Acessibilidade / Reportar erro

A pré-história da mente: uma busca das origens da arte, da religião e da ciência

RESENHAS

A pré-história da mente - uma busca das origens da arte, da religião e da ciência

Nara L. C. Salamunes

Mestre em Educação - Universidade Federal do Paraná (UFPR). Doutoranda em Informática na Educação - Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

MITHEN, S. A pré-história da mente - uma busca das origens da arte, da religião e da ciência. São Paulo: Unesp, 2002

Considerando que a chave para o entendimento da mente moderna está situada no período aproximado de seis milhões de anos de evolução que separam as mentes humanas das dos chimpanzés, após terem tido estas espécies um ancestral comum, Steven MITHEN, arqueólogo nascido na Inglaterra, pretende realizar a união das subdisciplinas "Arqueologia cognitiva" e "Psicologia evolutiva" no livro A pré-história da mente, publicado originalmente em inglês, em 1996. Registrando os principais achados arqueológicos ocorridos até metade dos anos noventa, que nos permitem supor as ações desenvolvidas por nossos ancestrais ao forjarem sua sobrevivência, MITHEN indica os principais instrumentos utilizados por eles e suas transformações ao longo do tempo. Com base em resultados de pesquisas arqueológicas significativas e extensamente indicadas, ele faz um belo registro das interpretações sobre o aparecimento do Homo sapiens sapiens, afirmando que, até isso acontecer, não havia arte, religião ou ciência. Infere sobre diferentes processos adaptativos que se desenvolveram em diferentes períodos evolutivos dessa espécie, e, apoiando-se na Psicologia, acredita que a partir da arquitetura mental humana da atualidade, construída durante milhões de anos de evolução, pode-se refazer a pré-história da mente.

Seu interesse sobre o assunto se deu a partir da leitura de um artigo de Thomas WYNN, de 1919, que alegava que a mente humana está pronta há 300 mil anos. WYNN afirmara isso tomando por base o machado de mão fabricado pelo Homo erectus e pelo Homo sapiens arcaico, e, apoiando-se na idéia de que a ontogênese recapitula a filogênese, de Ernest HAECKEL, buscara nos períodos de desenvolvimento infantil descritos por Piaget os argumentos para sua alegação. Para WYNN, os criadores do machado de mão possuíam um pensamento operatório-formal, pois, para produzirem tal ferramenta, precisariam elaborar hipóteses sobre que movimentos aplicar para chegarem ao formato desejado. No entendimento de WYNN, isso evidenciaria que a mente da queles ancestrais era compatível à mente do homem atual, pois teria chegado ao nível máximo de desenvolvimento intelectual descrito por PIAGET. MITHEN se pergunta se o aparecimento da arte e a colonização global não teriam exigido novas bases cognitivas e considera que WYNN estaria certo ao se apoiar nas explicações psicológicas disponíveis ao seu tempo para supor o funcionamento intelectual dos ancestrais, a partir dos vestígios deixados por eles, e por buscar a teoria da recapitulação de HAECKEL. Embora MYHEN não esteja convicto de que ocorra a recapitulação da evolução da mente durante o desenvolvimento, ele adota o procedimento de WYNN para propor as fases arquitetônicas da evolução da mente. E se pergunta: existirá uma correspondência entre os estágios de desenvolvimento das mentes das crianças atuais e a evolução das mentes dos ancestrais humanos?

Ao discutir proposições teóricas diferentes das de PIAGET, as quais reduz à concepção da mente como uma esponja ou um computador, MITHEN apresenta as idéias de Jerry FODOR, de Howard GARDNER e dos evolucionistas COSMIDES e TOOBY. Discute ainda temas como psicologia, biologia e física intuitiva e, a partir disso, constrói seus argumentos sobre a arquitetura mental moderna. MITHEN se indaga se FODOR não vê modularidade nos sistemas centrais da mente pela dificuldade que normalmente se tem de observar as "inteligências" trabalhando em harmonia, como expõe GARDNER, e busca nos trabalhos de Leda COSMIDES e John TOOBY, psicólogos evolucionistas, a resposta a essa questão. Esses autores afirmam que a mente é um mecanismo evoluído, construído e ajustado em resposta às pressões seletivas enfrentadas pelos ancestrais da espécie humana no período Pleistoceno e que as mentes atuais permanecem adaptadas à caça e à coleta. Acreditam eles que a mente é composta por módulos múltiplos, decorrentes dos processos de seleção natural ocorridos na lida humana a partir de determinados problemas adaptativos. Tais módulos estariam embutidos na mente ao nascer e seriam universais entre as pessoas, sendo ativados em diferentes momentos do desenvolvimento individual, fornecendo regras e informações para resolução de problemas. Com isso, os ancestrais humanos teriam tido vantagens seletivas e seus genes teriam se espalhado pela população, codificando tal organização mental em seus descendentes.

MITHEN lembra que caçadores-coletores modernos, existentes em algumas partes do mundo e estudados por representantes da antropologia, ao forjarem sua sobrevivência, não estão a resolver um único problema adaptativo, mas a mediar suas ações também pela conotação social que estas apresentam. Como era de se esperar, MITHEN questiona se os módulos mentais atuais refletem a estrutura do mundo pleistoceniano. Recorre, então, a estudos da psi-cologia do desenvolvimento: reinterpreta resultados; tenta abolir a idéia de uma arquitetura mental estritamente modular e busca Dan SPERBER, que considera a possibilidade de existir o "módulo da meta-representação", isto é, um módulo que abrigaria "conceitos de conceitos" e "representações de representações". O autor se pergunta como teria evoluído esse módulo descrito por SPERBER ou como a mente teria evoluído para acontecerem interações entre os diferentes domínios cognitivos e propõe uma história evolutiva da mente.

Usando as informações ontogenéticas de que dispõe, o autor explica que o processo de seleção natural moldou a formação da mente moderna. Considerando impossível separar o ambiente de desenvolvimento dos efeitos dos genes, ele descreve três fases arquitetônicas da evolução da mente. Na primeira, haveria regras de aprendizado geral, caracterizadas por serem utilizadas em diferentes domínios do comportamento e não apresentarem complexidade; na segunda fase, as mentes seriam capazes de gerar pensamentos complexos sobre fabricação de utensílios, história natural e interação social. Haveria três inteligências especializadas responsáveis por domínios específicos e exclusivos: a inteligência social, a inteligência naturalista e a inteligência técnica. Essas inteligências não interagiriam entre si. Pensamentos e comportamentos que precisassem de conhecimentos relativos a diferentes inteligências recorreriam à inteligência geral. Na terceira fase, a característica fundamental seria a interação entre domínios cognitivos ao que ele chama de fluidez cognitiva.

Para ele, portanto, há quarenta mil anos houve uma mudança na mente humana que transformou uma série de domínios cognitivos independentes numa outra série, em que as idéias, as formas de pensamento e o conhecimento passaram a fluir livremente entre os domínios. A primeira das inteligências especializadas, a inteligência social, teria sido invadida por informações não sociais. Os indivíduos que exploraram esse fato teriam tido vantagens no processo de seleção natural. O passo principal para evolução da mente moderna teria sido a passagem da mente especializada para a generalizada, o que capacitou as pessoas a desenhar instrumentos complexos, criar arte, ter crenças religiosas e fazer ciência. Para MITHEN, foi a mente com fluidez cognitiva, que apareceu durante o Paleolítico Médio e Superior, que tornou possível o modo de vida agrícola e contém as raízes do mundo moderno

Além da extensa revisão bibliográfica que constitui os argumentos de Mithen na elaboração de suas idéias sobre a pré-história da mente, um outro aspecto que chama a atenção em seu livro são as referências que faz a Jean Piaget. Interpretações equivocadas que MITHEN faz das idéias desse autor prejudicaram, em parte, o resultado de seu trabalho. Não se pode concordar com a afirmação de que PIAGET vê a mente como uma esponja ou um computador, pois, ao contrário, PIAGET aponta as limitações das perspectivas condutistas por não considerarem que o sujeito é ativo no processo de conhecer. As ações e a sua relação com o funcionamento e o desevolvimento mental são desprezadas por MITHEN em todo o seu livro, apesar de VYGOTSKY, WALLON e PIAGET registrarem que é delas que se chega ao pensamento. Como se falar da origem da mente humana desconsiderando a idéia de que o fazer, isto é, a transformação ativa, precede o compreender? Se as afirmações e estudos de PIAGET sobre a questão não são satisfatórias, por se basearem nos estudos das ações e reações de crianças e adolescentes, como insinua MITHEN, talvez estudos com animais possam indicar algumas evidências: animais resolvem problemas que, obviamente, não compreendem logicamente. Mesmo que não se concorde que a origem do pensamento está na ação e sim o contrário, como sugere LÉCUYER (2002), não se pode deixar de tocar na questão ao se falar nos processos de formação da mente. Se entre os seres humanos decisões e estratégias são tomadas muitas vezes sem que o sujeito saiba o porquê, será que as ações dos ancestrais humanos não tiveram papel fundamental na pré-história da constituição da mente do Homo sapiens sapiens?

MITHEN, nesse livro, inclui a idéia de que a cognição influencia apenas marginalmente a percepção. Essa dicotomia entre percepção e processos cognitivos, que ele busca em FODOR, também foi denunciada por PIAGET. Para este, a percepção é a tomada direta de contato entre atividades perceptivas exercidas pelo sujeito ao prolongar esquemas assimiladores de ação com os objetos do meio. Nessa perspectiva, a percepção nunca é independente da ação; é um prolongamento da assimilação e da organização vital, portanto, constituinte da cognição. De forma reducionista, ele afirma que Piaget argumenta a existência de três programas de utilidade geral rodando na mente: a assimilação, a acomodação e a equilibração. Ora, para PIAGET (1976) assimilação e acomodação são dois processos fundamentais que constituirão os componentes de todo equilíbrio cognitivo. O primeiro é a incorporação de elementos exteriores aos esquemas sensoriomotores ou conceituais do sujeito. O segundo é a necessidade em que se acha a assimilação de levar em conta as particularidades dos elementos a serem assimilados. O equilíbrio entre esses dois processos indissociáveis pode ser definido como adaptação. A equilibração, ou sistemas processuais múltiplos e permanentes de autoregulação (PIAGET, 1983), cujas formas superiores compõem as operações da inteligência é, juntamente com a maturação biológica, as experiências físicas e lógico-matemáticas e as interações sociais, fator de desenvolvimento cognitivo. Se tais processos, simplificadamente aqui apresentados, são in-terpretados como um "programa geral", é de se desafiar sua replicação em sistemas informáticos. Somente assim talvez se possa imaginar um programa que se autoconservasse, fosse auto-regulável e, ao mesmo tempo, construísse formas continuamente mais elaboradas de processos adaptativos aos diferentes contextos. É isso que acontece com o sujeito estudado por PIAGET. As fases de desenvolvimento que ele descreve, acrescente-se, são subproduto de sua teoria, mas facilmente verificáveis transculturalmente. Concordamos com MITHEN quando afirma que WYNN estava certo ao buscar os estudos ontogenéticos de PIAGET, mas não por ele tentar estabelecer os paralelismos simplificados entre o desenvolvimento filogenético e ontogenético da espécie humana, como tenta fazer MITHEN, reunindo forçosamente diferentes explicações teóricas. WYNN estava certo por buscar resultados de pesquisas que adotaram o método ontogenético de análise com rigor.

Um dos méritos de MITHEN nesse livro é trazer resultados de pesquisas situadas em diferentes concepções epistemológicas, evidenciando aspectos plausíveis de cada uma delas. Ele acaba por revelar que concepções inatistas permanecem presentes nas tentativas de explicação da organização e do funcionamento mental, apesar de evidências empíricas mostrarem que elas em si são insuficientes. Não é por outra razão que educadores, psicólogos e arqueólogos não iniciados na teoria piagetiana titubeiam entre o empirismo e o inatismo.

MITHEN faz uma concatenação cuidadosa das interpretações que seleciona sobre a mente, mas comete deslizes ao avançar na análise de áreas diferentes da arqueologia, sua área específica de atuação. O apontamento de alguns desses deslizes não significa que a tentativa de leitura interdisciplinar seja inválida, mas sua retomada carece de um estudo cuidadoso de algumas proposições teóricas. Ao falar da modularidade da mente segundo KARMILOFF-SMITH, ele sequer aborda o domínio notacional que essa autora salienta como um domínio específico de conhecimento em pé de igualdade ao lógico-matemático, ao físico e ao lingüístico e isso tem significativa relação com o aparecimento da arte, da escrita e com a capacidade de se produzir ciência, entre outros aspectos. Entende-se que a fluidez cognitiva proposta por MITHEN tem compatibilidades com a teoria da equilibração de PIAGET, embora MITHEN não tenha se permitido tomar consciência desse aspecto. Fica o desafio de se pensar a fluidez cognitiva para além das inteligências múltiplas e dos módulos mentais e de se continuar investigando se ela já não estaria presente na mente humana dos caçadores e coletores, ao que o estudo de MITHEN não parece responder suficientemente. Em que pese sua argumentação elaborada, ressalte-se um estudo interdisciplinar deve buscar superar a justaposição de disciplinas, de concepções e de enunciados para alcançar avanços em diferentes contextos teóricos e procedimentais. Isso só é possível pelo esforço contínuo e coletivo de busca da supressão de distorções e de omissões de resultados de pesquisas das diferentes disciplinas.

Texto recebido em 14 jul. 2004

Texto aprovado em 18 ago. 2004

  • LÉCUYER, R. Do pensamento ao ato. In: HOUDÉ, O; MELJAC, C. (Org.). O espírito piagetiano Porto Alegre: Artes Médicas, 2002.
  • PIAGET, J. Equilibração das estruturas cognitivas Rio de Janeiro: Zahar, 1976.
  • ______. Problemas de psicologia genética São Paulo: Victor Civita, 1983. (Os pensadores)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Mar 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 2004
Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná Educar em Revista, Setor de Educação - Campus Rebouças - UFPR, Rua Rockefeller, nº 57, 2.º andar - Sala 202 , Rebouças - Curitiba - Paraná - Brasil, CEP 80230-130 - Curitiba - PR - Brazil
E-mail: educar@ufpr.br