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Memórias da educação: Campinas (1850-1960)

RESENHAS

Memórias da educação: Campinas (1850-1960)

Carlos Eduardo Vieira

Doutor em História da Educação, professor e pesquisador do Mestrado em Educação da UFPR, na Linha de Pesquisa de História e Historiografia da Educação. cevieira@educacao.ufpr.br

BENCOSTTA, Marcus Levy Albino et al. Memórias da educação: Campinas (1850-1960). Campinas: UNICAMP, 1999.

Produzir uma resenha é uma atividade intelectual de grande responsabilidade, pois estão envolvidos os riscos teóricos inerentes à compreensão e à interpretação das idéias de outrem. Já resenhar um livro produzido por um coletivo de autores, com capítulos comuns e outros assinados individualmente, é um desafio ainda maior, uma vez que, além das dificuldades próprias da interpretação e da exposição sistemática das idéias, existe a possibilidade do resenhista escrever um texto fragmentado, enfocando os diferentes objetos ou os diversos ângulos de análise presentes nos diferentes textos que compõe a obra.

O livro Memórias da educação: Campinas (1850-1960) é um exemplo desse tipo de desafio intelectual, já que representa o esforço de oito intelectuais na produção de um complexo quadro da História da Educação Brasileira, mais particularmente da intervenção de determinadas instituições educativas na região de Campinas, de 1850 a 1960, a partir de categorias teóricas como raça, etnia, gênero, classe social e estratégia missionária.

Diante desse quadro de múltiplos olhares sobre múltiplos objetos, optei por considerar a intenção dos autores de produzirem coletivamente a obra. O que me levou a enfocar os aspectos teóricos e metodológicos compartilhados no trabalho e, de certa maneira, evitar aqueles circunscritos às características irredutíveis de cada pesquisador envolvido. Creio que a opção será bem recebida pelos autores, pois mais do que uma reunião de esforços teóricos, esse grupo de pesquisadores demonstra, a partir dessa obra, ter como objetivo fazer do conceito de trabalho interdisciplinar, tão desgastado pela retórica pedagógica, algo pleno de sentido teórico e prático. Trata-se, sem dúvida, de um excelente exemplo de Projeto Integrado que, para além de uma nomenclatura atinente às fontes financiadoras do projeto (CNPq e FAPESP), revela itinerários singulares que se complementam, se completam e se integram.

A estrutura da obra envolve a introdução, escrita pela coordenadora do grupo, Zeila de Brito F. Demartini, dois capítulos iniciais escritos pelo conjunto de pesquisadores que tratam respectivamente das opções metodológicas e do panorama histórico e sociocultural de Campinas e região. Na seqüência, seguem sete capítulos intitulados: A formação do professor primário no Estado de São Paulo: a Escola Norma de Campinas, por Terezinha Aparecida Quaiotti; A difusão da escola primária em Campinas, por Rosa Fátima de Souza; Educação escolar norte-americana no Brasil do século XIX: trajetórias históricas de um colégio protestante em São Paulo (1869-1892), por Marcus Levy A. Bencostta; Formar damas cristãs, cultas, virtuosas, polidas, sociáveis: Colégio Nossa Senhora do Patrocínio, por Maria Iza Gerth da Cunha; Educar para a cidadania através de valores católicos: Liceu Salesiano Nossa Senhora Auxiliadora, por Ana Maria Melo Negrão; Imigração italiana e estratégias de inserção sociocultural: a Escola do Circolo Italiani Uniti de Campinas, por Rosa Lydia Teixeira Corrêa; e Colégio São Benedito: a escola na construção da cidadania, por José Galdino Pereira. Na última parte, há as considerações finais, nas quais os autores voltam a dividir a pena.

A primeira observação é um tanto quanto óbvia, mas não menos importante, ou seja, trata-se de uma obra que privilegiou o estudo de instituições escolares, divididas em três grupos: 1.º escolas mantidas pelo poder público; 2.º escolas particulares confessionais; e 3.º escolas particulares voltadas para grupos étnicos. A opção pela História das Instituições é o primeiro ponto em comum entre os vários autores, contudo a natureza e a peculiaridade das instituições pesquisadas exigiram que as fontes e, por extensão, os procedimentos se diferenciassem, possibilitando ao leitor avaliar as possibilidades heurísticas de um conjunto significativo de opções metodológicas que perpassam as discussões contemporâneas sobre a História da Educação em geral e sobre a História das Instituições Escolares em particular.

Ainda sobre esse ponto, é preciso dizer que o estudo centrado nas instituições não resultou em um apagamento das idéias e dos personagens envolvidos. Creio que esse pode ser considerado como um segundo aspecto que confere unidade à obra. Unidade metodológica que concebe as instituições como locus de materialização de projetos, práticas e histórias de vida. Instituições que, para além dos seus espaços físicos e institucionais, configuram e são configuradas pelo contexto mais amplo da cultura. Em outros termos, as instituições são estudadas nas suas tensões com contexto político, intelectual, religioso e social da época, permitindo lançar luz sobre diferentes níveis contextuais: das estratégias missionárias de diversas igrejas e ordens religiosas em relação à educação às políticas públicas para o setor; da atmosfera intelectual do império à afirmação dos ideais republicanos; da difícil luta dos negros contra a exclusão social à integração/preservação das culturas dos imigrantes europeus na sociedade brasileira; das representações produzidas sobre a mulher e o seu papel social às diferentes propostas de formação das elites e das classes subalternas presentes nas diferentes instituições.

No que diz respeito à escolha e ao tratamento dado às fontes, é possível afirmar que os autores se inserem dentro de um projeto de renovação da História da Educação. Na direção que Antonio Nóvoa tão bem definiu como processo de reinvenção de fontes que, ao mesmo tempo que sofistica o tratamento dos documentos tradicionalmente utilizados, introduz novos materiais de investigação, de tal forma que as tradições orais, as publicações periódicas, as biografias, os relatos de vida escolar, a iconografia, os materiais didáticos, os cadernos escolares, entre outros documentos que, muito recentemente, passaram a ser incorporados como fontes nos estudos da área.

A exploração da pluralidade de documentos escritos, orais e iconográficos que testemunham os projetos e as práticas que perpassaram as várias instituições escolares estudadas é precedida de um capítulo, escrito pelo coletivo de autores, que apresenta algumas das questões teóricas que orientam o estudo. Nesse capítulo se discute, de forma indireta, a crítica ao pretensioso e inconsistente projeto rankiano de narrar os fatos históricos tal como eles aconteceram. Apoiados em Jaques Le Goff, os autores afirmam que os documentos não testemunham fatos, mas versões sobre os fatos plenas de intencionalidades, além do que frisam que os pesquisadores diante dessas versões não são neutros e imparciais. Mais do que uma repetição da crítica à concepção positivista na historiografia, tão bem documentada nos debates da segunda metade do século XX, trata-se de uma reiteração, sempre bem-vinda, da necessidade metodológica do historiador controlar as suas pressuposições, seus ímpetos de produzir explicações totalizantes e/ou suas saudáveis pretensões sobre a verdade histórica.

Além de Le Goff, a idéia ginzburgiana do paradigma indiciário aparece, presumo, nas asserções sobre a necessidade de o historiador valorizar e seguir os indícios quando as fontes são escassas. A discussão metodológica, nesse capítulo, permite ao leitor familiarizar-se com as opções teóricas dos autores e, sobretudo, avaliar ao final da leitura se foi cumprido o programa estabelecido.

Nesses termos, gostaria de assinalar um terceiro ponto significativo do trabalho: o rigor metodológico na construção das conclusões parciais e finais. Conclusões seguras, suposições fundadas e indícios são apresentados nas suas específicas capacidades de produzir conhecimento histórico confiável. São transparentes no texto as diversas densidades argumentativas, ou seja, a diferença entre aqueles juízos solidamente sustentados na quantidade e na qualidade das evidências e aqueles apenas indicados como possibilidades heurísticas a partir de algum indício isolado. Na expressão do historiador italiano Dario Ragazzini, trata-se de tornar claro para o leitor e crítico os diferentes graus de accertabilità (capacidade de produzir acertos) que caracterizam o processo de interpretação dos documentos. Quanto mais o texto torna explícita a presença de argumentos com diferentes densidades, seja no plano lógico ou no âmbito das inferências empíricas, maior é a qualidade da pesquisa, pois maior é a consciência do pesquisador em relação às suas possibilidades de produzir, a partir de suas fontes, um conhecimento verificável de forma intersubjetiva sobre o passado.

Nesses termos, a obra em questão é explícita em relação às suas possibilidades e limites. Ainda sobre esse ponto, é preciso dizer que o roteiro dos questionários a que as fontes foram submetidas é transparente, possibilitando ao leitor o confronto com as conclusões aditadas e, sobremaneira, com o próprio teor das questões que compõem o processo de problematização das evidências. Mais do que isso, a visibilidade dada aos documentos permite outros inquéritos, outras leituras, enfim, possibilita ao leitor sentir a atmosfera cultural presente em cada uma das instituições analisadas e, assim, postular interpretações que aditam ou contraditam os resultados da pesquisa.

O segundo capítulo, intitulado Panorama histórico e sociocultural de Campinas, não cumpre, a meu ver, a sua função de “pano de fundo”. A rigor, não me agrada a idéia de um pano de fundo, contudo penso que esse foi um risco calculado pelos autores, uma vez que a ausência de um capítulo como esse poderia gerar uma certa estranheza naqueles leitores que não estão familiarizados com as características sociohistóricas da cidade de Campinas e da sua região.

Por fim, gostaria de evidenciar e comentar a premissa principal dos autores na organização dessa obra, ou seja: “a história da educação de um povo, com as várias opções que são tomadas ao longo do tempo, só pode ser compreendida em sua complexidade quando são investigadas as diferentes possibilidades de educação que foram se apresentando, ou melhor, que foram sendo construídas pelos diferentes grupos desta população.” (1999, p. 26)

A idéia de dar visibilidade à diversidade, de retirar do ostracismo historiográfico certos projetos, sujeitos e instituições é, certamente, de fundamental importância nesse quadrante da história em geral e da história da educação em particular. O confronto com as narrativas homogeneizadoras - que reduzem as práticas e os projetos, em curso em um determinado tempo e lugar, a uma representação coerente e homogênea desvinculada das experiências reais diversificadas e contraditórias - é bastante significativo e desejável. Assim como afirmou Peter Burke, em contraste com a prevalência da História Política no século XIX, tudo tem história e, sendo assim, tudo tem um passado que pode em princípio ser reconstituído e relacionado ao restante do passado. Nesse sentido, a obra Memórias da educação: Campinas (1850-1960) soma-se à tendência de parte significativa da historiografia contemporânea de tirar das sombras grupos sociais, homens, instituições que, por razões diversas, foram eclipsados pela presença de leituras demasiadamente reducionistas do caleidoscópio cultural.

Por fim, merece atenção o fato de que os autores, diante da heterogeneidade de práticas, idéias, projetos e estratégias, não se eximiram de ousar uma síntese que, de forma prudente e rigorosa, aponta para alguns aspectos que distinguem e caracterizam as práticas e as demandas por escolarização naquela região e naquele período. Dizem os autores: “No sentido mais amplo, o conjunto dessas iniciativas, em que pesem seus objetivos, currículos, formas de organização administrativa, consubstancia a importância da escola e da escolarização na contribuição para uma nova visão do país, dadas fundamentalmente pela espécie de mobilização social que a população, aos poucos, vai fazendo em torno da educação.” (1999, p. 317-8)

Para além de um genérico juízo sobre a importância dada à escola pela comunidade campineira no período, essas palavras sugerem uma chave de leitura que, enfatizada de forma diferente pelos autores ao longo dos seus textos, nos põe diante de uma representação social comum aos diversos grupos sociais sobre o papel da escola. Em outras palavras - guardadas as irredutíveis diferenças sociais, culturais e econômicas dos personagens históricos envolvidos - a escola é compreendida como pólo privilegiado para a elaboração de uma cultura, de um modo de viver, de uma concepção de mundo capaz de ampliar as possibilidades de civilidade, sociabilidade e mobilidade social, ao mesmo tempo que é a instituição concebida como capaz de preservar as tradições e os costumes que formavam a identidade dos grupos sociais envolvidos.

Distante das sínteses aligeiradas e superficiais, a obra produziu uma compreensão das razões que incidiam sobre as demandas por escolarização na região. A cuidadosa reconstrução da diversidade cultural e histórica não impediu a postulação de uma síntese compreensiva, assim como o esforço de sínteses não impediu a visualização da diversidade de práticas, projetos e estratégias presentes nas várias instituições escolares pesquisadas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Mar 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 2000
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