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Editorial

Editorial

Este número do Educar em Revista está sendo editado em tempos marcados pela profunda crise institucional que as Universidades Brasileiras enfrentam, no âmbito da crise da escola pública, cujos contornos são definidos pela crise do Estado nacional em tempos de globalização da economia, particularmente acirrada no caso brasileiro contemporâneo, dadas as condições históricas de seu desenvolvimento econômico e das decorrentes formas de administração pública.

A necessidade de enfrentamento urgente, e competente, da crise do Estado, que o coloca diante da necessária superação da ambigüidade de sua face patrimonialista/burocratista como imperativo de minimização dos efeitos da crise fiscal, faz emergir um conjunto de propostas de reforma que abrangem, na dimensão institucional/legal, as formas de organização do Estado com profundas repercussões no financiamento das políticas sociais.

No caso específico da educação, estas propostas atingem radicalmente a concepção de "público", de sistema educacional e de definição de responsabilidades quanto ao financiamento.

Sem pretender esgotar este debate mas apenas registrar as peculiaridades do momento em que esta revista está sendo editada, para que possamos entender o seu significado, serão pontuadas algumas questões.

Do ponto de vista institucional/legal, enfrentamos o processo eminentemente autoritário de reformulação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, complementada pela proposta de lei que regulamenta o ensino profissionalizante, já encaminhada ao Congresso Nacional.

Sem qualquer espaço para debate com os grupos organizados da sociedade civil vinculados à educação, que em etapa anterior tiveram ampla participação nas discussões que culminaram com o projeto do deputado Jorge Hage (as demais versões já foram objeto de negociações no âmbito do Congresso, acolhendo interesses de segmentos específicos), a nova LDB será aprovada abrigando concepções que ferem todo o avanço histórico da teoria e da política educacional, construído neste século não sem poucos embates, como o inquestionável direito de todos os cidadãos à educação pública em todos os níveis, sem negar direito à iniciativa privada.

Assim é que vão sendo extirpadas do texto da lei, sem espaço para negociação, os historicamente construídos conceitos de educação pública gratuita em todos os níveis, assegurada pelo Estado e a ser atingida progressivamente; da escola única, não-dualista, que assegure a todos o direito à educação básica até o 2.º grau, como requisito indispensável ao acesso ao conhecimento científico-tecnológico; de Sistema Nacional de Educação, financiado de modo compartilhado pelas instâncias do poder público e promovedor da necessária articulação entre graus e modalidades de ensino, de modo a assegurar o direito de acesso a crianças, jovens e adultos, trabalhadores ou não, e o livre trânsito entre as modalidades (regular, supletiva e profissionalizante) assegurando-se a equivalência.

Contrariamente, aprovada a LDB e o PL 1603/96 reconhece-se o direito à certificação de série, podendo o aluno encaminhar-se para o ensino profissional independentemente de escolaridade prévia.

Ao mesmo tempo, a proposta para o ensino profissional desvincula de vez o ensino médio propedêutico, para preparar dirigentes, do ensino profissionalizante, retomado na sua visão dos anos 50, como profissionalização stricto sensu a ser conferida por "módulos", tanto quantos o aluno deseje, independentes entre si, em locais diferentes, com duração de um semestre!

Reintroduz-se, portanto, no texto da legislação educacional, a dualidade estrutural que havia sido extirpada já na legislação da ditadura, rendendo-se à evidência da necessária extensão da educação básica e da oferta de formação científico-tecnológica abrangente, aprofundada e coetânea das demandas de qualificação do profissional de novo tipo, exigido por esta etapa de desenvolvimento do capitalismo, marcada pela globalização da economia, pelas inovações tecnológicas e pelas novas estratégias de organização e gestão da produção.

No nível das competências, instala-se um verdadeiro embrulho: o Estado repassa a responsabilidade pela alfabetização e educação básica dos trabalhadores, o que seria sua função, para as empresas. E toma a si a responsabilidade pelo treinamento profissional, que sempre foi de competência da empresa, que tampouco pretende delegá-la; neste roldão, o MEC atropela os CEFETs, Escolas Técnicas e agências de formação profissional, que, por determinação das novas formas de organização e gestão da produção e das inovações tecnológicas, já estão em amplo processo de superação de sua ambigüidade, buscando a correta relação entre educação básica e educação científica e tecnológica, já incorporando a noção de cidadania. Estas instituições, pela nova proposta, são compelidas a voltar à velha proposta de dualidade, atendo-se exclusivamente à educação profissional stricto sensu.

Em resumo, ao contrário do que aponta o movimento do mundo do trabalho nesta etapa de desenvolvimento, já enfrentada pelos países que pretendem responder seriamente às questões postas pela construção da cidadania, temos uma legislação retrógrada, anacrônica, filha do paradigma taylorista/fordista, adequada para a década de 50, mas absolutamente superada pelas novas bases materiais de produção.

O inquestionável direito de todos os cidadãos à educação básica que progressivamente atinja o 2.º grau passa a ser limitado, comprometendo-se o poder público com os pobres e desvalidos de sorte, ao sabor do velho assistencialismo que ainda tinha a ótica do direito à cidadania como "caridade cristã", ao bom estilo do paternalismo típico do estado patrimonialista e, pelo menos nesta dimensão, buscando ser superado nas últimas décadas.

O que está por trás do discurso, com certeza, é a redução do déficit público através da diminuição dos custos das políticas sociais, dentre elas o da educação.

A crise das Universidades Públicas tem sido agravada pelas mesmas determinações. Os recursos para outros custeios e capital, historicamente decrescentes, não têm ultrapassado 5%; neste ano, isto significa, para o Setor de Educação, manter-se por todo o exercício com 41 mil reais! Para manutenção, ensino, extensão, participação em eventos, publicações, realização de seminários e intercâmbios e outros projetos prioritários, como a continuidade da reformulação do currículo do Curso de Pedagogia, o enfrentamento da formação pedagógica de 14 licenciaturas, a consolidação da pós-graduação, incluindo a ampliação da oferta de especializações e a criação do doutorado, a avaliação institucional, a revisão dos critérios de seleção pelo vestibular, só para citar os mais relevantes! Sem falar que não há recursos para capital, inviabilizando as aquisições de material permanente.

A autonomia, uma das nossas mais caras concepções, tem sido apropriada pelo discurso oficial como forma de escamotear e desresponsabilizar o Estado pelo financiamento, através de formas jurídicas pouco claras, que escondem o privado sob a face do público, tal como acontece com a proposta das organizações sociais.

Que autonomia, se os controles de pessoal, da movimentação financeira e do orçamento são centralizados através do SIAPE, SIAFI e SIDOR?, se o excesso de quadros é definido pelo MARE e a avaliação externa pretende se processar não interpares mas através de exames nacionais que não consideram as diferenças e as especificidades?

Nossos doutores, qualificados a duras penas com recursos públicos e com o compartilhamento pelos parceiros dos encargos didáticos, são estimulados a aposentadorias precoces pelas confusões que o próprio Governo cria. As vagas ocorridas após 31/03/95 não podem ser preenchidas, recriando-se a figura do professor substituto, de caráter precário, contratado para 20 horas por aproximadamente 300 reais ou 450 reais caso seja graduado ou mestre. Apesar do esforço e dedicação dos professores substitutos, muitos dos encargos não podem ser por eles exercidos, por exigências regimentais, sobrecarregando-se sobremaneira os professores do quadro, que têm acumulado número excessivo de aulas, muitas vezes em disciplinas diferentes, com atividades de pesquisa e extensão, produção científica, orientação acadêmica, atividades administrativas, que vão desde os encargos de gerência à participação em comissões de várias naturezas, inclusive as destinadas às atividades substantivas, como conselhos editoriais, comissões para avaliar o desempenho em estágio probatório, para organizar os estágios e práticas de ensino, para acompanhar o novo currículo, organizar a discussão do projeto das licenciaturas, avaliar o vestibular, desencadear o processo de avaliação institucional! E por salários que chegam, no máximo, a 1.500 reais para os que têm mestrado e dedicação exclusiva.

Com relação ao quadro técnico-administrativo, a realidade é a mesma. Em pleno processo de reorganização administrativa, tem-se que atender às tarefas rotineiras, avaliar os problemas organizacionais e os derivados das rotinas cristalizadas e ineficientes e criar novos métodos de organização e gestão e trabalho. Sem possibilidade de reposição de nenhuma vaga, com apenas 22 servidores para o apoio a todo o Setor, quatro para o Centro de Assessoramento Pedagógico e quatro para a Univídeo, ao mesmo tempo não há recursos para contratar serviços de consultaria que agilizem a reorganização e tampouco para comprar equipamentos! Seus salários médios estão entre 300 e 600 reais, para os níveis de auxiliar e médio, e 800 1.000 para o nível superior.

E no entanto, o Setor de Educação desenvolve seus projetos! Este número da Educar em Revista é um exemplo de sua produtividade. Apesar dos baixos salários, das precárias condições de trabalho, dos 15 meses sem reposição salarial, dos excessivos encargos e dos efeitos do financiamento sobre a pesquisa e sobre as estratégias de qualificação permanente, os servidores - docentes e técnico-administrativos - e os alunos do mestrado entregam à comunidade a sua produção, como resposta às críticas das quais temos sido pelo próprio Estado, com profundas repercussões no imaginário que se constrói na sociedade civil.

"Não tem asas, mas voa!" já dizia o professor Saviani, em outros tempos e circunstâncias!

E voa, não pela existência de boas condições de trabalho, mas pela teimosia de um grupo de servidores universitários que acredita radicalmente na Universidade como espaço de crítica, de manifestação da pluralidade das idéias, no compromisso com o público, na possibilidade da construção histórica da cidadania no âmbito do processo de construção da sociedade que sonhamos - efetivamente democrática, justa e igualitária, onde cada homem e todos os homens tenham, através da organização coletiva, a possibilidade de se desenvolver integralmente, de participar, de construir e ser plenamente!

Já firmávamos em outro Editorial (Educar em Revista n.º 10), que é preciso acreditar, ao responder às críticas com nossa participação política e com nosso trabalho, que, por sobre a crise, é possível construir um Setor e uma Universidade fortes, comprometidos e unificados no mesmo projeto: a construção da escola pública de qualidade como direito de cidadania, inserida no bojo do processo de construção da sociedade democrática.

Há um ano, falávamos d expectativa; hoje entregamos à comunidade um dos frutos do trabalho de um conjunto de servidores que se faz cada vez mais produtivo sem abrir mão do seu direito à denúncia e à reivindicação de condições dignas de salário e de trabalho, e que continua, apesar das dificuldades, movido teimosamente pela crença, a partir da nossa utopia, de que é preciso - e possível - transformar!

Curitiba, 22 de abril de 1996.

Acácia Zeneida Kuenzer

Diretora do Setor de Educação

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Mar 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 1996
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