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Deficiência: uma questão natural ou social

ARTIGOS DE DEMANDA CONTÍNUA

Deficiência: uma questão natural ou social

Paulo Ricardo Ross

Professor do Departamento de Planejamento e Administação Escolar, Universidade Federal do Paraná

O biológico e historicidade

Primitivamente, o desenvolvimento do homem ligava-se ao fato de ele ver os objetos de sua atividade. O ocium era a teoria, a refexão, a contemplação, enquanto o tripalium era o trabalho prático. O visor gerava a contemplação por isso raciocinava-se sobre o que se via. Se o objeto não estivesse ao alcance dos olhos não se pensava. Então, o ver era o determinante do pensamento. A visão era fundamental, mas apresentou limites. Era preciso superar esses limites (da imagem) e, ao mesmo tempo, desenvolver idéias.

Já quando o homem criou a linguagem ele passou a possuir idéias (eidos: imagem da coisa no pensamento), então, ele não mais precisou ver a coisa para raciocinar. A linguagem passa a transcender e superar a visualidade. É a passagem do imediato para o mediatizado. Basta conceber abstratamente o objeto para pensar e desenvolver idéias.

Então, o homem passou a desenvolver abstrações, não mais através da visão, mas através das palavras, dos signos. O homem então superou essa limitação visual criando a mediação para a formação da consciência, desenvolvida através da linguagem e do conhecimento. O próprio desenvolvimento do raciocínio deu-se através da prática da atividade por meio da visualização e do corpo orgânico. Assim, o visual e o manual tiveram papel decisivo no processo de humanização do homem. Porém, com o desenvolvimento da sociedade, a atividade humana vai se tornando cada vez mais mediada e mediadora. Com a complexidade das mediações histórico-sociais o processo de apropriação da realidade natural e social e a humanização do homem vão se tornando cada vez menos imediatas e, deste modo, cada vez mais mediatizadas pela produção histórica e pelas diversas formas de relações entre os homens.

Então, as relações do processo de trabalho são mediatizadas por toda uma prática já existente acumulada historicamente. Estas mediações são necessárias ao inteiro domínio material e social não pode ser concebida a partir da mediação apenas dos órgãos dos sentidos. Na verdade, estes já são mediados por toda a experiência social, toda a historicidade. Neste sentido, o ser humano não vê apenas com os olhos. Ele vê com a exepriência acumulada. Ele não ouve apenas com os ouvidos. Ele ouve com a experiência acumulada. Quando o homem vê e decodifica esta leitura da realidade, ele o faz com todos os sentidos e toda a sua subjetividade, além do conjunto de mediações já construídas historicamente pelos homens (instrumentos, idéias e técnicas). Assim, o produto da visualidade, o domínio dos códigos, dos símbolos, da imagística, da forma, não é resultado de relações imediatas, mas de mediações que configuram o próprio processo de visualização.

Neste sentido, a humanização ou a alienação do homem, sua cidadania ou sua marginalidade não são determinadas espotânea e naturalmente. São expressões contraditórias do modo como a sociedade produz o himano a seu tempo. É próprio de sociedades não letradas a perspectiva do conhecimento do "ser social" e da consciência associados somente a objetos do cotidiano, somente a experiência imediata, gráfico-funcional. (Luria, 1990). Esra determinação do imediato sobre o ser humano, portanto, não é universal. É história, isto é, manifestação de um estágio de desenvolvimento da sociedade. A humanização ou alienação, bem como, o biológico e o cultural, por conseguinte, são mediados social e historicamente.

Então, desde as percepções mais elementares como o visual, o auditivo, o tátil, até questões como o ser social, a consciência, a omnilateralidade são processos não naturais, não dados ao homem no seu nascimento. Eles são produtos histórico-sociais e necessariamente mediados pela atividade social dos homens que está em constante transformação. A linguagem é uma das mediações para apropriação da atividade social. O processo de conhecimento desde os seus níveis mais elementares não é um processo imediato, mas um processo mediatizado pela experiência social transmitida através da linguagem. "O homem biológico transforma-se em social por meio de um processo de internalização de atividades, comportamentos e signos culturalmente desenvolvidos." (Vygotsky In: Oliveira, 1995, p.102). Então, se uma pessoa não dispõe de um elemento sensorial não significa que esteja impossibilitada da atividade social e, por conseqüência, do conhecimento e da historicidade. Ao dominar as mediações que o homem constrói, historicamente, ele pode se apropriar do conhecimento, da experiência social e travar intercâmbio com os outros homens, com a própria história e transformar-se como homem.

Com efeito, o conhecimento é multilateral, ele provém, multilateralidade da experiência humana.

É simplista a idéia de que o conhecimento é determinado pela capacidade de ver o real. Esta capacidade é apenas um canal.

Por que, então, o ser humano que não possui uma das formas de percepção seria impedido de apropriar-se da multilateralidade que caracteríza a ação e realidade humanas? Esta condição é a tendência à universalidade da atividade humana supera a relação de determinação do biológico sobre a apropriação ou inapropriação da riqueza da história humana.

Concretamente, a forma pela qual é exteriorizado o modo distinto deste homem apropriar-se da realidade não é o determinante sobre o cerceamento de suas capacidades. Na verdade, esse cerceamento decorre do tipo de atividade a que é submetida esta distinção.

Da igualdade abstrata à desigualdade real

A pessoa portadora de uma "deficiência" precisa buscar uma existência para si, sobre a perspectiva da atuação no mundo como sujeito e não simplismente segundo modelos previamente estabelecidos que a marginalizam do trabalho social. Se esse indivíduo for tomado "em si", ele apenas assume uma função de objeto dos serviços assistenciais caritativos ou de trabalhos secundários, simples e elementares, num dado meio social. Transformar, então, a produção material adaptando-a para si, ou seja, segundo o modo de apropriação dos indivíduos distintos do ponto de vista biológico-sensorial significa reconhecer o grau de capacidades e de necessidades que pode ser desenvolvido socialmente por estes indivíduos.

Os indivíduos portadores de um distinção sensorial não são considerados inferiores quando se tematizam suas relações sociais em termos abstratos. O ideal democrático por sua vez, que permeia em termos aparentes o modo de pensar as relaões sociais produtivas impede de reconhecê-los como seres determinados. Constam, deste ideário, os valores da dignidade, da liberdade, da igualdade, inscritos no âmbito jurídico-político e no bojo dos projetos pedagógicos elaborados nas esferas federal, estadual e municipal de nosso país. Ideologicamente, reproduz-se este discurso democrático. Reconhece-se, pois, estes indivíduos como "iguais" a despeito das diferenças.

Concretamente, no entanto, a inferioriadade, incapacidade e dependência surgem quando se trata do exercício de uma atividade material profissional. Nega-se sua independência através da negação ao direito a uma atividade humana e social digna.

Já quando se trata do discurso sobre determinadas características intrínsecas tipicamente humanas, ou seja, quando se toma um indivíduo em si, refere-se socialmente ao princípio de uma igualdade abstrata encobrindo, assim, a desigualdade real.

Mas, quando está em jogo a ocupação de posições sociais dignas e/ou relevantes através da qual se democratiza o poder e a possibilidade de desenvolvimento de capacidades e necessidades "pela prática", então, a desigualdade e a impossibilidade vêm à tona para impedir a humanização dos indivíduos disitintos do ponto de vista biológio e sensorial (este impedimento se dá também pelo aspecto econômico, político, racial, sexual e religioso), negando, por conseguinte, a igualdade abstrata ora proclamada. Trata-se da desigualdade histórica. Como afirma Rosseau, (1973, p.144) é produto dos homens e não uma desigualdade natural.

Invertem-se as posições entre a igualdade e a desigualdade e entre o abstrato e o concreto. A desigualdade concreta havia de ser o ponto de partida para um processo de transformação até um ponto de chegada que seria a igualdade concreta. O momento abstrato seria apenas a apropriação pela consciência da desigualdade existente no real e a determinação dos meios e dos fins para se atingir historicamente a igualdade concreta.

Se aceitarmos a igualdade apenas em seu plano abstrato, isto constutui-se uma viés para a sociedade como um todo, eximir-se do seu papel histórico de socializar a todos os seres humanos sua produção material, seus serviços, seu progresso técnico e antropológico. Se aceitarmos por outro lado, a desigualdade existente no real como "natural", "irreverssível" e imutável, como produto das limitações individuais, isto alimentaria uma relação de verticalidade entre as pessoas, ou seja, uns superiores e outros inferiores.

Contraditoriamente, ao mesmo tempo em que se reforça esta hierarquia na prática social concreta, concede-se ao "diferente", ao nível do discurso, a "igualdade dentro das diferenças". Na verdade, estas fórmulas pretensamente igualitárias servem para acrescentar as mais extremas discriminações. (Beauvoir, [s.d.] p. 41-50). Do mesmo modo, se considerarmos a igualdade entre os homens como algo pronto e acabado poder-se-ia afirmar que aqueles indivíduos destituídos de uma capacidade sensorial imediata, nada teriam a reivindicar. Deveriam tão somente assumir suas obriogações, desempenhar seu papel na sociedade, de modo a contribuír para a haromina do "organismo social".

De outro lado, ainda, se considerarmos definitivamente a desigualdade, tomando uma limitação biológico-sensorial individual como critério de inferiorização do ser humano em relação aos demais (esta análise abstrata e a-histórica), então, toda e qualquer reivindicação para participar de uma atividade social mais ampla não passaria de uma reivindicação emotiva, "neuroses" e "problemas psicológicos", individuais em geral.

Esta noção de desigualdade tomando-se como parâmetros apenas o âmbito individual e imediato é produto de uma orientação positivista e liberal que desconsidera a universalização do homem, a partir da história produzida e dividida entre os homens. Tanto a igualdade quanto a desigualdade tendo como referência o individual "em si" estão deslocadas de seus determinantes fundamentais, ou seja, a instância do social, que é o ponto de partida empírico e ao mesmo tempo o ponto de chegada concreto de referência da igualdade. "O momento especulativo e idealista de uma concepção de mundo coincide extamente com o seu momento hegemônico que, contraditoriamente, se relaciona com a desagregação, com a decadência e como a crise no nível real." (Gramsci, 1978, p.55).

O pensamento da igualdade se dissemina e atinge o seu apogeu, tendo como base a evidência da desigualdade real. O monismo busca a identidade dos contrários num ato histórico concreto.

Portanto, não podemos levar em conta apenas o aparato biológico individual se desejamos qualificar o grau de discriminação social e a extenção das impossibilidades a que se vê submetido o indivíduo que não dispõe de uma das capacidades biológico-sensoriais.

Individualidade e liberdade

Desconsiderando-se as situações e relações sociais deste indivíduo certamente estas discriminações parecem insignificantes e, por conseguinte, "naturais". Essa insignificância é ilustrada no seguinte: "Todos temos limitações". Estas discriminações só são insignificantes porque é quase impossível conhcer de fora as barreiras ao exercício pleno de um trabalho e a um processo amplo de educação, de desenvolvimento humano e de cidadania a que tem de enfrentar esse indivíduo no cotidiano.

Do mesmo modo, é impossível conhecer de fato as repercurssões intelectuais sobre este indivíduo em meio a uma história de negação e, contraditoriamente, de enfrentamento e superação pelo indivíduo. Se a análise sob a perspectiva individual não permite conhecer as situações concretas do indivíduo, então é preciso questionar o discurso desta natureza que faz a defesa de certos "direitos", "necessidades" e "alternativas". Ditar-lhes os caminhos a seguir sem ao menos conhecê-los significa no mínimo um autoritarismo e ousadia.

É preciso, pois, tomar os trilhos mais legítimos e mais próximos de igualdade concreta, marcada por oportunidades reais de participação e de historicidade, ou seja, o acesso pleno à escola, ao trabalho e à cidadania. É preciso "partilhar das mediações dos bens materiais, dos bens simbólicos e dos bens sociais" (Severino, 1992), recusando, de uma vez por todas, as noções vagas de superioridade, inferioridade e igualdade abstrata que se manifestam de maneira distorcida das relações e situações sociais vividas por esses indivíduos.

A existência, então, destes indivíduos deverá ser transcendida do ponto inicial aparente delimitação e abstração no sentido de antender e reivindicação fundamental como ser humano ou seja, a necessidade de se fazer histórico. Essa transcendência, pois, não se faz de maniera alguma ocupando uma função de objeto passivo e tutelado por uma consciência externa superior. Mas, é preciso ação autônoma e coletiva dos indivíduos. Como escreve Gramsci, a organização, a disciplina, o rigor, a metodicidade, são alguns dois elementos fundamentais para superação histórica da sociedade civil com um todo. (Gramsci, 1978, p.26)

Assim, organizando-se e disciplinando-se na utilização cada vez mais ampla do trabalho histórico-social como mediação entre si e sua atividade, o homem passa a dirigir sua atividade "prática" histórica.

"O homem só pode conhecer aquilo que ele é capaz de produzir" (Markus, 1974, p.71). Assim ele só vai se oranizar e se disciplinar na medida em que lhe for oportunizada a liberdade para realizar um trabalho que aponte implícita e explicitamente o germe para esta organização e esta disciplina.

Supra-histórica e irrealista seria uma análise do ser humano tendo em conta somente as manifestações de uma base axiológica da sociedade que envolve a condição pessoal do indivíduo. Mas, se investigarmos sua realidade concreta, poderemos abstraír o ser humano como síntese e resultado de suas relações. Esta abstração do ser humano não tem o sentido de estabelecer uma receita, mas significa uma mediação para situá-lo na história e projetar a transformação e o retorno às ações concretas.

Assim, este indivíduo deverá alcançar algum nível de liberdade acima daquela estabelecida pelos parâmetros dados pela sua individualidade a priori e no natural. À medida em que o homem converte para si objetos universais e, por conseqüência, converte a si mesmo como um ser único e universal, torna-se livre e novo, numa reação às colisões que separavam sua individualidade da universalidade histórica existente anteriormente. É certo, contudo, que o homem não pode ser livre idealmente em abstrato. Sua liberdade, pois, está diretamente ligada ao mundo real que lhe cerca e que produz. Considerar um indivíduo que não dispõe de uma das capacidades sensoriais como um ser livre supõe necessariamente o domínio e a apropriação por ele das mediações históricas desenvolvidas, como os mais diversos códigos de comunicação sobre toda uma base material tecnológica já existente. Contudo, concebê-lo como um ser livre, independente e superior às limitações e determinações histórico-sociais e ilusório. Deixar de considerar as implicações das cincunstâncias materiais e sociais sobre o tipo de relação social objetiva estabelecida pelo indivíduo que não dispõe de um dos recursos biológico-físico-sensoriais, sem levar em conta o grau de desenvolvimento deste momento histórico em nosso meio social não passa de uma ingenuidade. É mais do que isso, um modo abstrato de conceber a liberdade presta-se a manutenção das estruturas de poder preestabelecidas socialmente. Os indivíduos, por sua vez, permanecem, deste modo, sendo concebidos como seres não totalmente livres para ir e vir, para fazer e decidir.

Como escreve Marx: "A liberdade não é propriedade do indivíduo dada metafisicamente e muito menos um característica fixa da existência humana". A liberdade pode ser uma capacidade, uma situação, um objeto, uma necessidade, um espaço de luta coletiva, um modo novo de ampliação da comunicação entre os homens, um recurso de acesso ao trabalho, enfim, é tudo o que possa colocar o homem mais próximo da história e, por conseqüência, mais próximo de si mesmo. Cabe ao trabalho histórico dos homens, portanto, negar e superar tudo que os limita socialmente.

  • GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p.25-26.
  • LÚRIA, Alexandre Romanovich. Desenvolvimento cognitivo São Paulo : Icone, 1990.
  • MACHADO, Maria Terezinha C.; ALMEIDA, Marlene Conceta O. Ensinando crianças excepcionais Rio de Janeiro: José Olímpio, 1969.
  • MARKUS, Gyorgy. Marxismo Y 'antropologia' Barcelona: Gribaldo, 1974, p.71.
  • MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro I. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988.
  • OLIVEIRA, Martha Kohl. Vygotsky Aprendizado e Desenvolvimento um Processo Sócio-Histórico São Paulo: Scipione, 1995.
  • SEVERINO, Antônio Joaquim. A escola e a construção da cidadania: Sociedade Civil e Educação. Campinas: Papirus, 1992. (C.B.E.
  • TELFORF, Charles W. O indivíduo excepcional Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Mar 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 1994
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