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Testo Yonqui

PRECIADO, Beatriz. Testo Yonqui. Madrid: Espasa, 2008.

Cleiton Zóia Münchow

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Mato Grosso do Sul. Campo Grande, Mato Grosso do Sul, Brasil. R. Pereira Gomes, nº 355 – Coxim. CEP: 79400-000

Em Testo Yonqui encontramos 310 páginas de textos, organizados em 13 capítulos, divididos entre experimentações e teorizações. O sujeito experimental: o corpo de Beatriz Preciado (doravante, B.P.), em entropia direta com a morte de um/a amante (G.D.) e um novo amor que se apresenta (V.D.). O experimento: submeter o sujeito a protocolos de intoxicação voluntária à base de testosterona em gel. O/A observador/a: B.P. é a "rata" do seu próprio laboratório. Resultado: Um livro, uma escritura tóxica, uma teorização corporal a respeito da "produção de valor e da vida na sociedade atual" (PRECIADO, 2008, p. 26) capaz de nos fazer "ver através Da Matriz de gênero, contemplar os homens e mulheres como eficientes ficções performativas e somáticas convencidas de sua realidade natural" (PRECIADO, 2008, p. 262).

Testo Yonqui, "herdeiro das políticas de experimentação", é "um protocolo de intoxicação voluntária à base de testosterona sintética", "um ensaio corporal", "uma ficção autopolítica ou uma autoteoria" em que se registram "tanto as micro mutações fisiológicas e políticas provocadas pela testosterona no corpo de B.P., como as modificações teóricas e físicas suscitadas neste corpo pela "perda, o desejo, a exaltação, o fracasso ou a renúncia" (PRECIADO, 2008, p. 15). Sua razão de ser encontra-se na margem de incerteza que existe entre a filósofa e seus sexos imaginários, as três línguas que não lhe pertencem, entre a vida e a morte de G.D., entre a testosterona e o corpo de B.P., entre V.D. e o amor que sente por V.D.

Nesta margem de incerteza em que se desenvolve a escritura de B.P., "único testemunho fiel deste processo", habita seu vício secreto e o cenário em que "sela um pacto com a multidão" (PRECIADO, 2008, p. 48). Seu corpo – na perspectiva de um regime político heterocentrado que estabelece relação natural e necessária entre sexo e gênero – foi assinalado como feminino. No entanto, a utilização da testosterona sintética realizada pela autora não assume a direção de convertê-la em homem ou de transexualizá-la. Trata-se, antes, de uma traição ao que a sociedade quis fazer dela, "para escrever, para foder, para sentir uma forma pós-pornográfica de prazer, para acrescentar uma prótese molecular na minha identidade transgênero low-tech feita de dildos, textos e imagens em movimento, para vingar tua morte (G.D.)" (PRECIADO, 2008, p. 20). Trata-se de desidentificar-se.

O uso de testosterona, dentro dos limites da inteligibilidade e legalidade estatal, só é permitido aos corpos assinalados como femininos ao preço de se deixarem enquadrar docilmente pelo DSM IV, Manual de Diagnóstico de Doenças Mentais da Organização Mundial da Saúde. De acordo com B.P., declarar-se transexual dentro da atual sexopolítica equivale a "deixar que a medicina acredite que pode propor-me uma cura satisfatória ao meu 'transtorno de identidade de gênero'", aceitar "que nasci num corpo com o qual não me identifico", "reescrever a minha história, modificar qualquer elemento que pertença a uma narração feminina" (PRECIADO, 2008, p. 173). Da rejeição do entendimento da transexualidade como disforia de gênero, resulta um impeditivo legal que bloqueia o acesso das biomulheres à testosterona. Fora dos marcos da patologização sexual, o uso de testosterona implica a categorização dos usuários em outro capítulo do DSM, em que a testosterona assume o estatuto biopolítico da adição e "acaba por ser a substância cuja dependência deve ser curada por outros meios" (PRECIADO, 2008, p. 173).

O livro, que começa com uma morte, seguida de uma videopenetração e leva Paris Hilton para a cama com Max Weber, termina abordando a vida eterna. Neste percurso, desenha uma paisagem conceitual do tempo presente: farmacopornografia, tecnossexualidade, tecnogênero, farmacopoder, pornopoder, os quais constituem alguns dos principais conceitos desenvolvidos nos capítulos 2, 4, 6, 8 e 10, respectivamente. Paisagem, vale lembrar, desenhada no autorretrato de uma filósofa queer.

O modelo de produção, distribuição e consumo nominado fordismo cedeu espaço a outro modelo cujas linhas de força encontram-se no século XIX e a materialização emerge da ecologia política e sexual das ruínas tecnológicas da Segunda Guerra Mundial. As análises dos teóricos pós-fordistas param quando chegam à cintura, desconsiderando a centralidade da sexualidade nas novas dinâmicas do tecnocapitalismo avançado que coloca em marcha, em meados dos anos 1970, uma nova forma de governamentabilidade do ser vivo: biomolecular (fármaco) e semiótico-técnica (pornô), assim a pílula e a playboy são casos paradigmáticos desta Era Farmacopornográfica em que reina não uma cooperação de cérebros (Negri e Hardt), mas, sim, uma cooperação masturbatória, em que a nossa Potentia gaudendi, conceito que substitui o conceito de força de trabalho e que se refere à capacidade atual ou virtual de excitação total de um corpo, passou a ser regulada por uma lógica masturbatória que nos excita e controla com a finalidade de extrair mais valia: o tecnogozo.

Para levar a cabo uma análise sexopolítica da economia mundial, B.P. se volta aos registros dos processos de tecnificação gestionada do corpo. A ciência com o seu poder performativo de produzir artefatos (produção em autofeedback) produz a sexualidade e o gênero dentro de uma história entrecruzada por práticas médicas, psicológicas, jurídicas e políticas que instituem a crença numa origem natural da diferença entre os sexos. Com Nietzsche, Foucault e Derrida, B.P. ri das origens e se põe a ler os arquivos em que a sexualidade e o gênero foram registrados e produzidos como natureza para entender o sentido das duas opções biopolíticas que lhes foram apresentadas: "Trans ou Yonqui?".

A história da tecnossexualidade é a história de um sistema, um império sexual cuja "construção biopolítica" toma o sexo como centro somático de invenção e controle da subjetividade do indivíduo moderno. Seguindo T. Laqueur, B.P. sustenta que o sexo do indivíduo moderno é filho do século XVIII, período em que o trabalho de divisão da carne passou a ser realizado sob a perspectiva da oposição de diferenças: o sexo feminino, até então ausente dos manuais de anatomia, passou a ser entendido como entidade independente e de funcionamento próprio. Esta nova anatomia sexual traz consigo uma nova estética sexual. Fazendo referência a Foucault, B.P. afirma que a pedagogização do sexo da criança, a histerização do corpo feminino, a regulação da procriação e a psiquiatrização dos prazeres perversos constituíram o horizonte a partir do qual se desenha o corpo hetero, sujeito universal dessa nova estética que terá seu desmascaramento no final do século XIX com a escrita de manuais de psicopatologia (Krafft-Ebing) e que instituirá um novo sistema de reconhecimento em que "a diferença corporal frente à norma [...] é considerada monstruosidade, violação das leis da natureza, ou perversão, violação das leis morais" (PRECIADO, 2008, p. 62). Essas técnicas disciplinares (mecânicas, semióticas e arquitetônicas) de naturalização do sexo, a partir da Segunda Guerra Mundial, acabaram por ganhar novas dimensões devido às "transformações profundas das tecnologias de produção da subjetividade" (PRECIADO, 2008, p. 65), o que levará B.P. a nomear um terceiro regime de saber-poder, nem soberano nem disciplinar: farmacopornográfico.

A história da categoria de gênero está entre as principais páginas da história da tecnossexualidade, pois sua origem não reside no discurso feminista que, inclusive, acabou por esquecer sua dimensão técnica. Em 1947, Jonh Money passa a utilizar a categoria gênero para referir-se ao sexo psicológico nos processos de tratamento hormonal e cirúrgico dos corpos assinalados como intersexuais; mais tarde, Harry Benjamin passará a administrar estrógenos e testosteronas a pacientes adultos que não se identificam com o gênero assinalado ao nascimento. A fixidez das técnicas dos sistemas disciplinares do final do séc. XIX e princípios do séc. XX tornam-se obsoletas frente ao evidente caráter técnico e plástico do gênero. A partir dos desenvolvimentos teóricos de Teresa de Lauretis e Judith Butler, Preciado investiga essa dimensão semiótico-técnica da produção performativa do gênero e insiste que deveríamos falar em tecnogênero "se quisermos dar conta de um conjunto de técnicas fotográficas, biotecnológicas, cirúrgicas, farmacológicas, cinematográficas, ou cibernéticas que constituem performativamente a materialidade dos sexos" (PRECIADO, 2008, p. 86). A partir da guerra fria passamos a ser homens e mulheres de laboratório, a masculinidade e a feminilidade, trans ou não, assim como a homossexualidade e a heterossexualidade não existem para além dos fluxos semiótico-técnicos de gênero e sexualidade que os produzem dentro de um mesmo regime farmacopornográfico que atua como farmacopoder e pornopoder.

As raízes da hegemonia do farmacopoder se encontram na história da caça às bruxas e no extermínio dos saberes populares, dando origem à criminalização das práticas de "intoxicação voluntária", de autoexperimentação com alucinógenos e com sexualidade. B.P. identifica um movimento de internalização dos mecanismos de controle que, progressivamente, inscrevem-se na constituição do corpo dando a ele um gênero e uma sexualidade tecnicamente produzidas como naturais ou biodrags. Se a sociedade disciplinar, descrita por Foucault, encontrava na figura do panóptico o paradigma do modo de funcionamento dos mecanismos de poder, a sociedade farmacopornográfica encontra na pílula anticoncepcional seu modelo panopticocomestível, que anuncia "o devir líquido e microprostético das técnicas de controle da sexualidade que antes eram rígidas, exteriores e visíveis" (PRECIADO, 2008, p. 141). Entre 1860 e 1905, quando o conceito de hormônio é elaborado, cria-se também uma "nova imagem do indivíduo moderno como complexo entremeado de circuitos densamente conectados que emitem, recebem e codificam informação" (PRECIADO, 2008, p. 120). O corpo passa de meio em que o poder se inscreve a efeito material de intercâmbios semiótico-técnicos e, aos poucos, uma política de regulação do uso hormonal se institui operando a partir de uma retórica heterocentrada que converte, com o apoio do feminismo de estado, biomulheres em consumidoras potenciais de progesterona e estrógenos por quase a totalidade de suas vidas, negando-lhes acesso à testosterona, cujo uso fica restrito aos bio-homens.

O pornopoder é o aspecto semiótico-técnico das dinâmicas do poder no regime farmacopornográfico. A pornografia, dispositivo virtual que objetiva a masturbação planetária, funciona como espaço de construção pública do privado e o seu processo de produção funciona como paradigma para toda outra forma de produção na sociedade farmacopornográfica. B.P. identifica a existência de um processo de pornificação do trabalho: o trabalho é sexo e seu objetivo é excitar dentro de um circuito fechado de excitação-capital-frustração-excitação-capital organizado como cooperação masturbatória – rede interconectada de produção de prazer como satisfação frustrante, General Sex. Paris Hilton, neste contexto, torna-se o "dever ser" da produção sexopolítica: tecno-bitch de luxo – transforma a totalidade da sua vida e sexualidade em trabalho e as converte em "imagem digital globalmente transferível" (PRECIADO, 2008, p. 189). Na outra ponta do processo de pornificação do trabalho encontramos o corpus pornograficus, vida desprovida de direitos, "exposta e construída pelos aparatos de vigilância" (PRECIADO, 2008, p. 44). O proletariado farmacopornográfico (produzindo mais-valia sexual e toxicológica) é apresentado por B.P. como novo sujeito político, pois é a emanação dos detritos dos sujeitos políticos malogrados do feminismo radical, do movimento queer, dos movimentos medicinais alopáticos, dos movimentos de liberação das drogas.

Trans ou Yonqui? Diante destas duas opções biopolíticas (173), B.P. prefere a incerteza que leva à utilização do corpo próprio como "plataforma ativa de transformação vital" (PRECIADO, 2008, p. 251), única filosofia possível frente aos dispositivos contemporâneos de controle do corpo e da sexualidade que fazem do corpo individual sua extensão e lugar de aplicação das tecnologias de normalização, responsáveis por fazer todo corpo que abandona as práticas autorizadas da sociedade em que vive deslizar "progressivamente em direção à patologia" (PRECIADO, 2008, p. 173). Este diagnóstico político do tempo presente faz a autora advogar "pela criação de uma nova prática" que entenda "a normalização e seus efeitos como patologias políticas" (PRECIADO, 2008, p. 265). Testo Yonqui é um manual de bioterrorismo de gênero construído a partir de uma toxicoanálise cujo solo é um corpo que não se reconhece diante do espelho, "condição de emergência do político como possibilidade de transformação da realidade" (PRECIADO, 2008, p. 284).

B.P., nas primeiras páginas do livro, escreveu que "a arte, a filosofia ou a literatura podem funcionar como contra-laboratórios virtuais de produção de realidade" (PRECIADO, 2008, p. 33) e assim as utiliza. Da resistência aos processos de normalização emerge uma política da experiência que não confia que "a representação como externalidade possa portar verdade ou felicidade" (PRECIADO, 2008, p. 284). Ao começar o livro autoadministrando-se testosterona, B.P. cortou sua própria cabeça modelada por um programa de gênero e seccionou uma parte do modelo molecular que a habitava. A vida eterna se encontra no movimento captado pelo processo de autodecapitação que não é outra coisa senão filosofia: autoficção política.

Texto recebido em 19 de maio de 2014

Texto aprovado em 20 de maio de 2014

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2014
  • Data do Fascículo
    2014
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