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Cães amestrados e sementes de dragões

ARTIGOS DE DEMANDA CONTÍNUA

Cães amestrados e sementes de dragões

João José de Félix Pereira

Mestrando em Educação UFPR - Professor da FEMP (Fac. de Ed. Musical do Paraná) e Artes do Paraná)

INTRODUÇÃO

Nas lendas se permitem as metáforas da vida e do universo, que não são menos reais do que aquilo que se supõe que seja real, simplesmente, porque se lê nos jornais, se ensina nas escolas ou porque a televisão transmite.1 1 FOUCAULT, MICHEL, Les Mots et les Choses, Paris, Gallimard, 1966. Trechos reproduzido em: Emir R. Monegal, Borges, Uma Poética da Leitura, SP, 1980 - Col. Debates.

Este trabalho de interpretação não deriva da realidade, mas da convenção aprendida do que é a realidade. A realidade é inesgotável, por isso mesmo, inabrangível.

NO ANO DO DRAGÃO A FÊNIX RENASCERA DAS CINZAS. Com essa frase aparentemente enigmática, concluiremos este pequeno ensaio crítico sobre a arte da Música e Educação. Introduzindo o assunto, eu diria que o Ano do Dragão é todo momento de reflexão, e o Renascimento da Fênix se dá em toda transformação (recriação).

PARTE I: PRÓLOGO

1 - A CADEIRA QUE SE FEZ TRONO

Conta-nos uma antiga lenda chinesa que um rei, de tanto ficar sentado em seu trono, teve os músculos atrofiados e perdeu sua capacidade de andar. E que, para manter seu poder, a todo homem que se destacava no reino, convidava para que assentasse em um trono ao seu lado como conselheiro e o impedia de levantar sob pena de morte. E o seu poder se manteve até o ano do Dragão.

Pergunto:

1.º - O poder da cadeira seduziu o rei, 2.º - ou o rei legou seu poder por fraqueza à cadeira, 3.º - ou ainda, o rei e a cadeira por suas fraquezas se aliaram para dominar os súditos?

Antes de responder a estas três indagações, coloco ainda mais uma: O que tem a ver tudo isso com a realidade?

Você poderia também colocar outras indagações e colaborar. Obrigado.

2 - O BARRANCO E A CADEIRA

Sabemos que só o homem pode captar e transformar o mundo, e que este ato de captar e transformar implica em uma recriação. A conseqüência dessa recriação é o mundo da cultura. Exemplo figurativo:

"O barranco em que o homem estivera sentado pode ter-lhe sugerido a idéia de, com a árvore que avistara, vir fazer uma cadeira. Porém, a cadeira lhe fez ter de se assentar de uma forma diferenciada da qual estava no barranco. A cadeira se ajustou ao seu corpo tanto quanto o seu corpo à cadeira."

O recriar do homem, que é o seu próprio criar, tanto material quanto espiritual, forma o seu mundo cultural. A realidade humana é sua realidade cultural, pois não só a cadeira do exemplo, mas também o barranco, só são comprendidos como tal, na medida em que são aprendidos pelo mundo da cultura humana.

A busca quantitativa na medida da ampliação desse mundo cultural, assim como a busca qualitativa na medida da transformação do mundo cultural já apreendido em sua superação, é o objeto da educação, cujo sujeito é o homem, que é o único ser capaz de fazer essa transformação qualitativa e essa expansão quantitativa.

3 - CÃES AMESTRADOS E SEMENTES DE DRAGÕES

Na educação escolar, vemos o homem como objeto e não como sujeito de sua própria educação. Mas não só na escola o homem é objeto da educação, e sim, na sociedade como um todo. Dentro deste aprofundamento veremos que o homem é como um cão amestrado, o que não impede também de germinarem as "Sementes de Dragões", parafraseando Carlos ASTRADA.2 2 KONDER, Leandro. DIALÉTICA. Coleção Primeiros Passos, São Paulo, Brasiliense, 1981.

4 - OS CÃES AMESTRADOS

O mundo criado (recriado) e o mundo em transformação geram o jogo dialético entre a mudança do mundo buscando a sua superação, e a estabilização do mundo que busca a permanência. Tal contradição se dá na medida em que o "mundo criado" quer permanecer, como se a cadeira segurasse o homem, assim apenas facultando a expansão quantitativa. No momento em que o homem perceber que não é a cadeira que o segura, mas que é ele quem se acomoda á cadeira, dá-se a mudança da per cepção. Porém, há toda uma ação inibidora de desvelamento dessa percepção, gerada pela domesticação do homem ao mundo criado.

Quando a educação pretende apenas transmitir ao educando os conhecimentos do mundo criado pela cultura, temos a domesticação, o que na verdade é a própria negação da educação.

5 - AS SEMENTES DE DRAGÕES

a) O Poder da Cadeira

Dentro de uma visão macroeducacional, veremos o homem limitado no pensar e no atual, veremos a escola e os meios de comunicação de massa padronizando e domesticando. Veremos os homens sentados em cadeiras que possuem braços sedutores e que lhe pedem para repetir e para não criar, porque a sua sedução e seu encanto estão em que o homem não perceba o seu poder de criar, pois, ao perceber o seu poder de criar, saberá que é senhor, que é sujeito e não escravo, objeto da cadeira. No repetir, o homem cria mais cadeiras, no repetir está a morte da cultura, pois a cultura consiste em recriar (criar), aqui temos outra contradição: recriar/repetir, que é o mesmo que mudar/permanecer.

b) O Poder do Homem

A cadeira seduziu boa parte da humanidade, tornou-a impotente para andar, assumiu o lugar do sujeito, transformou o homem em objeto. E o homem como objeto da cadeira é manipulado pela cadeira e seus interesses em detrimento dos interesses humanos. E os homens da cadeira escravizam os outros homens, transformando-os também em escravos da cadeira. Então temos dois tipos de homens da cadeira: os seduzidos pela cadeira, os que sentam nela, e os escravizados pelos homens que sentam na cadeira, que são os repetidores, os que reproduzem a cadeira.

Mas há também os dragões devoradores de cadeiras, os que com suas baforadas flamejantes de humanidade, e o fogo de seu amor rebelam-se contra a escravidão. Em todo homem existe um ímpeto criador, uma semente de dragão. É no ímpeto criador quantitativo e na mudança qualitativa que reside a esperança da transformação cultural e da superação das etapas históricas da humanidade.

PARTE II: TRAMA

A MÚSICA SENTOU NO TRONO OU A CRÍTICA CRITICADA

Referindo-se à pesquisa do musicólogo uruguaio Curt LANGE, que exumou parte do acervo musical de Minas Gerais do séc. XVIII, o crítico musical Enio SQUEFF, em sua obra O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira, afirma que havia mais músicos em Minas, proporcionalmente, naquela época, que hoje em São Paulo. Também na mesma obra, E. SQUEFF justifica a crítica musical por não ter debatido a música brasileira nos termos de sua própria realidade.3 3 SQUEFF, ENIO & WISNIK, JOSÉ MIGUEL O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira. SP, Brasiliense, 2.ed., 1983.

Perguntamos então:

1 - O porquê do não-debate?

2 - O que é música brasileira?

3 - Qual é a realidade dessa música?

4 - Se a música está sentada no trono, se é o trono que está sentado na música, ou se ambos estão se assentando?

À primeira, à segunda e à terceira indagação pretendo responder, mas em troca quero que você me responda à quarta pergunta baseada na PARTE I desta monografia.

1 - O porquê do não-debate? - é o próprio crítico que responde:

R - "Porque as implicações deste todo seriam uma concepção perigosa a um nível de debate que talvez ameaçasse a hegemonia do universo consumista".

Parece brincadeira afirmar isso, mas vamos à indagação seguinte para verificar.

2 - O que é música brasileira?

R - Platão nos diz, na República, "que a música é o elemento de unificação e imantação da sociedade em torno do Estado".

E o que isso tem a ver com o Brasil?

- Tem a ver que a música erudita no Brasil sempre fez isso, até que surgisse o movimento MÚSICA VIVA. E a música popular? - A música popular folclórica esteve sempre condicionada pelo controle repressivo, e a música popular de consumo, que é um fenômeno mais recente, surgiu com a indústria cultural. Vamos, a seguir, abordar esses três aspectos da música que se fez cadeira.

a) A Música Erudita

A música erudita brasileira só se evidencia quando a gestualidade das danças africanas temporalizadas no ritmo musical mais o espírito ameríndio e mais o sistema melódico europeu fundem-se em uma música elaborada. Isso, segundo alguns, os nacionalistas, deu-se em 1860 com a rapsódia "Sertaneja", feita sobre um tema folclórico paranaense - "Balaio meu bem balaio" - do compositor parnanguara Brasílio Itiberê.

Na PARTE II - pergunta 1, foi feita referência ao movimento MÚSICA VIVA, e agora ao nacionalismo, ao MO-VIMENTO NACIONALISTA. Esses são os movimentos polarizantes do debate sobre a música erudita brasileira na atualidade. Os universalistas (Música Viva) e os nacionalistas, os primeiros tendo à frente o professor H. J. Koellreutter e os segundos o maestro Camargo Guarnieri.

O professor Koellreutter introduziu na discussão musical uma ampla problemática, que envolve o mundo cultural como um todo. Os nacionalistas continuam insistindo que são assim, porque são brasileiros. O movimento do professor Koellreutter e de seus pupilos não deixa de representar um avanço quantitativo à música brasileira, na medida que amplia os horizontes teóricos e técnicos dessa música, porém, é falho em não visualizar os aprofundamentos políticos implicados na luta estética. Nesse pé encontra-se a música erudita.

b) A Música Popular Folclórica

Os avanços da música erudita chegam até à massa sem acesso à informação, com séculos de atraso e somente em nível intuitivo. A música popular folclórica é uma simples reelaboração da música erudita nos seus aspectos modais e tonais referentes aos séculos passados, mas amplamente fecunda na aura de seu envolvimento.

c) A Música Popular de Consumo

A música popular de consumo usa a linguagem espontânea e intuitiva da música popular folclórica, manipula seu conteúdo, transforma-a em produto e a vende devolvendo à massa consumista, na medida em que é a sua própria linguagem que retorna transformada em mais-valia. Atrelada ao capitalismo internacional e aos veículos de massificação, sufoca-se tanto a música popular folclórica (urbana e rural) quanto a música erudita.

3 - Qual é a realidade dessa música?

As idéias (Gedanken) da classe dominante são, em cada época, as idéias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade, é ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante." (A Ideologia Alemã)

Marx e Engels

R - A realidade dessa música é a realidade nojenta de um povo dominado econômica e culturalmente, vítima de toda espécie de espoliação e engodo. Denunciar a nossa realidade cultural é denunciar o maior crime cometido contra um povo, realidade que permeia todos os povos do terceiro mundo - objeto de todo tipo de vergonha.

PARTE III: EPÍLOGO

E COMO TIRAR A MÚSICA DA CADEIRA?

A luta é única, não só é da música dominada como é de todos os dominados.

A consciência jamais pode ser outra coisa do que o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo de vida real.4 4 PESSANHA, JOSÉ AMÉRICO MOTA. PLATAO. Coleção Os Pensadores, SP. Abril Cultural, 1979.

Através de uma educação conscientizadora, poderemos chegar a uma transformação qualitativa do mundo cultural como um todo. Cultivar dragões e queimar cadeiras fazem parte do quadro.

Educar é recriar, rearticular, reconscientizar. E música é força espiritual revolucionária (recriadora, rearticuladora e reconscientizadora) e não água estagnada, força podre que envolve o homem e o seduz, atrofiando seu cérebro, impossibilitando-o de pensar (repetindo, desarticulando, alienando) a serviço da cadeira e do rei. No ano do Dragão a Fênix renascerá das cinzas. (Ver introdução...)

  • 1 - FOUCAULLT, Michel apud BORGES, Emir R. Menegal. Uma prática da leitura São Paulo, Col. Debates, 1980.
  • 2 - KONDER, Leandro. Dialética São Paulo, Brasiliense, 1981.
  • 3 - SOUEFF, Enio. O nacional e o popular na cultura brasileira São Paulo, Brasiliense, 1983.
  • 4 - PESSANHA, José Américo Mota. Platão São Paulo, Abril Cultural, 1979.
  • 1
    FOUCAULT, MICHEL,
    Les Mots et les Choses, Paris, Gallimard, 1966. Trechos reproduzido em: Emir R. Monegal, Borges,
    Uma Poética da Leitura, SP, 1980 - Col.
    Debates.
  • 2
    KONDER, Leandro.
    DIALÉTICA. Coleção Primeiros Passos, São Paulo, Brasiliense, 1981.
  • 3
    SQUEFF, ENIO & WISNIK, JOSÉ MIGUEL
    O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira. SP, Brasiliense, 2.ed., 1983.
  • 4
    PESSANHA, JOSÉ AMÉRICO MOTA.
    PLATAO. Coleção Os Pensadores, SP. Abril Cultural, 1979.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Mar 2015
    • Data do Fascículo
      Dez 1987
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