Acessibilidade / Reportar erro

Sessenta anos de manifesto dos pioneiros da educação nova

ARTIGOS DE DEMANDA CONTÍNUA

Sessenta anos de manifesto dos pioneiros da educação nova

Suzana da Costa Ferreira

Professora Assistente do Departamento de Planejamento e Administração Escolar da UFPR

Associação Brasileira de Educação nasceu em 1924 com amplo objetivo de "transformar habitantes em povo". Seus associados acreditavam na educação como "a causa das causas" da qual dependiam "as diretivas da evolução do povo brasileiro".

A ABE, sediada no Rio de Janeiro, expandiu-se gradativamente e - através das Conferências criadas por Fernando Magalhães e da revista Educação - pretendeu nortear a educação brasileira, bem como definir suas diretrizes básicas.

Os integrantes da ABE, além de pertencer ao quadro do professorado brasileiro, atuavam também nas chamadas profissões liberais. A denominação "liberais" na verdade abrigava, tanto os elitistas como Fernando de Azevedo e Lourenço Filho, quando igualitaristas como Anísio Teixeira e também, intelectuais de tendência socialista como Paschoal Lemme e Roldão de Barros. (GUIRALDELLI, 90). No contato diário com as dificuldades encontradas no exercício de suas profissões, esses intelectuais se propunham à difusão/unificação do processo de ensino no Brasil e a diferentes projetos de reorganização das bases educacionais, pressionados pela necessidade do atendimento das carências físico-culturais das população.

As Conferências Nacionais de Educação da ABE iniciaram, em 1927, por Curitiba. A IV Conferência, pós-Revolução de 30, teve o comparecimento de Francisco Campos e Getúlio Vargas. Caracterizada com um " divisor de águas", entre católicos e liberais, dá origem ao Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova.

Segundo o Professor Carlos Roberto Jamil Cury, esse Manifesto deve ser lembrado, "não apenas como resultante de um fecundo período histórico aberto à mil pesquisas, mas, substancialmente, como uma posição corajosa de assumir a escola como coisa pública a ser construída pelo trabalho político-pedagógico."

Cury, em artigo comemorativo dos 50 anos da divulgação do Manifesto (junho de 82), discute a relação Educação-Estado. Nesse texto, lembra que os Pioneiros do Manifesto haviam invocado a presença do Estado como instrumento da necessária democratização escolar, tendo, no entanto, essa presença significado o abafamento, a redução, tanto da proposta manifesta quando dos possíveis projetos alternativos de educação.

Refletindo sobre a comemoração, dez anos atrás, dizia Cury:

"Ontem como hoje, a busca de um novo Estado Democrático de Direito, que se consubstanciasse através de uma Assembléia Nacional Constituinte, gerou a necessidade de que grupos com tendências divergentes se unissem num gesto de compromisso. Gesto em que ímpares se tornassem momentaneamente parceiros, a fim de,unidos, recusar posições passageiras e mesmo reacionárias. "(CURY, p.7, 82)

Passados mais de dez anos da data dessa afirmação, tivemos a oportunidade de observar, em pelo menos dois grandes momentos, a premência dessa consubstanciação: no movimento das Diretas e no processo pró"-impeachment" de Collor. Caracterizado pelo retorno da população às ruas e, principalmente, dos jovens, o movimento "Fora Collor" apresentou a peculiaridade dos "caras pintadas" que, coerentes com seu tempo de imagens e sons, trouxeram para o espaço público um recurso simbólico necessário para um renovado exercício da cidadania, sepultada e desenterrada por duas vezes: primeiro pelo Estado Novo, e depois, por 21 anos de obscurantismo e repressão.

E nós, professores em 1993? Acreditamos que temos, ou poderíamos buscar, maior clareza no que se refere ao papel da educação na sociedade. Superamos as hipóteses da educação "redentora" e assumimos, pós - teorias crítico-reprodutivistas, a aproximação de uma concepção mais clássica da educação sistematizada, ou melhor, da escola como instância de transmissão assimilação do saber, saber esse que é identificado, dosado, seqüenciado e viabilizado por formas adequadas ao desenvolvimento do processo de ensinar-aprender pelas ciências pedagógicas, nas quais interferimos(?).

Entretanto os problemas das condições de acesso, permanência e progressão da escola brasileira mantêm-se, bem como se complexificam 60 anos após a divulgação do Manifesto.

Luís Antonio Cunha aponta como causas da lentidão das soluções de melhoria da nossa escola a "prevalência dos padrões discriminatórios, herdados da sociedade escravocrata, que sobrevivem em nossa sociedade capitalista, a despeito do surpreendente desenvolvimento de alguns setores" e das forças sociais e políticas do privatismo. (CUNHA, p. 473, 91)

Historiando as vantagens privatistas a partir da LDB 4024/61, Cunha nos coloca com clareza a contenção que o setor privado tem imputado ao ensino público, seja por objetivos empresariais ou ideológicos.

O desgaste sistemático que a escola pública brasileira vem sofrendo, a par de sua difícil e lenta estruturação, pode passar desapercebidamente para muitos professores. Cunha lembra a participação dos privatistas nos Conselhos de Educação, em todos os níveis de administração do ensino, e sua colaboração para a contenção de salários, bem como experimentalismo curricular, como exemplos das causas do referido desgaste. Com a LDB 5692/71 as escolas particulares desenvolveram táticas de ajustamento entre, os ditames do Conselho Federal, e os interesses imediatos de "educação geral" de sua clientela. Desse modo, as escolas públicas tornaram-se, ainda mais, subordinadas e impotentes frente às "imposições profissionalizantes", com a conseqüente desestruturação do que fora conquistado duramente, mas já existente. Em termos acadêmicos, especialmente evidenciado nos dias de hoje, por exemplo, pelo declínio da língua portuguesa, diluída por muito tempo na matéria Comunicação e Expressão.

Ainda mais, o individualismo carreirista dos que assumem os cargos administrativos leva a descontinuidades e a esfacelamentos, impedimentos importantes para a avaliação dos resultados do processo educacional, que por sua própria natureza, difere das demais políticas públicas, por necessitar de certo tempo de maturação. Assim, os desvios da administração educacional de suas reais finalidades passam ainda pelo eleitorismo, o experimentalismo pedagógico inconseqüente e o voluntarismo ideológico. (CUNHA, 91)

A consciência histórica da tarefa herdada: "transformar habitantes em povo" e o povo em cidadãos, demanda a paciência da construção social que protagonizamos hoje, como trabalhadores intelectuais, entre tantos trabalhadores integrados à ação de transformação da natureza e criação do mundo da cultura, enfim, do mundo humano.

Ancorados na procura insistente dessa consciência histórica é que comemoramos, mais uma vez, o Manifesto de 32. Pelo empenho/desempenho de um trabalho, pela mobilização, pela construção - apesar dos equívocos e posteriores desvios que acabaram por justificar a incompetência de muitos e do esmorecimento decepcionado que levou a um "laisser faire" conformista de outros - no constante confronto com as elites, por um lado, e o modismo escolanovista, por outro.

Segundo Leão Serva:

"O procedimento mais sábio da genialidade perversa da elite política brasileira, usa o fato de que a massa não vê a política como um sistema, mas como fruto da vontade de uns poucos, os líderes. Com isso, ela se deixa enganar em dois momentos: no primeiro escolhe os homens que prometem mudar o mundo sozinhos; depois, ante o colapso, quando aceitam o seu sacrifício como superação de todos os males...A nação brasileira jamais exigiu julgamentos completos das elites políticas responsáveis como um todo pelos erros contra os quais o país se levantou". (SERVA, 92)

Assim, o desvelamento desse estigma brasileiro nos coloca restrições para as comemorações eufóricas e festivas e nos orienta para o sentido etimológico da palavra: trazer à memória, fazer recordar. Nessa perspectiva, provavelmente possamos lembrar Ulisses, como representante da dignidade política reencontrada na resistência à ditadura das elites e complacência agressiva das camadas médias, que entendem democracia como mero recurso da retórica...nessa perspectiva, como velhos Pioneiros, podemos enfrentar com simplicidade e garra o nosso dia-a-dia...como protagonistas no trabalho da construção e transformação social.

A nossa nova bandeira já está ultrapassando os sessenta anos de idade e o desafio permanece: a escola pública, gratuita e universal, à qual tentamos acrescentar substantivamente, frente às forças conservadoras...a qualidade.

  • CUNHA, Luiz Antonio. Educação, Estado e Democracia no Brasil. Rio de Janeiro : Cortez, 1991.
  • CURY, Carlos Roberto Jamil. Comemorando o Manifesto dos Pioneiros da Educação, Nova/32. In : Educação & Sociedade, n. 12/setembro. Cortez, 1982.
  • GHIRALDELLI, Jr, Paulo. História da Educação. São Paulo : Cortez, 1990.
  • SERVA, Leão. Um Nuremberg para o Brasil. Folha de São Paulo, 04 de Outubro de 1992.
  • SAVIANI, Demerval. Sobre a natureza e a especificidade da Educação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Mar 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 1993
Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná Educar em Revista, Setor de Educação - Campus Rebouças - UFPR, Rua Rockefeller, nº 57, 2.º andar - Sala 202 , Rebouças - Curitiba - Paraná - Brasil, CEP 80230-130 - Curitiba - PR - Brazil
E-mail: educar@ufpr.br