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Respeito se aprende na escola?

ARTIGOS DE DEMANDA CONTÍNUA

Respeito se aprende na escola?

Tânia Maria Baibich

Professora do Departamento de Métodos e Técnicas da Educação, Universidade Federal do Paraná

Busco, no sotão das memórias de minha infância, verso maroto de moral duvidosa. Diz o verso assim:

Nos tempos dos meus avós, não era como hoje, não.

As crianças, como nós, tinham muita educação.

Criança não falava à mesa, porque era feio pecado

punham-se nesta dureza e olhem:

bico calado.

Por isso que aconteceu um caso que eu vou contar

e foi com um tio meu, num saboroso jantar,

- "papai, eu posso falar?" pergunta o menino ousado.

- "psiu! À mesa não fala menino bem educado."

Quando acabou de comer o velho lhe diz então:

- "que querez tu dizer?" agora tens permissão.

E o menino respondeu, com uma cara resignada:

- "e agora papai já comeu, o bichinho da salada"!

Se um bichinho de salada pode ser coisa inofensiva, a confusão entre conformismo ou submissão e respeito mútuo devido à cooperação é, pelo contrário, seriamente danosa.

Nestes tempos em que nos ressentimos de escassez de sujeitos cuja marca seja aquela que caracteriza a autonomia moral, enquanto educadores, é preciso ousar nossa melhor energia amorosa e intelectual no repensar deste tema.

Afinal, qual é a essência da moralidade? Moral é matéria que se ensina? Que papel desempenha o adulto nesta aprendizagem?

Qual a relação entre o desenvolvimento moral, o intelectual e o afetivo?

Porque o tem é apaixonante, porque tem instigado e afligido o pensar dos professores que conosco discutem e, principalmente, porque queremos falar durante o jantar, mesmo que não haja bichinhos nesta salada, nos propomos a refletir sobre estas questões.

Entendemos, como o fez Piaget na o obra O Julgamento Moral na Criança, que toda moral consiste num conjunto de regras e que a essência de qualquer moralidade reside na forma pela qual os sujeitos daquele grupo social se relacionam com estas regras.

Contrariamente aos pressupostos empirista e racionalista, pensamos que o desenvolvimento moral se dá como uma construção ativa de um sujeito interagindo no meio. Desta feita, nem "tábua rasa" onde se inscreverão os conhecimentos, nem tampouco estruturas dadas a priori, mas um processo de construção baseado na relação sujeito e meio em que este se insere.

A consciência qe este sujeito possuirá, no decurso de seu crescimento, no que tange às regras morais, varia da anomia moral à autonomia moral, passando por um período de heteronomia moral. A anomia moral é a inexistência da regra e, portanto, da necessidade de respeitá-la. A autonimia moral refere-se à regra internalizada, tida como necessária à vida em comum flexível, tangível, mutável, produto do respeito mútuo e da cooperação. A heteronomia moral remete a uma condição onde o sujeito egocêntrico confunde lei com autoridade e percebe a regra como imanente, intangível e imutável, porém, paradoxalmente, merecedora de respeito apenas por um submissão à autoridade.

Nossa questão fundamental, talvez, seja a de buscar uma definição mais clara do papel que, enquanto adultos, possamos assumir neste desenvolvimento infantil. Como contribuir para que aquele que, num princípio, sozinho, ainda que em grupo, não necessitando de regras comuns porque não consciente de si enquanto alguém entre outros, possa alcançar, um dia, a condição de autolegislador, de sujeito pleno de peculiaridades e apto a coordenar distintos pontos de vista, a "cooperar"?

Sugiro que olhemos com um olhar de turista - que vendo por primeira e quem sabe última vez, tenta beber tudo o que vê e por isso olha com os olhos da alma - para esta etapa heterônoma característica deste momento.

A criança egocêntrica, pela impossibilidade de descentralizar-se, não coordena diferentes pontos de vista. Percebe-se, como conseqüência, o seu enquanto único. No que se refere às regras morais, não há, portanto, a possibilidade de compreender que para viver em grupo é mister que haja respeito mútuo e cooperação e que, portanto, a lei é necessária. Não como algo imposto, criado pelo outro, mas como um produto comum de consciências livres, passível de mudanças desde que o grupo assim o determine.

O adulto, simbolizado pela criança desta etapa de desevolvimento como o que tudo sabe e o que manda, ainda que inconscientemente obtém prazer desta posição.

A consciência natural do princípio do prazer não permite a este adulto abdicar ao lugar privilegiado, o que leva, mediante seu comportamento, à manutenção da heteronomia por parte do sujeito egocêntrico.

Vejamos alguns exemplos familiares deste fenômeno:

- "Quem conversar, ficará sem recreio!"

- "Silêncio, porque eu mandei!"

- "Não fez a lição, não come sobremesa!"

Aqui, e de outras tantas formas, temos uma pequena amostra de como é possível reforçar as idéias de que regra moral e autoridade são uma mesma coisa, de que a lei é imanente, intangível, imutável e deve ser cumprida devido à obediência, ou seja, ao respeito unilateral.

A conseqüência deste tipo de educação, nós conhecemos bem: sujeitos que, ou conformistas ou hipócritas, respeitam a regra quando em presença da autoridade mas, na falta desta, sentem-se descomprometidos como o coletivo e livres para burlar a lei.

Pesquisa sobre o desenvolvimento moral, como as realizadas por Kammi (1984), Kamii e Declark (1986), Kamii e Joseph (1982) têm comprovado que o acesso à autonomia se dá basicamente pela possibilidade que a criança e o jovem possam ter de conviver e discutir com seus pares, experimentando as diferenças - na busca da coordenação de distintos pontos de vistas - bem como, a interação com adultos.

Adultos cuja própria autonomia lhes permitia abdicar à coroa, sendo autoridade sem ser autoritário, usando de energia quando necessário e não a violência. Adultos que não necessitam punir e que ao se depararem com a inevitabilidade de sansionar comportamentos, usem de sanções por reciprocidade e não por sanções expiatórias.

Sanções por reciprocidade vinculam o ato sancionado à sua conseqüência, abrindo sempre um espaço para a livre escolha. Por exemplo, uma criança que esteja impedindo por seu comportamento, a atividade do grupo, pode ser convidada a optar entre sair da sala ou mudar sua conduta.

É preciso enfatizar que a postura aqui proposta não se confunde com a de adultos incapazes de fazer uso de limites. É função do adulto ser contingente da criança. Nosso enfoque reside, entretanto, na epistemologia subjacente à ação do adulto, interacionista construtivista no caso, e na forma como ele lidará com o desenvolvimento do outro, compreendendo seu natural egocentrismo e favorecendo oportunidades de saída do mesmo.

O adulto que, de forma autêntica, reconhece que o desenvolvimento é fruto de uma construção, por parte de um sujeito ativo em relação com o meio em geral, poderá constituir peça chave neste crescimento.

Respeito pelo outro, favorecimento perante oportunidades de discutir, planejar, confrontar-se com as diferenças entre os pares, opção pela atitude de cooperação em detrimento da atitude conformista, utilização - quando necessário - de sanções por reciprocidade e não expiatórias, são algumas entre tantas formas de beneficiar consicências críticas, criativas, intelectuais, morais efetivamente autônomas, capazes de construir sociedades mais justas - voltadas para a paz.

No que se refere ao crescimento intelectual harmonicamente vinculado ao moral e ao afetivo, a diferença básica entre formar meros repetidores e favorecer o desenvolvimento de consciências livres, inventivas e críticas, só poderá se dar uma perspectiva de desmitificação da idéia de um conhecimento pronto e acabado.

A visão empirista na qual o conhecimento é possuído pelo outro como uma mercadoria que se dá ou se vende cederia espaço à visão interacionista construtivusra. Nesta última perspectiva, ao contrário da anterior, o sujeito cognoscente é tido como artífice de seu pensar que se dá no confronte permanente com outros sujeitos e objetos em geral.

Assim é possível superar a idéia baseada no empirismo, de que o conhecimento já pronto será dado ao outro, tal qual pílulas do saber, em direção a processos de ensino e de aprendizagem já construído pela humanidade na perspectiva de um aprendiz ativo e transformador.

Conseqüentemente, os alunos aprenderão, para mais além das disciplinas, o prazer que a confiança no poder pensar confere a quem a possui.

Da obediência ao respeito mútuo, da centração à cooperação, que nos desculpem alguns avós de ontem e de hoje, mas discutir durante o jantar, além de evitar inconvenientes, é mesmo o "maior barato"!

  • FREITAS, Lia. A Produção de Ignorância na Escola Campinas: Papirus, 1990.
  • FREIRE, Madalena. A Paixão de Conhecer o Mundo Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
  • KAMII, C.; DEVRIES, R. A Teoria de Piaget e a Educação Pré-Escolar Lisboa: Socicultur, S/d.
  • ______. A Criança e o Número Campinas: Papirus, 1984.
  • ______; DECLARK, G. Reiventando a Aritmética Campinas: Papirus, 1986.
  • ______; JOSEPH, H.L. Aritmética: Novas Perspectivas Campinas: Papirus, 1992.
  • PIAGET, Jean. Le Jugement Moral Chez L'Enfant Paris: Alcan, 1932.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Mar 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 1994
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