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Editorial

Editorial

Vêm a público a Educar em Revista n. 35. Nesse editorial traçamos algumas considerações sobre aspectos determinados de contexto das políticas educacionais, relacionados com o tema do Dossiê Gênero Sexualidade e Educação.

Desde o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova que propunha a co-educação até, finalmente, a realização da primeira Conferência Nacional de Educação, que acontecerá em 2010, avançamos no debate sobre a questão de gênero na política educacional. O documento referência da CONAE, neste momento, consegue tratar de maneira ampla a questão da identidade dos sujeitos do processo educativo e, ao fazê-lo, reconhece que esta questão só pôde ser incorporada na pauta por força do movimento social.

Os movimentos sociais, sobretudo os de caráter identitário, são os principais atores políticos que problematizam essa situação. São os coletivos políticos, tais como o movimento negro, feminista, LGBT, das pessoas com deficiência, ecológico, do campo, indígena, quilombola, dos povos da floresta, das comunidades tradicionais, dentre tantos, que problematizam e denunciam o caráter de neutralidade ainda imperante nas políticas públicas. Eles cobram que as políticas se abram para o princípio da eqüidade, na garantia do acesso aos direitos universais aos homens e às mulheres, por meio de ações específicas e afirmativas voltadas aos grupos historicamente discriminados (BRASIL, 2009, p. 114).

Mas apesar do debate sobre gênero estar presente na política educacional, não apenas de forma articulada a outras questões de diversidade, mas transversalmente no conjunto do debate sobre a organização da escola; na prática social há muito que se caminhar. A consolidação de políticas específicas para mulheres, por exemplo, com a criação da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres na esfera federal, o combate específico da violência com a aprovação da Lei Maria da Penha, são avanços institucionais importantes. Entretanto os indicadores de condições de vida da população brasileira ainda relevam um quadro de desigualdade cruel. Segundo dados de 2007 do Observatório da Desigualdade de Gênero no Brasil, as mulheres atingem uma média de escolaridade (9,3 anos) maior que a média entre os homens (8,4); ainda assim são as mulheres que apresentam a maior taxa de desemprego (12% em 2007) e as desigualdades salariais são fragrantes; no âmbito da vida privada as mulheres continuam a trabalhar 27 horas semanais em casa, contra apenas 10 entre os homens.

Estes são apenas fragmentos que demonstram o quanto a sociedade brasileira ainda tem que caminhar em termos de construção de cidadania e igualdade. Neste sentido a publicação na Educar em Revista do Dossiê "Sexualidade e Educação: novas cartografias, velhos problemas" insere a revista mais uma vez num debate candente do ponto de vista social e urgente no âmbito da academia.

O debate acadêmico relaciona-se de forma complexa com os movimentos sociais e a expectativa não pode ser de saberes "engajados", mas de debate plural e independente, tanto sobre as ações do estado como dos movimentos sociais. No entanto, não se pode deixar de reconhecer que a inserção do ponto de vista feminino no contexto acadêmico, a produção de literatura e pesquisas a partir do ponto de vista das mulheres, atuou e atua de forma a obter impacto no acesso aos bens, principalmente simbólicos, mas também materiais.

No que se refere às Políticas Públicas a definição de pautas sociais, a definição, no plano simbólico, daquilo que é percebido como "problema", como "questão" a ser enfrentada, opera de forma significativa para a implementação de determinadas ações (e não de outras). Observa-se a inserção recente, mas cada vez mais presente, das discussões sobre gênero e sexualidade como pauta para as políticas educacionais. Por um lado, tanto na produção acadêmica quanto nas políticas educacionais observam-se mais ausências que realizações (conforme expresso na apresentação do Dossiê Gênero, Sexualidade e Educação, a seguir).

Por outro lado, a entrada como pauta em importantes documentos oficiais, como são os casos do documento base da CONAE, do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM) e no "Programa Nacional Brasil sem homofobia", podem ser considerados como formas de inserção nas pautas públicas e a expectativa é de desenvolvimento de políticas educacionais relacionadas a tais temáticas que ganham o status de "questões sociais". Em especial a partir dos anos 1990 a relação entre os movimentos sociais e o Estado está presente e crescente na cultura brasileira (ver análise de SORJ, 2008, sobre a relação entre a Revista de Estudos Feministas e as políticas para as mulheres) e opera cada vez mais para definir pautas e estabelecer ações políticas.

O PNPM apresenta um capítulo específico sobre "Educação inclusiva e não sexista". As diretrizes para o Estado e as esferas de governo definem que a educação pública deve: a) contribuir para a construção social de valores que enfatizem a importância do trabalho historicamente realizado pelas mulheres; b) garantir a inclusão de questões de gênero, raça e etnia nos currículos, reconhecer e buscar formas de alterar práticas educativas, a produção do conhecimento, a educação formal, e cultura e a educação.

Também no que ser refere a sexualidade e diversidade algumas normativas representam avanços. A escola tem sido uma das instituições nas quais os discursos homofóbicos são produzidos e reproduzidos (LOPES, 2002), se constituindo como um "lugar comum". Diversas ações têm buscado mudar tal quadro, entre as quais destacamos: 1) a aprovação do Programa Nacional Brasil sem Homofobia, em 2004, com parte que versa sobre o Direito à Educação e apresenta uma ampla pauta; 2) a I Conferência Nacional LGBT, realizada em 2008, com o tema "Direitos Humanos e Políticas Públicas: o caminho para garantir a cidadania de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais", que teve a educação como um de seus eixos temáticos. A primeira deliberação da parte sobre Direito à Igualdade é de interesse:

1. Fomentar, apoiar e garantir a produção de conhecimento em orientação sexual e identidade de gênero, com recorte de raça-etnia em pesquisas municipais, estaduais e federais, a ser realizada por instâncias... (BRASIL, 2008).

Fica explícita a importância atribuída pelos ativistas à produção de conhecimento sobre a temática. Além da movimentação social na área específica, a discussão passou a frequentar também as mobilizações de educação, por exemplo, a Conferência Nacional de Educação Básica, de 2008, na qual foram aprovadas, para as políticas educacionais, diversas sugestões sobre diversidade sexual, que envolvem combate à discriminação nas escolas e materiais didáticos; implantação de cultura de reconhecimento da diversidade de gênero nas escolas; formação de professores, inicial e continuada, em sexualidade e diversidade.

A temática gênero e sexualidade, ao mesmo tempo em que se afirma, traz novas inflexões para o debate acadêmico. Na produção acadêmica, por exemplo, tomado somente o tema "estudos feministas", as abordagens e aproximações estão em constante movimento e diversificação. No ativismo social as clivagens, tensões e dissensos se manifestam, por exemplo, com setores que se relacionam com outros eixos de desigualdade (mulheres operárias, mulheres negras, etc.). Apontamos a importância do debate acadêmico sobre tais temáticas, tanto nos estudos sobre gênero, quanto em suas dinâmicas de relação com outros eixos de desigualdade, de raça, classe e idade (consideramos essas relações como "paradoxais", conforme aponta SCOTT, 2005, ou "assíncronas", conforme análise de ROSEMBERG; ANDRADE, 2008).

Para além desses campos de debate acadêmico, a divulgação do conceito de gênero e sua incorporação em distintas áreas de pesquisa em educação se manifesta nesse número. Encontramos nos artigos de Demanda Contínua da Educar em Revista, também, reflexões que se coadunam com a temática do dossiê. Neste caso temos dois artigos iniciais.

O primeiro, de Jane Soares de Almeida intitulado "Indícios do Sistema Co-Educativo na Formação de Professores pelas Escolas Normais Durante o Regime Republicano em São Paulo (1890/1930)", analisa os desafios da formação de professores no contexto da necessária expansão da escola primária como condição de desenvolvimento do país. Tal expansão anunciava-se imersa nas contradições de uma sociedade elitizada, em que as escolas para a maioria eram "precárias e sem condições materiais como espaço físico, mobiliário e material didático". Segundo a autora, entre os muitos desafios da escola paulista do período estava a discussão da co-educação, tanto nas escolas normais quanto na própria escola primária. Refletindo sobre o itinerário paulista, a autora constrói uma reflexão sobre o sentido da inserção da mulher na profissão docente, e quanto isto tem implicações no debate sobre o papel social também do homem, nas palavras da autora: "Esperava-se que as futuras professoras aprendessem aquilo que iriam desempenhar no lar, as prendas domésticas, o que impunha um paradoxo: se, de acordo com a ideologia de destinar as mulheres ao ensino de crianças, essas professoras fossem lecionar em classes mistas haveria um problema de difícil solução sobre o que ensinar para os meninos".

Por outro itinerário, muito provocativo o texto "A leitura do Café: suas possíveis relações matemáticas e a perspectiva de gênero", de autoria de Glauce Maris P. Barth, a temática do dossiê continua tangenciada. A autora começa convidando o leitor a duas viagens. A primeira pela história do café, grão exótico, saboroso e que se tornou muito importante para a economia brasileira, em seguida, outra viagem pelo universo de Candido Portinari, pintor que provocado pela presença do café na cultura brasileira, retratou "as esperanças dos trabalhadores rurais brasileiros". Montado tais itinerários, a autora explora o conteúdo e a forma das pinturas sobre trabalhadores em cafezais, convidando o leitor a pensar sobre que relações de gênero estão expressas nestas obras e como conceitos matemáticos como de proporção e perspectiva, podem ser lidos, num rico diálogo entre arte, matemática e história.

A continuidade desta sessão os artigos dedicam-se a analisar/problematizar outras dimensões da realidade escolar brasileira.

O terceiro artigo "Propostas alternativas de construção de políticas públicas em educação: novas esperanças de solução para velhos problemas?" de Salete Campos de Moraes, revisita as experiências de gestão municipal de São Paulo, Brasília, Porto Alegre e apresenta a gestão da política para Educação de Jovens e Adultos na administração estadual do Rio Grande do Sul. Com vistas a discutir as possibilidades de democratização da gestão dos sistemas escolares no Brasil, Moraes coteja as experiências com a reflexão sobre a "ideia-força" da "cidade educadora". Segundo a autora, este conceito foi cunhado para pensar a cidade como agente de consolidação de políticas que assegurem a cidadania e, desta forma, é possível reconhecer que tal idéia "caminha na direção da horizontalização das relações entre Estado e sociedade civil". Esta preocupação com reconstruir a gestão pública numa perspectiva de "co-governança" é que provoca a autora a apresentar, não apenas uma retomada de conceitos caros a democracia, mas também experiências no campo da política educacional que no seu entendimento atendem estas prerrogativas.

O quarto artigo reflete sobre outra dimensão da democratização das relações na escola, desta vez o foco é a prática escolar do planejamento. No texto intitulado "Prática Docente: Considerações sobre o Planejamento das Atividades Pedagógicas", as autoras Áurea Regina Guimarães Thomazi e Thania Mara Teixeira Asinelli apresentam o resultado de pesquisa com professoras do ensino fundamental de redes municipal, estadual e privada de Belo Horizonte acerca das formas como o planejamento da prática pedagógica é realizado. As autoras propõem uma tipificação para a análise do resultado das entrevistas, identificando as professoras em três grupos: aquelas que planejam sozinhas por falta de apoio, denominadas de categoria individual; aquelas que planejam de sozinhas por opção, denominadas de categoria independente; e, aquelas que planejam em conjunto, em espaços e tempos adequados para isto, denominadas categoria coletiva. A partir da análise destas diferentes práticas emerge uma importante reflexão acerca do processo de construção do currículo escolar no ensino fundamental.

O quinto artigo debruça-se sobre uma questão candente na sociedade atual, a noção de justiça e a questão da violência, questões estas que no âmbito escolar podem ser recortadas, conforme fazem as autoras, como tensões entre disciplina e indisciplina. No artigo intitulado "Indisciplina e a Noção de Justiça em Adolescentes Escolares", as autoras Maria de Fátima Pires Carneiro da Cunha; Aline Santti Valentin; Débora Cristina dos Santos Lisboa; Eleonora Carolina Martins Monteiro e Priscila Xander relatam uma pesquisa sobre a noção de justiça, realizado com alunos de quinta e sexta séries do ensino fundamental. A pesquisa fundamentada nos estudos de Jean Piaget nos anos 1930, utilizou procedimentos sugeridos pelo autor, o que permitiu às pesquisadoras, realizar algumas comparações entre a realidade dos adolescentes estudados por àquele estudioso e a realidade dos jovens atualmente. O texto provoca o leitor a refletir sobre como a escola tem enfrentado a questão da disciplina, não apenas como condição da prática pedagógica, mas como perspectiva de cidadania futura, neste sentido problematizam as autoras: "Certamente que esta pesquisa não resolve este tipo de problema mas trás à tona que os alunos investigados têm identificado-se cada vez mais com práticas que usam da coação e com as regras autoritárias .Isso não seria o que nós enquanto educadores, gostaríamos de ter como ideal das relações futuras".

O sexto artigo intitulado "O livro didático de língua portuguesa no Brasil", de Ivete Aparecida da Silva Ota, problematiza o uso que os livrosdidáticos fazem dos gêneros textuais. A autora discute quanto o mercado editorial, ao produzir livros que precisam circular rapidamente, convertem seus produtos à "livros perecíveis e descartáveis". No caso do ensino de língua portuguesa, segundo a autora, isto leva a que o trabalho com os gêneros textuais privilegie a quantidade o que leva a ausência de "preocupação com a construção da textualidade, com a construção do sentido, com os mecanismos de dizer. Assim, à semelhança do que ocorria outrora, a preocupação em identificar os elementos da comunicação cede lugar à preocupação em identificar a estrutura do texto". Nesta interessante análise acerca da quantidade de gêneros tratados de forma superficial nos livros didáticos de língua portuguesa, a autora ainda discute o quanto a presença da linguagem visual é pouco considerada na lógica didática dos livros.

O sétimo artigo desta sessão é "Pedagogia: concepções e práticas em transformação" de Ercília Maria Angeli Teixeira de Paula e Érico Ribas Machado. Trata da formação profissional nos cursos de pedagogia problematizando as diferentes perspectivas de formação do educador presentes na constituição história dos cursos de pedagogia e, mais recentemente, no debate sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais estes cursos. Os autores inserem na tensão entre a formação do docente e/ou do cientista da educação, a necessidade da discussão do caráter social da pedagogia considerando os espaços não escolares em que a atuação deste profissional tem sido demandada. Além do espaço de atuação o artigo preocupa-se também com a discussão do sentido social na formação profissional que possibilite uma inserção profissional comprometida com a transformação social, neste sentido afirmam os autores "a Pedagogia Social tem surgido como instrumento da Educação para atender as novas demandas da sociedade e formar o Educador Social como o seu agente transformador".

Desta forma entregamos mais um número da Educar em Revista.

Andréa Barbosa Gouveia

Paulo Vinicius Baptista da Silva

  • BRASIL/MEC. Conferência Nacional de Educação: Documento Referência: Brasília, 2009.
  • BRASIL/SEDH. Deliberações da I Conferência Nacional LGBT Brasília, 2008.
  • LOPES, Luiz P. M. Identidades fragmentadas A construção discursiva de raça, gênero e sexualidade em sala de aula. Campinas: Mercado de Letras, 2002.
  • ROSEMBERG, Fúlvia; ANDRADE, Leandro F. Ação afirmativa no ensino superior brasileiro: a tensão entre raça/etnia e gênero. Cadernos Pagu, n. 31, p. 419-437, 2008.
  • SCOTT, Joan W. O enigma da igualdade. Revista Estudos Feministas, v. 13, n. 1, p.11-30, set.-dez. 2005.
  • SORJ, Bila. A Revista Estudos Feministas e as políticas públicas: qual relação? Revista Estudos Feministas, v. 16, n. 1, p. 129-130, 2008.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Mar 2010
  • Data do Fascículo
    2009
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