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Orientação Vocacional: a abordagem tradicional e a possibilidade da superação

ARTIGOS DE DEMANDA CONTÍNUA

Orientação Vocacional: a abordagem tradicional e a possibilidade da superação

Maria Inês Hamann Peixoto

Mestre em Educação pela UFPR. Professor Adjunto do Departamento de Planejamento e Administração Escolar. Doutoranda em Filosofia e História da Educação-UNICAMP

Introdução

Ao escrever sobre Orientação Vocacional, é impossível prescindir de uma introdução sobre a concepção de Educação que lhe dá respaldo,bem como não há como fugir à discussão sobre a divisão do trabalho na escola, na forma da questão do "especialista".Pode-se resumir em duas as principais perguntas a serem respondidas:

1. Qual a validade de se falar em Orientação Vocacional dentro da concepção histórico- crítica de Educação? No item III deste artigo intento uma resposta a essa questão.

2. Será coerente pensar a atuação de especialista na escola, dentro dessa concepção?

Não há como ignorar a contradição posta: ao mesmo tempo em que a parcela considerável dos educadores brasileiros questiona a divisão do trabalho na escola, configurada pela presença dos especialistas- por entendê-la promotora de uma concepção dicotomizada de Educação, a nível de formação, são mantidas as habilitações na quase totalidade dos cursos de Pedagogia. Desse modo, não há como se furtar a apontar e discutir (mesmo que brevemente) o papel e a atuação desses especialistas que estamos formando, sob a ótica histórico-crítica.

Contrário a toda e qualquer visão fragmentária em Educação, com relação á figura do especialista, Saviani propõe um nova concepção: "(...) o verdadeiro especialista em educação será aquele que, tomando como centro e ponto de referência básico a educação enquanto fenômeno concreto (isto é, a educação considerada no modo próprio como ela se estabelece mediatizando as relações características de uma sociedade historicamente determinada), seja capaz de transitar com desenvoltura do plano teórico (avaliando, reelaborando e assimilando criticamente as contribuições das diferentes áreas do conhecimento) ao plano prático (elaborando, reformulando e criticando as técnicas de intervenção pedagógica) e vice- versa".(SAVIANI, 1980. p. 92). Nessa concepção, e assim se conduzindo, poderá o especialista atuar na escola sem, no entanto, dar à sua ação o caráter fragmentário que marca o "especialismo".

Uma terceira questão se põe: será possível a superação da atuação fragmentária dos "pedagogos especialistas", pela incorporação dos papéis que tradicionalmente têm assumido? Com relação ao orientador, Pimenta (1985 e 1991) vem discutindo a questão e propõe uma linha de atuação como pedagogo, na direção do combate à seletividade e à evasão existentes na escola pública. A questão, no entanto, permanece em aberto, o que me permite, como professora responsável pela disciplina de Orientação Vocacional, no curso de Pedagogia da UFPR, tentar contribuir para o debate sobre essas questões, em especial a primeira e a terceira. Assim justifico a redação deste artigo.

A partir do pressuposto de que a Educação é exigência do trabalho e para o trabalho, como também é ela própria um processo de trabalho cuja finalidade é a construção de uma "segunda natureza", entende-se que Educação seja, "o ato de produzir, direta ou indiretamente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens." (SAVIANI, 1991. p. 21). Nessa concepção, o objeto da Educação será o de identificar os elementos da cultura a serem assimilados, bem como definir as formas mais adequadas para que isso se efetive.

Tratando-se de educação sistemática, ela acontece fundamentalmente, na escola, cujo papel, segundo Saviani, é o de socializar o saber acumulado e sistematizado. Esse saber inclui o domínio do instrumental básico- ler e escrever-, bem como a linguagem dos números, da natureza e da sociedade, o que sintetiza o conteúdo da escola elementar.(Saviani, 1991, p. 23). É com relação à necessidade de entendimento da linguagem da sociedade que vejo a atuação da Orientação Vocacional, nas séries finais do 1º Grau e no 2º Grau. Entendo que a atuação do Orientador junto aos professores, possibilitando-lhes uma leitura crítica com seus alunos, dos materiais relacionados às questões do mundo do trabalho e das profissões,contidos nos textos didáticos, poderá contribuir positivamente para que os alunos façam uma leitura mais lúcida da sociedade em que vivem, no sentido de desenvolverem melhores condições, de agirem para a sua transformação, como trabalhadores (atuais e /ou futuros) nela inseridos.

Passo agora a uma breve análise da proposta de Orientação Vocacional que vem se configurando tradicionalmente, desde seus primórdios na Europa e Estados Unidos.

II - A Orientação Vocacional tradicional

A Orientação Vocacional tradicional tem sua existência vinculada à sociedade industrial, cuja necessidade de mão-de-obra específica e diversificada se tornou ingente, em função da divisão e da organização do trabalho.

Nessa sociedade cabe à escola promover o "desenvolvimento harmonioso" dos indivíduos, mas também formar e selecionar mão-de-obra, em acordo com as imposições da divisão do trabalho: o "trabalho intelectual" (de planejamento e organização da produção) e o "trabalho manual" (de execução, ou produção propriamente dita). Com o taylorismo, a organização do trabalho se complexificou pela formação de um quadro intermediário, encarregado do gerenciamento da produção.

Em nome da mesma eficiência ditada pela fábrica, a divisão do trabalho foi impingida à escola, dentro de uma concepção tecnicista de Educação que entende ter aquela instituição a função primordial de formar quadros para a produção. Foram então reproduzidas, no interior da escola as funções de controle, colocadas sob a responsabilidade dos "especialistas": o administrador, o supervisor e o orientador, tendo este último a função de promover orientação profissional ("vocacional", na linha americana). Mais tarde a orientação vai tomar um cunho mais amplo, e passará a ser denominada Orientação Educacional, visando a atender a uma série de áreas da vida do educando, como por exemplo as áreas escolar, familiar, de saúde, etc. A área profissional passa a receber um destaque sob a denominação de Orientação Vocacional.

Segundo definição oficial formulada pela Associação Nacional de Orientação Vocacional (E.U.A), em 1937, Orientação Vocacional é "o processo pelo qual se ajuda a uma pessoa a escolher uma ocupação, a preparar-se para ela, ingressar e progredir nela" (In: CRITES, 1974.p. 35). Em 1951, Super revê essa concepção na obra Vocacional Adjustment: Implementing a self-concept. Ao criar uma teoria sobre o desenvolvimento vocacional, define a Orientação como "(...) o processo pelo qual se ajuda uma pessoa a desenvolver e aceitar uma imagem adequada e integrada de si mesma e de seu papel no mundo do trabalho, a submeter à prova este conceito na realidade e a convertê-lo em realidade para satisfação de si mesma e benefício da sociedade." (In: CRITES, 1974. p.36).

Nessas definições estão implícitos os pressupostos liberais: na sociedade Democrática os Indivíduos, como cidadãos, têm Igualdade de Oportunidades de acesso aos bens oferecidos pela sociedade e podem Livremente escolher e Optar por uma profissão, de acordo com sua 'vocação', para que se garanta sua 'satisfação' pessoal. A escolha deve ser consciente, ou seja, com pleno conhecimento de suas aptidões, características físicas e de personalidade, seus interesses, valores e aspirações sociais, e com o conhecimento das oportunidades que a sociedade lhe oferece em termos de cursos, profissões e mercado de trabalho. O Orientador, de posse destas informações sobre o indivíduo, bem como de informes sobre as oportunidades oferecidas pela sociedade, deveria repassá-las ao orientando, através do processo denominado 'aconselhamento', visando a sua integração no que se convencionou chamar 'mundo do trabalho', promovendo seu ajustamento a ele, inclusive com posterior acompanhamento. (SANTOS, 1973. p. 28-107)

Esse processo se desenvolveria sobre bases teóricas dos ramos da Psicologia, em especial da Psicologia Vocacional, da Diferencial e do Desenvolvimento, como também da Psicometria, no que diz respeito ao conhecimento do indivíduo que se orienta.

Do ângulo do 'mundo do trabalho', o orientador deveria lançar mão da bibliografia sobre as profissões, como por exemplo as monografias profissionais e as fichas profissiográficas, utilizando-se ainda dos dicionários de profissões, para promover informação profissional.

De posse dos conhecimentos sobre o indivíduo, dos seus interesses, aspirações e aptidões, bem como das oportunidades oferecidas pela sociedade,cabe ao Orientador promover o aconselhamento, através do qual o orientando tomaria conhecimento desses dados, e então, estaria supostamente habilitado a fazer a escolha "vocacional" consciente e adequada aos seus dons e interesses, tendo como meta sua realização pessoal.

Em brevíssimas linhas, esta é a proposta tradicional de Orientação Vocacional.

III. Uma proposta para a superação da orientação vocacional tradicional

Do ponto de vista da concepção progressista de educação, é impossível aceitar acriticamente tal proposta, tendo-se por base que ela se assenta em princípios liberais que sustentam um claro propósito de simples ajustamento do indivíduo à sociedade, de modo totalmente desprovido de senso crítico.

Sob este prisma cabe elaborar a reflexão sobre o papel desempenhado pela Orientação Vocacional no contexto da sociedade industrial, bem como, a partir de tal análise, como também do conhecimento da sociedade de classe e das bases em que se assenta a produção capitalista, elaborar propostas para a transformação da Orientação Vocacional (a começar pelo nome da disciplina, que poderia ser melhor caracterizada com o título de Orientação sobre o Trabalho).

Ferreti, em sua obra vem intentando essa reflexão no campo específico da Informação Profissional- I.P.-(FERRETI, 1981; 1988 b.) No artigo de 1981 e na obra Uma nova proposta de orientação profissional (1988 a), o autor sugere algumas transformações quanto aos objetivos e conteúdos da Informação. Para ele, a I.P. deve instrumentar os jovens " para realizar reflexões críticas sobre o ingresso numa profissão, e sobre o exercício da mesma no contexto da ordem econômica vigente no país. (...) seu objetivo básico deve ser o de fornecer informações fidedignas que estimulem a reflexão" (FERRETI, 1981. p. 69). Quanto ao conteúdo, a característica básica deve ser a historicidade, ou seja: ao ser produzida, deverá ter em vista um determinado momento histórico e uma situação social definida, abrangendo "os aspectos conflitantes e contraditórios das profissões e seu exercício (...), as relações internas na empresa",bem como tudo o que diga respeito às políticas de emprego do governo,ao trabalho específico da criança, do velho e da mulher, à situação dos sindicatos, à política salarial, etc. (FERRETI, 1981. p 69).

Essa nova orientação deverá ter por base a concepção histórica do trabalho com vistas a situar a aluno frente à dimensão social e coletiva do mesmo, a posicionar o trabalhador como sujeito da história. Há que se criar condições para o desenvolvimento da consciência política. Há que se questionar a profissão como mero 'meio de realização individual', enfatizando-se a responsabilidade social e coletiva de construção da sociedade que necessitamos e queremos, pela via da participação social efetiva, através do trabalho.

A Orientação Profissional que se quer, vai ao encontro da proposta da politecnia. Nela, o ensino implica, além da busca pela elevação do nível científico dos alunos, o "desenvolvimento da capacidade de pensar globalmente, com o despertar do discernimento crítico". Isso implica no conhecimento dos "princípios da organização de produção e da economia, analisando-se o trabalho humano, sua formas sociais, a estrutura social, (...) e a qualidade da vida humana" (MACHADO, p. 60). Em suma, implica na "capacidade de orientação no sistema de produção social, de tal forma que permita ao indivíduo compreender as questões relativas à sua inserção no trabalho social, os problemas éticos e as formas de participação social." (MACHADO, p. 60).

É claro que essa Orientação sobre o Trabalho, (na falta de um nome melhor, no momento) transcende interesses do modo de produção vigente, que apenas tem em mira um sistema educacional formador de mão-de-obra submissa aos ditames dos interesses do capital.

  • CRITES, J.O. Psicologia Vocacional. Buenos Aires: Paidos, 1974
  • FERRETTI, C.J. Informação Profissional e Ideologia. ANDE, São Paulo, v. 1, n.2, p. 64-9, 1981.
  • ______.Uma nova proposta de Orientação Profissional. São Paulo : Cortez, 1988 a
  • ______.Opção : trabalho,trajetórias ocupacionais de trabalhadores das classes subalternas. São Paulo : Cortez, 1988 b.
  • MACHADO, L.R. de S. Em defesa da politecnia. Ciência e Movimento, São Paulo, v.1, n.1, p. 55-61,set/ 1990.
  • PIMENTA, S.G. Orientador Educacional ou Pedagogo. ANDE, São Paulo, v.5, n.9, p.29-37, 1985.
  • ______.O Pedagogo na escola pública: uma proposta de atuação a partir da análise crítica da Orientação Educacional. São Paulo : Loyola, 1991.
  • SANTOS. O. de B. Psicologia aplicada à orientação e seleção profissional. São Paulo : Pioneira, 1973.
  • SAVIANI, D. Educação : do senso comum à consciência filosófica. São Paulo : Cortez, 1980.
  • ______.Pedagogia Histórico-crítica : primeiras aproximações. São Paulo : Cortez, 1991.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Mar 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 1993
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