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Entre o indivíduo e a sociedade: um estudo da filosofia da educação de John Dewey

RESENHAS

Entre o indivíduo e a sociedade: um estudo da filosofia da educação de John Dewey

Susanne Dorothea Walker

Professora do Colégio Bom Jesus, Curitiba (PR). Especialista em Lingüística Aplicada ao Ensino de Língua Materna. Mestranda em Educação na Universidade Federal do Paraná. susiwalker@uol.com.br

MOREIRA, Carlos O. F. Entre o indivíduo e a sociedade: um estudo da filosofia da educação de John Dewey. Bragança Paulista: EDUSF, 2002.

Em muitas ocasiões, interessamo-nos pela leitura de uma obra por causa de seu título. No caso do livro de Carlos Moreira, há um universo temático ali presente que aguça nossa curiosidade: a relação traçada por John Dewey (1859-1952), expoente do pragmatismo norte-americano, entre indivíduo e sociedade no campo educacional. "Pragmático", na acepção corrente, sugere a satisfação imediata de necessidades e desejos individuais por meio de um cálculo mental, sem levar em conta princípios teóricos ou morais. Nesse contexto, como entender, portanto, a relevância da temática social na obra de alguém que aparentemente não a conceberia como elemento relacional importante na constituição da subjetividade?

O livro de Carlos Moreira não só refuta a tese de que a influência social é relegada por Dewey a um segundo plano, como também desautoriza a aproximação feita por Luiz Antônio Cunha1 1 CUNHA, Luiz Antônio. Educação e desenvolvimento social no Brasil. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. entre o ideário pragmatista e o projeto educacional vigente no regime militar a partir de 1964. Para tanto, o autor esclarece em detalhes a essência do pensamento educacional de Dewey quando este esteve à frente do Departamento de Filosofia da recém-fundada Universidade de Chicago (1894-1904), na qual encontrou liberdade intelectual, recursos financeiros, cooperação interdepartamental e uma valorização da pesquisa empírica, decorrente da crença de que todo conhecimento tem uma natureza prática.

Em seu intento de apresentar com o máximo de objetividade os resultados de sua pesquisa, Moreira escreveu um livro que prima pela clareza e pelo didatismo. Talvez o objetivo de dirimir quaisquer ambigüidades faça com que determinados trechos soem repetitivos para o leitor familiarizado com o tema. No entanto, esse recurso é essencial para os que conheceram Dewey pela via indireta, prática metodológica comum nos cursos de Pedagogia no Brasil dos anos 80 e 90. Raras vezes suas obras, como The School and Society (1899), How we think (1910) ou Democracy and Education (1916) - para enumerar apenas as que serviram de base para a interpretação de Moreira -, foram lidas com o necessário aprofundamento. Quando muito as disciplinas de Filosofia, Sociologia ou História da Educação apresentavam breves pinceladas do pragmatismo e de seus representantes em meio à desencarnada visão panorâmica dos cânones do pensamento educacional.

Percebe-se que essa "apropriação" reducionista do pragmatismo constituiu um estímulo importante para Entre o indivíduo e a sociedade, originalmente uma tese de doutorado. O estímulo principal, entretanto, Moreira credita à leitura que tem feito de Anísio Teixeira (1900-1971). O educador baiano, aluno de Dewey no final dos anos 20, foi tradutor para o português de boa parte de sua obra. De fato, é claro o vínculo que há entre o pensamento de ambos, fruto de uma relação dialética entre experiências socioculturais diversas, isto é, de uma "afinidade eletiva"2 2 Segundo Michael Löwy, que cunhou sociologicamente tal conceito, "trata-se, a partir de uma certa analogia estrutural, de um movimento de convergência, de atração recíproca, de confluência ativa, de combinação capaz de chegar até a fusão". (CHAVES, M. W. A afinidade eletiva entre Anísio Teixeira e John Dewey. Revista Brasileira de Educação, n. 11, 1999). .

Apesar de a referência direta a Anísio, ao longo do livro resenhado, ser pouco relevante, há diversas outras interlocuções que aparecem de forma massiva. Como o próprio autor esclarece na Introdução, o diálogo com pensadores como Emile Durkheim, Hans Joas, Norbert Elias e Pierre Bourdieu perpassa o texto, já que todos se dedicaram à reflexão sobre as condições de formação da cognição. A escolha de tais interlocutores revelou-se acertada, uma vez que o próprio Dewey foi um dos responsáveis pela introdução da perspectiva sociológica na educação. Aliás, tamanha era a preocupação com o tema que não aceitaria ser cunhado de "filósofo social": para ele, toda filosofia é essencialmente social. A tal ponto acreditava nisso que sua "teoria social da mente" representou uma das discórdias com a tradição filosófica européia, com a qual travou um embate irreconciliável3 3 Sobre o diálogo filosófico travado entre John Dewey e a tradição do pensamento europeu, especificamente o racionalismo kantiano, a escola empirista de Locke, Berkeley e Hume e o idealismo alemão de Hegel, ver VIEIRA, C. E. A filosofia como guia das ações inteligentes: uma introdução à teoria do conhecimento de John Dewey. Educativa, Universidade Católica de Goiás, v. 2, n. 2, 1999. .

É preciso, agora, contextualizar sucintamente o surgimento dessa filosofia interessada por problemas associados ao cotidiano, como o fez Moreira no primeiro capítulo, para que se entendam determinados desdobramentos na formação intelectual de Dewey: a América do Norte passava por grandes transformações sociais originadas pela rápida onda de urbanização, industrialização e expansão capitalista posterior à Guerra Civil. Para estabelecer essas relações, o autor explica ter se baseado na tese de doutorado Sociologia e Pragmatismo de C. Wright Mills sobre o processo de profissionalização da filosofia na sociedade norte-americana e na biografia editada pela filha, Jane M. Dewey, ambos textos de respeitabilidade no contexto norte-americano. Antes de lançar-se à empreitada, ele ressalva que o mapa traçado deve ser entendido como provisório e sujeito a questionamentos. De fato, tal tarefa é arriscada, principalmente quando se trata de um contexto estranho à vivência do pesquisador. Nesse caso, é comum se tornar refém de determinados intérpretes, apesar de todo o cuidado tomado quanto à verificação do peso probatório de cada fonte.

No segundo capítulo, Moreira continua a seguir uma linha de pesquisa historiográfica, debruçando-se sobre a Escola Laboratório organizada por Dewey em 1896, cujo objetivo era o de testar e avaliar hipóteses levantadas pelo departamento do qual estava à frente. No capítulo, não há a tentativa de reconstrução detalhada de seu funcionamento, pois o foco é o resgate das experiências e análises que tenham relação direta com o tema central do livro. O autor ressalta que, a despeito das dificuldades enfrentadas pela Escola, o objetivo de dar à criança a possibilidade e um método para fazer coisas de seu interesse, por meio de uma orientação que valorize o significado social das ações, manteve-se ao longo de seu funcionamento.

A escola seria, segundo Moreira, "uma espécie de introdução à vida social, onde os alunos seriam impregnados de espírito de cooperação ao mesmo tempo em que desenvolviam uma efetiva autodireção", ou seja, a experiência pedagógica fundamentava-se no princípio de que o aprendizado é uma experiência social e, para tanto, não era possível diferenciar a aquisição do conhecimento de sua aplicação. O ensino deveria relacionar o conteúdo à vida, à memória e à história da criança. Deveríamos partir da experiência, que sempre apresenta questões a serem resolvidas, para reconstruí-la, analisando os fatos e princípios envolvidos. Além disso, Moreira aponta para uma questão bastante complexa: a do ensino de valores sociais. Para Dewey, não se trata de ensinar intelectualmente o que deve ser valorizado na sociedade, mas deve-se propiciar ao aluno experiências nas quais e a partir das quais possa refletir sobre questões de valor.

Enquanto os dois capítulos iniciais ocuparam-se na reconstrução do contexto para a partir dele entender melhor a tese central, os dois últimos trazem pouca densidade historiográfica e exploram analiticamente diversos conceitos caros à pesquisa de Dewey, tais como socialização, hábito, jogo, linguagem, ciência e democracia. No terceiro capítulo, por exemplo, Moreira nos mostra como a formação de hábitos - disposições intelectuais, morais e estéticas - na escola se tornou uma relação intensamente estudada por Dewey. Tal aspecto vale ser ressaltado, pois além de Bourdieu e outros sociólogos terem desenvolvido reflexões que de certa forma resgatam esses estudos, a noção de hábito, no uso corrente, sugere uma rotina mecânica e inflexível ou, no plano escolar, o treino de faculdades e a assimilação de conteúdos, algo mais próximo do adestramento do que do ensino.

Para o filósofo norte-americano, entretanto, o hábito é a capacidade do uso ativo das condições existentes com o objetivo de se alcançarem objetivos, constituindo-se assim como modo dinâmico de observar, refletir e lidar com a experiência provocada pela interação social. O elemento intelectual de um hábito, a reflexão, confere plasticidade a ele, isto é, garante a possibilidade de aperfeiçoamento contínuo. Dessa forma, tanto o meio social quanto os impulsos biológicos não determinam o indivíduo de modo categórico, dado que este conta com a inteligência para aprender da experiência, ou seja, para fazer associações retrospectivas ou prospectivas que resultam no aperfeiçoamento de seus hábitos.

Também o entendimento de Dewey do conceito de democracia, explanado no quarto capítulo, merece ser comentado, uma vez que ajuda a desfazer a imagem de um pensador elitista, preocupado essencialmente com a educação de seus pares sociais e com a defesa do capitalismo. O pensador defendia o pluralismo cultural e a importância de a escola ensinar o respeito à diversidade e acolher os mais diversos grupos sociais. Moreira ressalta a importância do "ideal democrático" para Dewey: o reconhecimento de interesses recíprocos, a cooperação entre os grupos por meio do envolvimento em atividades com significados e valores sociais e a mudança de hábitos para contemplar as novas relações que se criam continuamente caracterizariam uma sociedade democrática. À escola cabe o papel fundamental de se organizar como uma "comunidade embrionária" e servir assim de instrumento para uma socialização democrática.

Nas considerações finais, Moreira retoma de modo sintético a operação intelectual empreendida por ele ao longo do livro para confirmar sua hipótese de que, no pensamento de Dewey, "a relação (entre indivíduo e sociedade) é bem mais complexa e matizada do que uma simples oposição de linhagem maniqueísta" e, com isso, advogar com pertinência a favor da revisão de in-terpretações equivocadas inclusive no que se refere à influência de Dewey no movimento da Escola Nova de Anísio Teixeira.

Por fim, o autor complementa seu texto com a publicação de dois anexos. O primeiro, baseado na leitura do ensaio de Hans Joas, Symbolic Interacionism, tenta estabelecer em que medida há uma relação entre o pragmatismo e a Escola de Chicago, corrente que lançou as bases do pensamento sociológico nos EUA. Já o segundo traça um paralelo sucinto entre Norbert Elias e Dewey. Para tanto, o autor se explica por meio da justificativa de que o texto A sociedade dos indivíduos, do sociólogo judeu-alemão, serviu de "mapa" de suas leituras para o desenvolvimento da pesquisa ora apresentada.

Após a leitura do primeiro anexo, há uma única ressalva a ser feita: chama a atenção o fato de Moreira explicar, no início do livro, que apenas a partir de 1990 surgiram "interpretações mais matizadas do significado da escola nova", mas não estabelecer com mais precisão as diferentes matizes do próprio pragmatismo. Conforme OUTHWAITE et al.4 4 OUTHWAITE, William et al. Dicionário do pensamento social do século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996. , "o pragmatismo não era uma coisa única. Os textos de Pierce, James, Mead e Dewey talvez sejam tão diferentes quanto semelhantes." As observações feitas ainda na introdução de que Dewey preferia o termo "instrumentalismo" e de que o pragmatismo não é uma escola de pensamento, mas uma visão de mundo, não foram aprofundadas. Também as menções aos outros representantes dessa corrente não são suficientes para que o leitor consiga estabelecer distinções seguras no reconhecimento das especificidades de Dewey. Tem-se a impressão de que as diferenças entre os pragmatistas citados são irrelevantes.

Essa ressalva não ofusca a qualidade do livro. Um dos grandes objetivos, o de propor uma releitura do pragmatismo à luz dos textos de Dewey e de outros pensadores que se debruçaram sobre o mesmo tema, é plenamente alcançado. O autor trilha com segurança e desenvoltura a perspectiva de questionamento de leituras do pragmatismo que se transformaram em cânones, não perdendo de vista a tessitura de relações com problemáticas relevantes na nossa época. Essa operação intelectual é desafiadora, pois o diálogo com o passado a partir de teses em disputa no presente pode, por um lado, resultar em anacronismo ou, por outro, constituir uma operação histórico-pedagógica instigante. Foi este o caso de Entre o indivíduo e a sociedade: um estudo da filosofia da educação de John Dewey.

Texto recebido em 23 nov. 2003

Texto aprovado em 12 mar. 2004

  • 1
    CUNHA, Luiz Antônio.
    Educação e desenvolvimento social no Brasil. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.
  • 2
    Segundo Michael Löwy, que cunhou sociologicamente tal conceito, "trata-se, a partir de uma certa analogia estrutural, de um movimento de convergência, de atração recíproca, de confluência ativa, de combinação capaz de chegar até a fusão". (CHAVES, M. W. A afinidade eletiva entre Anísio Teixeira e John Dewey.
    Revista Brasileira de Educação, n. 11, 1999).
  • 3
    Sobre o diálogo filosófico travado entre John Dewey e a tradição do pensamento europeu, especificamente o racionalismo kantiano, a escola empirista de Locke, Berkeley e Hume e o idealismo alemão de Hegel, ver VIEIRA, C. E. A filosofia como guia das ações inteligentes: uma introdução à teoria do conhecimento de John Dewey.
    Educativa, Universidade Católica de Goiás, v. 2, n. 2, 1999.
  • 4
    OUTHWAITE, William et al.
    Dicionário do pensamento social do século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Mar 2015
    • Data do Fascículo
      Jun 2004
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