões já estabelecidas em contexto de incontáveis tensões em que se desenvolve a vida (Freire, 1996FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.), conformada no contexto civilizatório competitivo, alienante e naturalizador em que estamos imersos. Por isso se ampara em diferentes abordagens ontológicas que remetem estudantes e docentes a uma postura de radicalização a favor da vida planetária. (Keim & SantosKEIM, Ernesto Jacob; SANTOS, Raul Fernando dos. Educação e sociedade pós-colonial. Jundiaí, SP: Paco Editorial, 2012., 2012).

Retomando Steiner, no que se refere à liberdade, cabe destacar que ela se manifesta como desafio para cada pessoa buscar em seu âmago o que sabe e pensa a respeito do tema tratado, para relacionar com os novos dados e argumentos, podendo então gerar novos conhecimentos. A capacidade de gerar novos conhecimentos interagindo o que sabe com o que capta do mundo exterior caracteriza o estado de liberdade. Dessa forma, a educação como estado de liberdade se mostra como processo que encoraja a dinâmica criadora e investigadora como processo a ser desenvolvido.

Assim, a condição a que a pessoa aprendente se coloca é a de estar disponível para receber e ressignificar conhecimentos muitas vezes já consolidados em sua mente. Essa disponibilidade e postura ativa com o novo e o diferente que desafia o estabelecido são apontadas por Steiner como o estado de liberdade. Assim, liberdade é a condição em que a pessoa se coloca disponível para lidar com o que a desafia. A liberdade é então diferente de libertação, que se caracteriza como processo de ação para alcançar o libertas, que se caracteriza como a plenitude humana. (Keim, 2011KEIM, Ernesto Jacob. Educação da insurreição. Jundiaí, SP: Paco Editorial, 2011.).

Essas duas posições, liberdade (para) e libertação (de), se coadunam como referencial da Educação no processo anticolonial de superação das marcas colonialistas que se manifestam na objetividade e na subjetividade de cada pessoa a ela submetida. Neste sentido, apontamos, segundo Bach Jr. (2012BACH JR., Jonas. A Pedagogia Waldorf como educação para a liberdade: reflexões a partir de um possível diálogo entre Paulo Freire e Rudolf Steiner. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2012.), para o fato de Steiner estabelecer três leis para debater a natureza do que nos faz humanos como seres de liberdade, ou seja: a Lei do Espírito que se manifesta por meio das posições éticas com afinidade para as emoções; a Lei do Coração, que também se manifesta por meio de posições rigorosamente éticas com afinidade com os sentimentos; e a Lei do Corpo, que se manifesta de acordo com as regras estabelecidas pelo meio, caracterizando-se como ações de natureza moral, tendo afinidade com os sentidos e as percepções do meio no qual interage.

Com essa abordagem se tem a dinâmica de libertação e o estado de liberdade como enfrentamento ao que está estabelecido, e isso instiga a reinvenção de um modelo civilizatório, capaz de dialetizar a unidade e a totalidade. A posição dialética, ao considerar o universo simbólico, se corporifica, na medida em que a pessoa se percebe e se identifica como ser unicitário e transcendente. Essa posição se ampara também na perspectiva anticolonial proposta por Freire (1996FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.), de que a libertação implica em posturas de mudança referendada na historicização contra a naturalização; referendada na cooperação contra o individualismo competitivo; e referendada na conscientização contra a alienação.

Considerações e desafios finalizadores

Neste texto apresentamos a educação na perspectiva anticolonial como processo fenomenológico no qual prevalece uma abordagem que se mostra sintonizada com uma dimensão de materialidade, de imaterialidade e de transmaterialidade, que se ampara em princípios considerados pelas comunidades originárias como referenciais para uma educação, que contempla a vida e o bem-estar da Pachamama (Mãe Terra).

Essa posição se caracteriza como processo em que a liberdade e a libertação se apresentam como foco referencial, sintonizado com o que é proposto por Steiner e Freire. Sua viabilização se dá na medida em que o conhecimento é tido como processo no qual debate, prioritariamente, o que é significativo para a vida na perspectiva da subjetividade conceitual e real de verdade e liberdade. A educação, neste contexto, se apresenta como algo inacabado e inalcançável, e assim não se admite como dogma.

A fenomenologia, nesta proposta, também tem lugar de destaque, uma vez que por esta abordagem e possibilidade metodológica se investiga como se manifesta a morada da vida, isto é, como se manifesta a vida no cosmo, no planeta, em todos os elementos constituintes dos meios materiais e imateriais.

Essa posição supera a tradicional dinâmica educativa que prioriza classificar, nomear e estabelecer características descritivas do que está no foco do trabalho educativo. Na proposta de uma educação amparada nos saberes e vivências das comunidades originárias da América Latina, do Caribe e da África, o referencial está em sentir a vida em todas as suas manifestações, independente de se apresentar como algo subjetivo ou objetivo. Essa posição de certa forma leva o debate para o que é observado e sentido, na perspectiva da transitividade e da complexidade.

Com base nessa perspectiva, a proposta de Educação Anticolonial não tem o propósito de promover explicações ou classificações, mas tem como propósito fundamental desencadear a possibilidade de a vida ser sentida e ser percebida em todos os diferentes meios nos quais ela se manifesta. Esta afirmativa se reveste de importância ao se considerar que o observador é um ser vivente humanizado e por isso não tem possibilidade de se posicionar de forma alheia ou neutra ao que é estudado e observado. Assim, toda observação tem uma dimensão de inerência e de imanência pelo fato do observador, como humano, colocar em seu relato descritivo aspectos que estão circunstanciados em sua memória, em sua cultura e em sua cosmovisão e, por isso, não consegue se isentar de interferir no que relata e descreve.

Essa posição de abertura considera como referencial de pesquisa a observação compreensiva e não apenas descritiva, mas amparada na dimensão objetiva, na perspectiva de processo e nas características do contexto onde se dá o que está como foco da investigação. Esta posição parte também da premissa de que a parte observável se insere num conjunto que se apresenta como um todo, que se mostra como interação de incontáveis - talvez "ad infinitum" - possibilidades de interferências de sistemas e processos complexos e sistêmicos.

Debater o que vem a ser vida parte então de diferentes possibilidades e de diversos referenciais, como a dimensão plástica que se caracteriza pela dimensão material na qual se desenvolve e transita em perspectiva constante e caótica entre tempo, espaço e conhecimento. Esta dimensão nos remete a uma situação inusitada e paradoxal, pois a vida somente pode ser pensada e debatida por quem é vivente e consciente da condição, por isso não se pode esperar do investigador alguma posição de neutralidade. Isso nos remete ao fato do humano se caracterizar como um ser capaz de transitar entre o aparente, o imanente e o inerente. Assim, é possível apontar diferentes alternativas de compreensão que se suportam nas incontáveis possibilidades viabilizadas pela capacidade de promover divagações linguísticas, as quais contribuem para ampliar o acervo que perpassa o tema sem, contudo, pretender esgotá-lo.

Dessa maneira, a educação da qual trata este artigo, caracterizada como processo fenomenológico, o é pelo fato de se constituir como decorrência do processo de vivência interativa, amparada na ancestralidade, nas tradições e na cosmovisão de cada grupo humano em particular. Este processo se particulariza na medida em que busca elementos arquivados na essência das pessoas, da comunidade e do povo, com os quais é possível uma diversidade ampla de compreensões dos temas estudados e, assim, promover educação respeitosa aos potenciais latentes e, por isso, educação de liberdade e de libertação.

  • BACH JR., Jonas. A Pedagogia Waldorf como educação para a liberdade: reflexões a partir de um possível diálogo entre Paulo Freire e Rudolf Steiner. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2012.
  • BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
  • FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
  • HABERMAS, Jürgen. Sobre a Constituição da Europa. São Paulo: Ed. Unesp, 2012.
  • HONNETH, Axel. A luta pelo reconhecimento. São Paulo: Editora 34, 2003.
  • KEIM, Ernesto Jacob. Educação da insurreição. Jundiaí, SP: Paco Editorial, 2011.
  • KEIM, Ernesto Jacob; SANTOS, Raul Fernando dos. Educação e sociedade pós-colonial. Jundiaí, SP: Paco Editorial, 2012.
  • MORENO, Arley R. Wittgenstein: os labirintos da linguagem. São Paulo: Ed. Moderna; Campinas: Ed. da Unicamp, 2000.
  • OLIVEIRA, David Eduardo de. Cosmovisão africana no Brasil: elementos para uma filosofia afrodescendente. Curitiba: Ed. Gráfica Popular, 2006.
  • PINTO, Álvaro Vieira. Sete lições sobre educação de adultos. São Paulo: Cortez, 1968.
  • STEINER, Rudolf. Verdade e ciência: prelúdio a uma filosofia da liberdade. São Paulo: Antroposófica, 1985.
  • STEINER, Rudolf. A educação prática do pensamento. São Paulo: Antroposófica, 1996a.
  • STEINER, Rudolf. Mistérios do México. São Paulo: Antroposófica, 1996b.
  • STEINER, Rudolf. Filosofia da liberdade. São Paulo: Antroposófica, 2000.
  • STEINER, Rudolf. Teosofia: introdução ao conhecimento supra-sensível do mundo e do destino humano. São Paulo: Antroposófica, 2002.
  • VEIGA, Marcelo da. O Significado do Pensamento Filosófico para a Pedagogia Waldorf. In: VEIGA, Marcelo da; STOLTZ, Tânia (Orgs.). O pensamento de Rudolf Steiner no debate científico. Campinas: Editora Alínea, 2014. p. 9-32.
  • WILSON, Colin. Rudolf Steiner: o homem e sua visão. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
  • 1
    As reflexões desenvolvidas neste texto resultaram dos debates realizados pelo autor com professores e grupos de pesquisa das universidades Nariño e Cauca, na Colômbia, e das universidades brasileiras Universidade Regional de Blumenau, Universidade Estadual de Campinas e Universidade Nove de Julho. Essa interação se deu como processo de intercâmbio, decorrente de programa de pesquisa vinculado ao Observatório da Educação Escolar Indígena, financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior e coordenado pelo autor de 2009 a 2012. Nele foi apurado o propósito de desenvolver uma pedagogia que se caracterizasse como anticolonial e afinada com saberes originários.
  • 2
    Teólogo natural do Congo, atuando como pastor evangélico do Brasil, onde busca, por meio de investigação acadêmica, o sentido e a presença da filosofia africana de sagrado e divino, nas religiões afro-brasileiras.
  • 3
    Destacamos que essa referência não desconsidera que nessas comunidades existam posições contrárias, de tal forma que não nos posicionamos com base na famosa abordagem antropológica do "Bom Selvagem".
  • 4
    Essas posições também se caracterizam como base referencial da teoria que rege o movimento de Biodança organizado pelo terapeuta argentino Rolando Toro, com inspiração na sabedoria ancestral do povo Mapuche.
  • 5
    Depoimentos coletados pelo autor deste artigo, na forma de entrevistas, como parte das investigações referentes à cosmovisão dos povos ameríndios originários, como pesquisa de uma pedagogia anticolonial.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    20 Maio 2015
  • Aceito
    11 Jun 2015
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