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A região cultural da bioética no Brasil

DOSSIÊ (A) - A BIOÉTICA / DOSSIÊ (B) - LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL

A região cultural da bioética no Brasil

Cassiano Cordi

Professor do Departamento de Filosofia, Universidade Federal do Paraná

O aumento da capacidade do homem de intervir sobre a vida nas últimas décadas condicionou o aparecimento de uma reflexão organizada sobre os problemas normativos decorrentes das reais possibilidades de gerir o mundo vivo.

O nome designado para indicar este espaço cultural foi formalizado como "Bioética" e aceito pela comunidade científica. Com efeito, a clássica Encyclopedia of Bioethics de 1978 define a bioética como: "O estudo sistemático da conduta humana na área das ciências da vida e da cura da saúde, enquanto tal conduta vem examinada à luz dos valores e dos princípios morais".

Uma das características da região cultural da bioética cultural da bioética é que ela não é delimitável a uma única disciplina. A bioética é essencialmente um estudo interdisciplinar: os problemas são analisados por diferentes disciplinas que podem contribuir igualmente, sem uma hierarquia predeterminada, para a solução da questão.

Devido exatamente a sua interdisciplinaridade a bioética instaura uma situação de colaboração entre os cientistas e os especialistas em ética que representa, até certo ponto, algo de novo. Pois, os profissionais da ética, tradicionalmente, eram mais preocupados em manter uma orientação sobre os resultados científicos do que participar de um diálogo "entre iguais" para estabelecer normas que, às vezes, na sua gestação, envolveram de modo dramático competências científicas e tecnológicas a procura do agir responsável.

A ética da sacralização da vida

Uma das condições fundamentais para que a bioética possa vicejar na cultura atual é que os especialistas em ética superam uma série de preconceitos triunfalistas do passado. Com efeito, não faz muito tempo que o Ocidente, sob uma poderosa orientação religiosa, fazia da ética algo de estritamente vinculado à religião e acima das razões científicas. A ética, assim concebida, trazia princípios absolutos, sagrados e que interpretavam a natureza humana de forma definitiva. As finalidades do homem eram engendradas em uma cosmovisão salvífica fechada e, portanto, sem possibilidade de divergências ou "desvios perigosos".

Esta visão religiosa e sagrada da ética tinha como horizonte teológico o dogma do pecado original enquanto o homem, ao perder a amizade com Deus, teria caído sob o domínio das paixões e pedido o norte moral. Portanto, somente uma ética sustentada por uma religião divina poderia orientar os homens de forma segura e absoluta, denunciando a cada época fraquezas humanas, ou o orgulho da razão em argumentar por si mesma.

Assim sendo, a teologia e a ética eram consideradas como ciências superiores perante as disciplinas empíricas tidas como de segunda ordem e que deviam ser constantemente vigiadas e combatidas quando de alguma forma colocassem teses divergentes com o "saber da salvação".

A ética, com ciência superior, defendia de forma tonitruante o valor do sagrado da vida humana - raramente dos outros seres vivos - alcançando grande efeito a nível de oratória. Porém, o conceito de vida estava embutida numa antropologia arcaica: o homem possui uma natureza fixa, sua natureza foi dada por deus de forma definitiva, as leis desta natureza nunca podem ser alteradas ou adaptadas, não existe similaridade entre os outros animais e o homem, a liberdade e a responsabilidade devem obedecer à natureza e, enfim, os seus princípios éticos são auto-evidentes e dispensam qualquer dúvida por parte do homem "sensato".

Logo, pode-se sintetizar esta forma tradicional de conceber a ética como "Uma ética da sacralização da vida" A sua incompatibilidade com uma mentalidade interdisciplinar é visceral. Não tem condição alguma de empreender um diálogo "entre iguais" sobre assuntos de bioética enquanto sua antropologia de fundo é tida como irremovível.

Uma ética da sacralização da vida não seria viável nem em um diálogo interconfessional, pois cada religião manteria a sua salvação como finalidade dos princípios éticos e usaria a sua antropologia como hermenêutica para uma normatização. Poderia haver algum acordo generalíssimo, mas certamente nas questões mais específicas seria um diálogo de surdos.

Pode-se objetivar que, hoje em dia, esta ética da sacralização da vida desapareceu ou que os seus representantes são totalmente anacrônicos. Mas, o que pode ser observado é que a bioética achou o ambiente propício para a sua fundamentação nos Estados Unidos, onde existe uma cultura propícia para a interdisciplinaridade. Na Europa a expasão foi muito mais lenta e a bioética está recebendo enormes investimentos por parte dos católicos ou da hierarquia católica para não perder a hegemonia no campo ético sobre o qual tradicionalmente ela tem um espaço cultural significante.

Na Itália estas manobras de manter o valor sagrado da vida chega a ser escandaloso. Os livros católicos sobre bioética são luxuosos, apoiam pensadores europeus e norte-americanos da mesma orientação; deixam na sombra correntes divergentes. Os comitês de bioética nos hospitais são integrados por pessoas "fiéis".

Aquilo que deveria ser uma conquista da mentalidade leiga, isto é, a bioética, tronou-se uma nova roupagem da mentalidade sacra e extremamente sofisticada.

Mister é, portanto, não desprezar a realidade histórica da ética e da sacralização da vida e, em vista da construção de uma bioética realmente interdisciplinar e leiga, saber reconhecer criticamente as ingerências diretas ou indiretas de ética confessionais.

As éticas da qualidade de vida

Com a secularização da cultura ocidental a ética experimentou uma expansão pluralista. Hoje fala-se em "éticas" e não mais em "a ética".

O pluralismo ético pe principalmente devido à crítica filosófica das evidências no conhecimento. Afirma-se que toda evidência é construída, isto é, não é um elemento puro ou original a ser encontrado dentro do homem pela reflexão. Não existem pontos de partida a serem descobertos na interioridade da experiência humana com evidências absolutas, fixas e acima da evolução histórica, social e econômica. Toda evidência é feita.

Para tanto, o pluralismo ético é a conscientização de que existem muitos modos de abordagem nos temas problemátios para estabelecer um crescimento humano responsável.

A preocupação dos profissionais em éticas, não é tanto estabelecer uma escala de valores inata ou a procura de princípios eternos ou a descoberta de uma base irrefutável; mas, as atenções são voltadas, primordialmente, para o uso do pluralismo ético na solução mais adequada para atingir uma melhor qualidade de vida.

Os avanços científicos e tecnológicos no estudo da vida e da saúde na região cultural da bioética são enfocados não para redimir questões de divergências entre as deferentes éticas. Pelo contrário, as diferentes éticas são testadas para ver o grau de qualidade de vida sugerido. Seja como for, a validade das éticas é aprovado pelas suas implicações de utilidade real no processo de descortinamento de respostas humanizantes.

Apesar da multiplicidade das éticas na interdisciplinaridade da bioética, a condição fundamental da argumentação lógica e a justificação racional nunca podem ser abandonadas. Aliás, o que se prima nos debates é de nunca recorrer a "revelações" ou a autoridades externas à razão. Logo, se houver algum representante envolvido com alguma confissão religiosa sua argumentação será aceita na medida que seja claramente lógica-racional.

Outro aspecto específico da interdisciplinaridade bioética pe que a presença de especialistas em ética não é indispensável. Poder-se-ia pensar que os trabalhos bioéticos ficam suspensos até o profissional em éticas dar seus vereditos racionais e conclusivos. Em suma, fazer depender da sua participação a validade de todo o trabalho realizado.

Está aí, uma das maiores lições da interdisciplinaridade: todo cientista na sua própria ciência tem a sua avaliação moral dulta e suficiente para debater e defender o seu ponto de vista responsavelmente. E, como a bioética não é uma ciência, mas o encontro de cientistas que tomam decisões sobre a qualidade de vida, expressando dessa forma plena a sua cidadania e apreciando circustâncias históricas do seu próprio ambiente cultural, eles são auto-sufucientes, a pleno título, na tarefa que estão absolvendo.

Logo, o estudioso de éticas não tem cadeira cativa na bioética. Ele pode ser convidado em casos excepcionais de impasses teóricos, como às vezes são convidados lógicos. Nada impede que os convites se tornem uma presença normal, mas sempre como convidado.

Exigir que o teólogo, o filósofo e o etudioso de éticas sejam sempre presentes denuncia, normalmente, uma mentalidade triunfalista do espaço religioso, ético e filosófico de cunho hierárquico que aniquila a maturidade dos cientistas.

Difiuldades da região cultural da bioética no Brasil

Poucas chances existem na cultura brasileira de haver, a curto ou médio prazo, um espaço cultural próprio para o debate bioético. A primeira e grande dificuldade certamente é a presença maciça da ética da sacralização da vida sustentada pela religião católica. Se este tipo de ética religiosa precisa de novas camuflagens históricas para sobreviver na Europa, no terceiro mundo católico, onde a sua dominação ideológica conseguiu impedir e censurar a cultura moderna como um todo, ela está atuando de face descoberta, sem o menor pudor.

Na grande maioria das universidades católicas latino-americanas a visão hierárquica do saber transpira por todos os poros institucionais e ritos culturais. O recente congresso de filosofia em Quito no Equador foi uma impressionante manifestação da "superioridade" dos teólogos e dos filósofos sobre todas as outras ciências. Foi um retorno à mais pura Idade Média. Uma demonstração palpitante que os leigos devem é obedecer às "revelações" e que um diálogo "entre iguais" em campo bioético poderia ser realizado apenas daqui cem anos.

No Brasil, a crítica à dominação cultural católica em campo ético está ainda em fase de gestação. Não existe espaço para o seu nascimento. A presença religiosa nas comunidades de base é o sinal mais eloqüente que a igreja católica se acha com o direito de "orientar" biblicamente a conscientização política dos leigos "desamparados". Em outras palavras, para que um trabalho de interdisciplinaridade a nível bioético se realize no Brasil, é necessário que a cultura leiga declare a sua independência e que a secularização do saber adquira sua autonomia. E isto, não como uma realização ideológica, mas como argumentação sólida e perspicácia pluralista.

Para complicar a possibilidade de autonomia da ciência no Brasil está o fenômeno da grande expansão de novas confissões religiosas que, no fideismo que as tempera, parecem deixar a ciência mais livre, mas de fato são absolutistas no campo moral e antropológico.

Quanto ao estudo do pluralismo ético, no Brasil é visto como uma necessidade de atualização do ensino nas universidades federais. A ética dialética cansou os seus mentores que conjuntamente com a queda do Muro de Berlim começaram a procurar alternativas. A tendência é, de fato, incorporar rapidamente no ensino "as éticas" com suas comparações críticas, suas estruturas e aplicabilidade em uma sociedade democrática.

Outro ponto a ser ressaltado, não menos importante que os anteriores, como fator limitante da possibilidade de uma região cultural de bioética no Brasil, é a falta de estudos de epistemologia. Devido a herança positivista e ao combate incipiente realizado pelos dialéticos dogmáticos e neokantianos culturalistas, as análises críticas das ciências sempre ficaram obscuras ou até pernósticas. Correntes inteiras da epistemologia contemporâneas ficaram silenciadas. E, se as ciências humanas receberam atenções especiais, as ciências exatas e biológicas ficaram na infantilidade crítica. Tudo isso é extremamente grave, pois o diálogo entre as diferentes ciências no objetivo comum de encontrar soluções de uma qualidade de vida melhor, mister é, conhecer criticamente a própria ciência a nível epistemológico, seja ela no campo da natureza ou restrita à realidade humana ou envolvendo ambas.

Todos esses limites ou condicionamentos negativos podem ser superados e a criação de uma região cultural para a bioética no Brasil certamente será um marco de enorme relevância para indicar uma nova etapa cultural: a maturidade para a interdisciplinaridade responsável.

Conclusão

O agir responsável da conduta humana na área da vida e da cura da saúde é um desafio feito à comunidade científica para um trabalho interdisciplinar que pressupõe uma consciência epistemológica e um ambiente cultural de pluralismo ético voltado para uma melhoria da qualidade de vida do cidadão e da sociedade.

No Brasil, a região da cultura da bioética está historicamente imatura seja pela pouca difusão da epistemologia, seja pela presença maciça de uma ética da sacralização da vida sustentada por confissões religiosas. Além disso, falta uma prática interdisciplinar de diálogo entre ciências exatas, biológicas e humanas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Mar 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 1995
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