Acessibilidade / Reportar erro

Apresentação

DOSSIÊ - MANTER A SAÚDE, COMBATER AS DOENÇAS: HISTÓRIAS DE EDUCAÇÃO

Apresentação

A partir do século XVIII a conjugação entre educação e saúde pode ser percebida no mundo ocidental de maneira cada vez mais efetiva, devido às mudanças socioculturais que, paralelamente às transformações nas artes de curar, evidenciaram a individualidade da criança e a paulatina reorganização da escola (HÉBRARD, 2000; GÉLIS, 1991). Entre o final dos Setecentos e o século XIX, tais transformações no campo da medicina impulsionadas por sua estruturação científica, notadamente pelo aparecimento da clínica num novo tipo de hospital, pelas descobertas da bacteriologia e pela organização corporativa médica, resultaram na chamada "medicina moderna" (FAURE, 2008).

Indo além, encontraremos o ser humano analisado e medicado, bem como instruído/educado em escolas e fora delas, para que doenças fossem evitadas (afinal micro-organismos causadores de várias enfermidades estavam em toda a parte) e a saúde mantida, resultando em inquéritos e ações sociais médico-educativas (MCKEOWN; LOWE, 1981) e, pouco a pouco, na incorporação de temas relativos à saúde (como higiene) ao universo escolar (p.ex. VIÑAO FRAGO, 2001). Contrapunha-se, então, ao corpo doente entendido, nesse sentido, como o símbolo do desequilíbrio dos "modos de andar a vida" e a disfunção de um regramento preestabelecido numa indicação de corrupção do próprio viver, individual e social.

A partir da virada para o século XX, foi evidente a ênfase na educação para a saúde com o objetivo de controlar e instruir a população sobre formas específicas de combater doenças, mas, principalmente, almejando educar para transformar maneiras de vida consideradas inadequadas, quando o tema era manutenção da saúde. Saúde que seria do indivíduo, mas também da nação, já que se repousava sobre a idealidade de corpos sãos e educados, a de uma nação igualmente equilibrada e cheia de potencialidades. Nesse contexto, a formação do médico e de outros profissionais da área da saúde, como os enfermeiros, foi objeto de repetidos debates e propostas curriculares, uma situação que, com suas especificidades, pode ser observada em países da Europa e da América.

Realizar o dossiê sobre a temática educação para a saúde significa, desta forma, tanto buscar recuperar aspectos da história da formação profissional nas áreas médica e da saúde, quanto resgatar ações (por vezes contestadas) empreendidas por esses profissionais ou por professores, seus evidentes colaboradores, relacionadas à educação da população para manter uma concepção de pessoas sadias por isso consideradas civilizadas (de ensinamentos sobre a limpeza pessoal até sobre os pretensos benefícios da vacinação). Entretanto é imperativo perscrutar as entrelinhas da experiência humana num certo "presente", procurar vestígios relegados por uma "versão oficial", buscando uma interpretação em seu contrapelo, como disse Walter Benjamin, para fazer falar os grupos que "não deveriam ter voz" e para criticar "um sentido da história, [...] uma concepção de progresso inevitável" (LÖWY, 2005, p. 74), pelas fímbrias dos tempos, dos gestos e das atitudes de corpos que ações oficiais da saúde e da educação pretendiam controlar.

Este dossiê é formado por oito artigos e pode ser divido em duas partes que se complementam e são balizadas pelos dois textos sobre a formação médica. O primeiro artigo, Ensino médico e legitimação: a presença da homeopatia na Faculdade de Medicina do Paraná nos anos 1910, de Renata Palandri Sigolo, discute o esquecimento pela memória construída da instituição de ensino paranaense da importância dos debates nacionais entre homeopatas para as ações de Nilo Cairo, um dos fundadores da Faculdade de Medicina. O oitavo artigo, Entre o curso tradicional e o curso experimental da Faculdade de Medicina-USP: a experiência da pedagoga Maria Cecília Ferro Donnangelo, 1968-1976, de André Mota, centra sua análise na figura de Cecília Donnangelo, expoente da constituição da Saúde Coletiva no Brasil, com a intenção de discutir sobre o seu papel na criação e funcionamento do Curso Experimental da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, entre 1968 e 1974, uma experiência curricular e de prática socioeducativa de extrema importância para o campo do ensino médico brasileiro.

O artigo de Virgínia Mascarenhas Nascimento Teixeira e Rita de Cássia Marques, Enfermeiros e saúde pública em Belo Horizonte: combatendo doenças e educando para a saúde (1897-1933), focaliza a organização da enfermagem e as atividades educativas realizadas por enfermeiros na capital mineira desde o final do século XIX e como, entre 1920 e o início dos anos 1930, a atuação educacional destes profissionais ficou evidente graças às atividades de prevenção da doença e promoção da saúde das "enfermeiras visitadoras" e "enfermeiras escolares". O texto Conhecer e educar para controlar o câncer na Bahia, de Christiane Maria Cruz de Souza, analisa como a partir de 1840 e por mais de cem anos, além dos debates médicos sobre o câncer e a formação profissional para os cuidados relacionados à doença, também a educação da população foi importante na tentativa de combate à moléstia. O artigo de María-Isabel Porras-Gallo, La poliomielitis en la España franquista: educar y reeducar, mostra como o combate à poliomielite na Espanha, de meados da década de 1950 até os anos 1970, determinou a reeducação e educação das autoridades sanitárias do regime franquista, de profissionais de saúde e de pessoas afetadas pela doença e seus familiares, principalmente as mães, na tentativa de erradicar a doença.

Os outros três artigos do dossiê destacam a questão saúde no universo da escola primária. O texto de María Silvia Di Liscia e María Estela Fernández, ¿Separados o juntos? Contagio, escolaridad y tracoma en Argentina (1884-1940), discute as formas utilizadas pelo governo argentino para combater o tracoma e, principalmente, a Escuela de Tracomatosos de Tucumán, criada em 1920, única do gênero no país e uma das poucas que existiram no mundo. O artigo A saúde entre a lei e o costume na escola primária paranaense, final dos anos 1910, de Liane Maria Bertucci, analisa como determinações relacionadas à saúde presentes na legislação escolar paranaense em 1917 foram decisivas para justificar a transferência da escola isolada da localidade Graciosa de Baixo para a cidade de Antonina, ato administrativo que ocasionou protesto de pais de alunos e motivou disputa entre pais, professora e autoridades educacionais. O texto de Mauricio Antunes Tavares, Para livrar o campo do amarelão, da maleita, do alcoolismo e do ofidismo. A educação rural em Pernambuco nos anos 1930 a 1950, um estudo de sociologia histórica, discute propostas educacionais para a saúde da população rural no contexto dos amplos debates sobre modernização escolar e nacional dos anos 1930-50, destacando a formação proporcionada aos professores pela Escola Rural Modelo Alberto Torres, instituição cujo jornal, O Semeador, difundia noções relacionadas à moral e higiene, com o objetivo de formar o homem saudável e produtivo do meio rural.

Esperamos com esta breve apresentação despertar o interesse dos leitores da Educar em Revista pelos artigos reunidos sob o título "Manter a Saúde, Combater as Doenças: Histórias de Educação".

Liane Maria Bertucci e André Mota

Organizadores

  • FAURE, O. O olhar do médico. In: CORBIN, A.; COURTINE, J.-J.; VIGARELLO, G. (Dir.). História do corpo 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 13-55.
  • GÉLIS, J. A individualização da criança. In: ARIÈS, P.; DUBY, G. (Dir.). História da vida privada 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 311-329.
  • HÉBRARD, J. Três figuras de jovens leitores. In: ABREU, M. (Org.). Leitura, história e história da leitura Campinas: Mercado de Letras, 2000. p. 33-77.
  • LÖWY, M. Walter Benjamin: aviso de incêndio uma leitura das teses "Sobre o conceito de história". São Paulo: Boitempo, 2005.
  • MCKEOWN, T.; LOWE, C. R. Introdución a la medicina social Ciudad de México: Siglo XXI, 1981.
  • VIÑAO FRAGO, A. Do espaço escolar e da escola como lugar: propostas e questões. In: VIÑAO FRAGO, A.; ESCOLANO, A. Currículo, espaço e subjetividade 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2001. p. 59-139.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jan 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 2014
Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná Educar em Revista, Setor de Educação - Campus Rebouças - UFPR, Rua Rockefeller, nº 57, 2.º andar - Sala 202 , Rebouças - Curitiba - Paraná - Brasil, CEP 80230-130 - Curitiba - PR - Brazil
E-mail: educar@ufpr.br