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O professor da educação básica no Brasil: identidade e trabalho

The basic education teachers in Brazil: identity and labor

Resumos

Este artigo apresenta um conjunto de leituras a partir de dados de bases secundárias com o intuito de analisar o perfil dos trabalhadores docentes na educação básica brasileira, sua identidade e suas relações com o trabalho. Utilizando informações do Censo dos Profissionais do Magistério de 2003 e do Questionário do Professor aplicado pela Prova Brasil 2011, ambas bases produzidas pelo INEP/MEC, o estudo produz um mapeamento das principais características dos profissionais docentes e coteja tal leitura com demais trabalhos que o campo de investigação vem produzindo. O texto conclui evidenciando características da população docente, bem como mostrando como os professores mais experientes e mais bem formados são recompensados salarialmente; ademais mostra aspectos das condições de trabalho e do perfil cultural, sendo que, nesse último item, evidencia um nível cultural fragilizado entre os docentes.

professor da educação básica; trabalho docente; políticas educacionais


This paper presents a set of readings from secondary data bases in order to analyze the teacher’s profile in Brazilian basic education, their identity and their relationship to work. Using information from the 2003 Census of Teachers and the data from the Teacher’s Questionnaire applied by Prova Brasil 2011, both bases produced by INEP/MEC, the study produces a mapping of the main characteristics of teachers and collates such analysis with other works that the research field has produced. The text concludes highlighting features of the teaching population, as well as showing how more experienced and well trained teachers are rewarded in salary terms; furthermore, it shows aspects of working conditions and the cultural profile, and in this last item it shows a fragile cultural level between teachers.

basic education teachers; teaching work; educational policies


DOSSIÊ

SINDICALISMO DOCENTE: EXPERIÊNCIAS, LIMITES, DESAFIOS E PERSPECTIVAS

O professor da educação básica no Brasil: identidade e trabalho1 1 Este estudo se articula aos trabalhos das pesquisas "Trabalho Docente na Educação Básica no Brasil", coordenada pelo Grupo de Estudos sobre Política Educacional e Trabalho Docente/Universidade Federal de Minas Gerais (GESTRADO/UFMG) e financiada pela Secretaria de Educação Básica/Ministério da Educação (SEB/MEC), e "Remuneração de professores de escolas públicas da educação básica: configurações, impactos, impasses e perspectivas", coordenada pela Universidade de São Paulo (USP) e financiada pelo Observatório da Educação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior/Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (CAPES/INEP). Em ambas, participei como pesquisador vinculado ao Núcleo de Políticas Educacionais da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

The basic education teachers in Brazil: identity and labor

Ângelo Ricardo de Souza

Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo(PUC/SP). Professor e pesquisador do Núcleo de Políticas Educacionais e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná (NuPE/UFPR), Brasil. E-mail: angelo@ufpr.br

RESUMO

Este artigo apresenta um conjunto de leituras a partir de dados de bases secundárias com o intuito de analisar o perfil dos trabalhadores docentes na educação básica brasileira, sua identidade e suas relações com o trabalho. Utilizando informações do Censo dos Profissionais do Magistério de 2003 e do Questionário do Professor aplicado pela Prova Brasil 2011, ambas bases produzidas pelo INEP/MEC, o estudo produz um mapeamento das principais características dos profissionais docentes e coteja tal leitura com demais trabalhos que o campo de investigação vem produzindo. O texto conclui evidenciando características da população docente, bem como mostrando como os professores mais experientes e mais bem formados são recompensados salarialmente; ademais mostra aspectos das condições de trabalho e do perfil cultural, sendo que, nesse último item, evidencia um nível cultural fragilizado entre os docentes.

Palavras-chave: professor da educação básica; trabalho docente; políticas educacionais.

ABSTRACT

This paper presents a set of readings from secondary data bases in order to analyze the teacher's profile in Brazilian basic education, their identity and their relationship to work. Using information from the 2003 Census of Teachers and the data from the Teacher's Questionnaire applied by Prova Brasil 2011, both bases produced by INEP/MEC, the study produces a mapping of the main characteristics of teachers and collates such analysis with other works that the research field has produced. The text concludes highlighting features of the teaching population, as well as showing how more experienced and well trained teachers are rewarded in salary terms; furthermore, it shows aspects of working conditions and the cultural profile, and in this last item it shows a fragile cultural level between teachers.

Keywords: basic education teachers; teaching work; educational policies.

Introdução

Quem é o professor de educação básica no Brasil? Diversos estudos (TENTI FANFANI, 2007; SOUZA; GOUVEIA, 2011; GATTI; BARRETO, 2009; OLIVEIRA, 2004) têm se dedicado a responder essa pergunta. Em parte, porque se pretende conhecer até que ponto a imagem que se tem do professor corresponde à composição real do imenso quadro de trabalhadores neste país. Mas, também porque há uma preocupação em se averiguar as possíveis mudanças pelas quais estariam passando esses profissionais, tendo em vista os câmbios na condução e direção das políticas educacionais, em geral, e das dedicadas ao trabalho/trabalhador docente, em especial.

Tais mudanças e suas resultantes no trabalho docente, em particular as vinculadas às reformas educacionais iniciadas nos anos de 1990/2000, foram bastante estudadas (dentre outros: SOUZA; COSTA, 2009; MAUÉS, 2010; OLIVEIRA, 2010) e um aspecto que tem sido mostrado nesses estudos diz respeito aos impactos que as reformas provocaram no perfil e no trabalho docente. Contudo, as reformas

não são uniformes, e, em uma conjuntura mais recente, há inclusive inflexões na direção que tais movimentos têm apontado para o trabalho docente. Verifica-se, desta maneira, a existência de políticas que tanto tornam o trabalho docente mais fragmentado e precarizado, quanto ações, mesmo em menor proporção, que valorizam a profissão docente, como são os casos da lei federal do Piso Salarial Profissional Nacional dos professores (Lei 11.738/08) e as Diretrizes Nacionais para a Carreira do Magistério (SOUZA; GOUVEIA, 2011, p. 1).

Tais mudanças, ainda que representem movimentos por vezes contraditórios, estão articuladas ao crescimento significativo no número de postos de trabalho no campo profissional da docência, tendo em vista a ampliação quantitativa de vagas na educação básica brasileira nas últimas duas décadas, assim como também se conectam ao aumento das exigências formais de formação para esses docentes e, ainda, às possíveis mudanças no perfil econômico e cultural do povo brasileiro, decorrentes dos câmbios na distribuição da renda na sociedade brasileira (IBGE, 2012).

Neste artigo, a contribuição para a resposta àquela primeira pergunta é feita com a focalização em dois aspectos da vida dos trabalhadores docentes: a valorização profissional e as relações com o trabalho; e o nível cultural.

As fontes empíricas utilizadas neste estudo foram o questionário de contexto aplicado aos docentes de matemática e língua portuguesa do 5º e do 9º ano do ensino fundamental por ocasião da aplicação da Prova Brasil (PB) de 2011 e o questionário aplicado aos trabalhadores docentes, de escolas públicas e privadas, por ocasião do Censo dos Profissionais do Magistério (CPM), em 2003, ambos em todo o território nacional. Todavia, aqui trabalhamos apenas com os profissionais das redes públicas de ensino.

Tendo em vista essas fontes, aqueles aspectos mencionados acima tomam recortes peculiares, pois nem sempre o que a literatura entende como um daqueles construtos é o que é possível de ser identificado mediante as perguntas dos questionários, cujos escopos fogem aos objetivos de um estudo como este que gerou o artigo. Isto é, o questionário de contexto da PB tem por objetivo fornecer informações que auxiliem a explicação de fatores que interfiram nos resultados dos alunos que realizaram as provas; por isso aplica-se tal questionário aos docentes desses alunos. O questionário do CPM, por seu turno, tem um enfoque panorâmico sobre o profissional docente, mas não necessariamente sobre o trabalho docente.

Todavia, ainda que as fontes apresentem alguns problemas metodológicos2 2 O questionário da Prova Brasil é aplicado apenas aos professores das redes públicas que atuam nos 5ºs anos ou nas disciplinas de matemática e língua portuguesa para os 9ºs anos do ensino fundamental. Isso pode conter características que enviesem um tanto a amostra, pois não são todos os docentes (nem a expressão amostral deles) que respondem o questionário. De qualquer forma, tivemos 65.535 docentes, com aquele perfil, respondendo o questionário em 2011. Já o questionário do Censo dos Profissionais do Magistério foi respondido por 1.542.878 profissionais que atuavam na educação básica em funções docentes. Todavia, a cobertura do censo não foi completa: "Planejado inicialmente para exercer um alcance censitário, o Censo dos Profissionais do Magistério da Educação Básica, devido a problemas operacionais nas fases de planejamento e execução, não obteve êxito neste propósito inicial" (MEC, 2006, p. 15). A cobertura do censo atingiu 77,8% das escolas brasileiras e 61,8% dos docentes. , considero-as úteis para o levantamento de informações, cujo tratamento nesta investigação permite identificar aspectos importantes sobre o perfil dos professores, sua identidade profissional e suas relações com o trabalho e a cultura. Esta leitura dos dados será também confrontada, ao longo do texto, com as anotações e conclusões de outros trabalhos que tratam da mesma temática (SOUZA; GOUVEIA; DAMASO, 2009; SOUZA; GOUVEIA, 2011; GATTI; BARRETO, 2009).

As bases de dados aqui utilizadas mostram uma variação na quantidade total de respondentes para cada questão. Isso ocorre porque alguns respondentes (quase) sempre deixam de responder dadas perguntas. As tabelas, por isso, lidam apenas com os dados percentuais das respostas válidas. Ao final do texto, na forma de anexo, são apresentados os quantitativos absolutos de respostas para cada item/variável analisado no artigo.

Identidade, valorização profissional e relações com o trabalho

As mulheres, conforme o Censo Demográfico de 2010, são 51% da população brasileira. Mas, sabidamente, na profissão docente são uma maioria ainda mais ampla, desde há muito tempo. As bases de dados aqui utilizadas mostram informações distintas, as quais podem ter relação com o público respondente aos questionários específicos. No CPM 2003, as mulheres são mais de 85% dos docentes, enquanto na PB 2011 elas são pouco menos de 70%. Outros estudos mostram números próximos, mas distintos: Souza e Gouveia (2011), com base nos questionários de contexto do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), mostram que entre 1997 e 2007 a participação feminina no magistério cresceu de 71% para 74%; Gatti e Barreto (2009), utilizando a Pesquisa Nacional por Amostragem Doméstica (PNAD) de 2006, evidenciam a presença feminina na profissão docente na educação básica em 67%.

De qualquer forma, trata-se mesmo de uma profissão dominantemente feminina. Todavia, esta participação feminina é mais intensa na educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental e menor nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio (GATTI; BARRETO, 2009).

No que tange à raça/etnia, 47,8% da população brasileira se autodefine como branca. Nos levantamentos aqui observados, os professores brancos são quase 60% em 2003 e menos de 25% em 2011. Gatti e Barreto (2009) também mostram que quase 68% dos professores se autodeclararam brancos em 2006. O que explica tamanha divergência? Parece-nos que, inicialmente, o público investigado e as metodologias utilizadas mudam conforme o levantamento em questão. Ademais, os problemas metodológicos mencionados parecem influenciar, pois a quantidade de não resposta é elevada nesta variável na PB 2011 (quase 25%). Mesmo porque, com base de dados parecida (SAEB), Souza, Gouveia e Damaso (2009) mostram que entre 1997 e 2007 o percentual de docentes autodeclarados brancos é sempre próximo da média nacional (49% em 1997 e 53% em 2007).

Os docentes da educação básica no Brasil em sua maioria são pessoas com experiência de trabalho. Isso quer dizer que, mesmo com a renovação de quadros, com a ampliação na contratação, os docentes estão permanecendo mais tempo na profissão. Isso parece se articular com as consequências geradas pela reforma previdenciária, na qual a introdução de uma idade mínima associada ao tempo de contribuição para que o trabalhador pudesse se aposentar e, além disso, o estabelecimento de valores máximos a serem pagos aos aposentados podem estar gerando essa condição de permanência dos docentes na ativa, seja demorando mais para se aposentar, seja regressando ao trabalho, com novos contratos, após a aposentadoria.

Segundo o CPM 2003, quase ¼ dos trabalhadores docentes estão na profissão há mais de 20 anos, e quase 70% têm mais de 10 anos de trabalho. Na PB 2011, a distribuição é um pouco diferente, e isso pode estar relacionado com aquele perfil do respondente do questionário, que trabalha somente com os docentes de séries específicas do ensino fundamental. De qualquer forma, há uma ampliação na permanência na profissão, tendo em vista o perfil dos docentes nas décadas anteriores, conforme Souza e Gouveia (2011, p. 5) já alertavam:

Correspondente ao envelhecimento da população docente, encontramos um aumento da experiência profissional, pois em 1997 tínhamos 14,6% dos docentes com mais de 21 anos de trabalho docente, enquanto em 2007, este grupo representa mais de ¼ do total da população. E, na outra ponta, enquanto em 1997, 27,6% dos docentes tinham menos de 5 anos de atuação profissional, em 2007, este grupo cai para 17,1%.

Os estudos têm mostrado (SOUZA; GOUVEIA, 2011) que as condições salariais dos professores têm se revertido em relação a períodos anteriores, pois nesses a proletarização vinculada à massificação da educação (anos 1970/1980) e a reorganização estrutural do trabalho (docente) e das políticas educacionais (anos 1990) geraram, sabidamente, uma condição de trabalho, carreira e remuneração um tanto frágil aos professores.

A partir dos anos 2000, as condições salariais dos docentes parecem ter se revertido na média, possivelmente pela influência da política nacional de fundos (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério - FUNDEF e, depois e mais recentemente, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação - FUNDEB). As tabelas a seguir mostram dados referentes aos salários dos docentes, deflacionados para o mês de outubro de 2012, portanto comparáveis entre si. Mas, como são bases distintas é possível verificar diferenças, sendo que os salários encontrados no CPM 2003 são menores do que os da PB 2011. Como no CPM 2003 há docentes de educação infantil e das demais séries/anos não avaliados pela Prova Brasil, é razoável supor que são justamente esses profissionais que tensionam a média salarial para baixo no Censo.

Com exceção aos docentes da PB 2011 das redes municipais que não possuem mais que o Ensino Fundamental completo (grupo que chega a apenas 0,1% da amostra), e que informaram ter um dos salários mais altos (estranhamente próximo a R$ 2.500,00), para os demais, a escolaridade mais alta representa salários mais elevados, o que corresponde aos achados do censo demográfico de 20103 3 Ver mais em: < http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/resultados_gerais_amostra/default_resultados_gerais_amostra.shtm>. (IBGE, 2010), sendo que os salários dos docentes com maior escolaridade equivalem de 80% a 90% a mais que os com menor escolaridade em 2003 e 33% a mais em 2011.

O tempo de serviço também influencia o crescimento na escala salarial. Isso tem relação com a lógica de funcionamento dos planos de carreira (ABREU, 2008), nos quais a ascensão, que gera maior remuneração, está relacionada a elementos como escolaridade, avaliação de desempenho e, em especial, tempo de serviço.

Nessa relação entre salário e tempo de serviço vemos que os mais altos salários médios são pagos a profissionais com mais de 20 anos de serviço. Todavia, a quantidade de profissionais experientes aumentou e a diferença salarial entre os inexperientes e os mais experientes tem diminuído, conforme mostram Souza e Gouveia (2011, p. 9):

A experiência profissional parece comprometer a faixa de crescimento salarial, pois encontramos um pequeno achatamento salarial no topo da carreira, pois os profissionais mais experientes são os que, com o passar da década, menos tiveram seus ganhos atualizados. Os docentes com mais de 20 anos de carreira ganhavam em 2007 28% mais do que em 1997. Já o grupo com menor experiência, com menos de 15 anos de docência, tiveram todos perto de 50% de ganhos.

E:

[...] o que vimos foi um crescimento do grupo de profissionais com mais experiência e é justamente este grupo que obteve ganhos

[salariais]

menores. Como se trata de profissionais melhor remunerados e, agora, compondo um grupo quantitativamente grande, o poder público tende a obstaculizar seus avanços salariais. No geral, [...], todos ganham, mas se o grupo com menos experiência é menor quantitativamente, então é possível fazer com que ganhem mais e, com isto, não saiam da profissão (SOUZA; GOUVEIA, 2011, p. 10).

O resultado desse processo é uma "homogeneização na carreira docente" (SOUZA; GOUVEIA, 2011, p. 10). Tal homogeneização aproxima os mais experientes dos menos em termos salariais. Em 2003, os mais experientes recebiam 137% a mais que os menos experientes em média. Esta diferença em 2011 era de 32%, por sinal, diferença equivalente à encontrada entre os docentes mais e os menos escolarizados.

Souza e Gouveia (2011) sugerem que essa mudança no perfil salarial relacionado ao tempo de serviço pode ser resultado das reformas previdenciárias que levaram os docentes a permanecerem mais tempo na ativa. Com o acúmulo de profissionais no final da carreira, e com o incremento do piso salarial dos docentes, os custos para o pagamento de pessoal tendem a se intensificar; com isso a administração pública busca mecanismos para diminuir os impactos financeiros dessa mudança de perfil e, assim, concede aumentos/reajustes salariais menores aos profissionais mais experientes. Ainda com um achatamento salarial, o trade-off dessa situação é o equilíbrio entre o início e o final da carreira, ou melhor, uma distribuição mais equitativa entre as pontas da carreira, diminuindo a dispersão salarial, em conformidade, ao que parece, ocorrer em outros campos no Brasil (OIT BRASIL, 2012).

Ao que parece, à estabilidade no emprego se somam condições salariais mais vantajosas, em geral. Os docentes estatutários recebem em média salários mais altos que os seus pares não estáveis na carreira. Os contratados por meio da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) apresentam, na média, salários um pouco menores que os estatutários, e os docentes temporários ainda um pouco menos.

Todavia, o percentual de docentes estatutários tem se mantido estável no país (mais ou menos 2/3 dos trabalhadores docentes). Souza, Gouveia e Damaso (2009) já mostravam que entre 1997 e 2007, o percentual de docentes estatutários se manteve praticamente inalterado (próximo a 70% nas redes estaduais e municipais). Com isso, a estratégia que o poder público encontra para lidar com os custos mais elevados que um servidor estatutário lhe proporciona é parecida com aquela outra utilizada para dirimir os problemas relacionados à quantidade de docentes mais experientes. Nesse outro caso, porém, a administração pública parece manter o percentual de estatutários na rede de ensino, pois ampliar a participação desse grupo no total de docentes representa custos mais altos. Assim, aos docentes estáveis são destinadas políticas salariais e de carreira de maior reconhecimento e valorização, enquanto que os não efetivos tendem a ter condições mais desfavoráveis e, ao que parece, são justamente esses os que pagam pelo incremento das condições daqueles.

A ausência de estabilidade representa quase sempre impossibilidade de carreira no serviço público. Os docentes que não são estatutários não estão dispostos em um plano de carreira, em particular os com contratos temporários, pois usualmente são recontratados todos os anos, impedindo qualquer ascensão profissional. Não parece possível, nesse cenário, um envolvimento completo do docente com o seu trabalho e com a escola e, de outro lado, esta situação de absoluta instabilidade tende a pesar na autoidentificação (BOCK, 1999) com a profissão docente.

Outro aspecto relevante na relação com o trabalho tem a ver com a jornada semanal e com o número de escolas nas quais o docente tem compromissos profissionais. Tal informação é importante porque uma condição de qualidade para o trabalho docente é justamente a possibilidade de se envolver mais com o trabalho, e isso é potencializado quando o professor não precisa ter de se deslocar para outras escolas.

Em relação, então, a esse ponto, chama a atenção o fato de que em torno de 60% dos docentes brasileiros trabalham em uma única escola. Tal indicador já havia sido reconhecido inclusive oficialmente (MEC/INEP, 2009) e em outros estudos (SOUZA; GOUVEIA; DAMASO, 2009).

No CPM 2003, tínhamos ¼ dos docentes atuando em 2 escolas simultaneamente e na PB 2011 esse grupo representava quase 40%. Essa atuação em até duas escolas não representa necessariamente um problema,

por conta do fato de que a maioria das redes públicas de ensino não contrata profissionais para um regime de 40 horas semanais, o que permite que os professores tenham tempo suficiente para outro contrato de trabalho. Isto quer dizer que se o professor atua em duas escolas, é possível que tenha dois contratos de 20 horas semanais, por exemplo, com condições de dedicação razoável a cada uma delas em um turno diário de trabalho de 4 horas (SOUZA; GOUVEIA; DAMASO, 2009, p. 62).

Todavia, é importante destacar que quanto mais escolas um professor tem que atender maior também é sua jornada de trabalho semanal. Isso quer dizer que aqueles docentes que se deslocam mais para trabalhar também trabalham mais tempo. E Souza, Gouveia e Damaso (2009, p. 64) mostravam que quanto maior é a jornada semanal menor é o pagamento por hora trabalhada. Ou seja, os docentes que atuam em mais escolas trabalham mais tempo e recebem menos por isso.

De outro lado, acerca daquele contingente que atua em apenas uma escola, poderia se supor que não trabalham em mais escolas porque têm outro contrato de trabalho, fora da educação inclusive. O levantamento feito em ambos os bancos de dados, isolando-se os docentes nessa condição (trabalham em apenas uma escola), mostra que tal suposição não se confirma, pois quase 80% desse grupo informa que não tem outro trabalho.

Perfil cultural

O trabalho docente tem forte relação com o desenvolvimento científico e cultural, tendo em vista os seus objetos de atuação e interação e, em especial, sua função social. Mas, como os professores fruem a cultura e como este padrão se distribui de acordo com as identidades e condições de trabalho docente?

Com o intuito de buscar as informações para responder esta pergunta, fomos conhecer como os professores responderam questões articuladas a comportamentos culturais presentes nas duas bases aqui analisadas. As questões disponíveis no CPM 2003 solicitavam: "Assinale as principais atividades que você pratica/participa com frequência fora do ambiente de trabalho", e elencava 17 atividades, dentre as quais "leitura de livros", "assiste filmes em cinema", "assiste a peças teatrais", "vai a shows", etc.

Na PB 2011, perguntava-se: "Você costuma:" e, em uma escala que variava de "Sempre ou quase sempre" a "Nunca", o professor precisava classificar sua vida cultural em relação a ir a museus, ir ao cinema, ir a apresentações teatrais, ver apresentações musicais, ler livros, etc.

As perguntas não eram iguais nos dois questionários, sendo que na PB havia uma escala e no censo as alternativas de respostas eram apenas "sim" ou "não" e isso pode influenciar a escala do nível cultural, como veremos.

Converteu-se, conforme o apêndice, as respostas dos docentes em pontos que variavam de 0 a 18 e eles foram distribuídos em uma escala de nível cultural, apresentada no quadro 1, onde se observa que abaixo de 6 pontos o nível cultural é considerado muito baixo e acima de 15 é considerado muito bom. Testou-se a escala com três professores da educação básica e com três outros sujeitos de diferentes formações e atuações profissionais e, com esse procedimento, validou-se a escala, que parece responder bem ao seu propósito neste estudo.


Há diferenças na média do nível cultural nas duas bases e isso pode ter relação com o fato do CPM 2003 ser censitário de toda a educação básica e a PB 2011 ser parcial do ensino fundamental, conforme informado anteriormente, ou pode ainda estar relacionado com aquela diferença na forma de elaboração das questões. Chama a atenção de que, em ambas as bases, o nível cultural não é bom: no censo de 2003, o nível cultural médio é baixo (em torno de 7,3) e na PB 2011 é regular (9 pontos), demonstrando o ingrediente quiçá mais complexo e a enorme dificuldade que temos, no Brasil, para ampliar a qualidade do trabalho pedagógico, tendo em vista a associação entre o nível cultural e a natureza do trabalho docente. Ainda que tenhamos diferenças entre as bases, há coincidência no fato de que em torno de ¼ dos professores apenas se encontram nos níveis bom ou muito bom.

De qualquer sorte, o nível cultural cresce no CPM 2003 conforme o número de escolas em que o docente atua, mas com diferença mais significativa entre os docentes que atuam em uma escola e os que atuam em duas ou mais. Isso se relaciona ao nível de atuação profissional do docente, por um lado, pois professores do ensino médio e anos finais do ensino fundamental têm, sabidamente, melhor formação e melhor remuneração e também são os que têm que atuar em mais de uma escola. Por outro lado, pode estar relacionado também com a localização geográfica das escolas, isto é, trata-se de docentes que vivem em cidades nas quais há maior oferta cultural, mas também onde a lógica de trabalhar em mais de uma escola está mais presente: quanto maior a cidade isso parece ocorrer com mais frequência.

Já na PB 2011, o melhor nível cultural é expresso por aqueles docentes que atuam em duas escolas, sem grandes diferenças para com os demais. É de se destacar que dentre todas as variáveis cruzadas com o nível cultural, o fato de trabalhar em duas escolas é uma das únicas nas quais o nível cultural ultrapassa a barreira dos 9 pontos.

Como seria esperado, o nível cultural tem direta relação com o nível de formação do professor. Em 2003, no CPM, enquanto os docentes com ensino fundamental incompleto tinham nível cultural 3,9, os com ensino superior tinham 8 pontos no nível cultural. Na PB 2011, o mesmo ocorre, ainda que com variação menor, pois os professores com ensino fundamental tinham nível cultural 7,6 e os pedagogos tinham nível cultural 9. Esse é um achado que, como dito, já seria esperado, mas confirma a importância da formação inicial e continuada para os professores. Se são profissionais que trabalham com a cultura e a ciência, o seu nível cultural deve ser o mais elevado possível, pois isso representa, antes de tudo, maior domínio sobre o seu próprio objeto, além, por certo, da importância mais geral de termos docentes com compreensão mais ampliada sobre a cultura, em todas as suas manifestações.

O nível cultural, pelo menos na PB 2011, também parece ter relação positiva com a condição mais estável de trabalho, pois os docentes estatutários apresentam resultado melhor que a média das condições trabalhistas. No CPM 2003, isso não ocorre, ainda que os estatutários fiquem acima dos contratados pela CLT. Talvez os professores temporários, naquele contexto, sejam predominantemente os que atuam nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio.

Em ambos os levantamentos, os docentes municipais têm nível cultural menor que os estaduais. Também têm menor formação e menor salário. Esses dois aspectos podem auxiliar a compreender aquela diferença. No CPM 2003, os professores municipais tinham um nível cultural 6,8 enquanto os estaduais 7,4. Na PB 2011, os municipais tinham um nível 8,7, ao passo que os estaduais 9,5.

Por fim, avaliamos o nível cultural dos docentes que afirmaram participar de atividades político-partidárias e de atividades sindicais. Infelizmente, questões dessa natureza não estavam presentes na PB 2011. Em 2003, portanto, quase 90% dos professores não se envolviam em nenhum tipo dessas atividades. E, em ambos os casos de não envolvimento, o nível cultural é sentidamente menor do que os 10% que participam de partidos políticos ou de sindicatos, sendo que os que participam de atividades político-partidárias expressam um nível cultural ainda mais elevado. Uma hipótese que pode ajudar a esclarecer isso pode estar relacionada com o fato de que pessoas com leituras mais ampliadas dos movimentos sociais e culturais têm, potencialmente, maior clareza sobre a importância de se envolver em atividades de natureza política e reivindicatória.

Conclusões

Este estudo, dominantemente descritivo, se propôs a trabalhar com informações disponíveis em bases de dados nacionais com o intuito de auxiliar e alargar os conhecimentos sobre a identidade docente. Para tanto, analisou as respostas dadas por professores em questionários para questões atinentes ao perfil pessoal, profissional e cultural. Os limites óbvios do levantamento têm relação, dentre outros aspectos, com a (pequena) quantidade de variáveis trabalhadas, focalizando bastante o estudo. Todavia, exatamente por isso, algumas conclusões são possíveis, mesmo que apenas para esses pontos.

As leituras feitas a partir dos dados, cotejadas a outros estudos equivalentes, permitiram concluir que: a) o perfil étnico dos professores se aproxima da média nacional, portanto, não parece haver discriminação desta natureza no acesso aos postos de trabalho na educação escolar; b) os docentes são uma população envelhecida, com uma entrada de jovens na profissão docente em menor proporção ao crescimento da oferta de postos de trabalho, sugerindo que os professores estão levando mais tempo para se aposentar e/ou estão retornando, após o jubilamento, ao trabalho; c) os salários pagos aos professores expressam uma relação positiva com a formação inicial e com o tempo de serviço, sendo que os mais bem formados chegam a ganhar até 90% a mais que os de menor formação e, em relação à experiência, esta diferença chega, entre os que têm mais tempo de serviço e os com menos tempo, a mais de 130%; d) a estabilidade é duplamente recompensada na carreira docente, porque além dos benefícios dela em si, os maiores salários são pagos a este grupo de professores, contudo, parece haver certa cristalização da distribuição de professores conforme as situações contratuais, uma vez que próximo a 30% dos docentes, há muito tempo, são profissionais sem a estabilidade estatutária; e) diferentemente do que a percepção comum mostra, os professores são majoritariamente um estrato profissional com jornada que não ultrapassa 30 horas semanais, com um só emprego e em uma só escola; f) o nível cultural dos professores está entre baixo e regular, sendo que esse nível se altera de acordo com as mudanças no perfil de formação inicial e de condições de trabalho, assim como tem relação com a participação do docente em atividades políticas e reivindicatórias.

Esse conjunto de achados necessita ser mais bem conhecido e o que pode ajudar são estudos mais focalizados, em pequenos grupos, ou então em estudos com instrumentos cujo objetivo seja levantar mais e melhor informações sobre este objeto. As bases de dados aqui utilizadas são interessantes, mas não foram desenhadas para o escopo deste estudo e, com isso, o possível enviesamento fica fortalecido. De qualquer maneira, esses achados nos auxiliam a conhecer um pouco mais sobre quem são os professores da educação básica no Brasil.

Texto recebido em 10 de outubro de 2012.

Texto aprovado em 25 de outubro de 2012.

ANEXO - Números absolutos de respostas nas variáveis utilizadas

a) Perfil Pessoal

b) Tipo de contrato de trabalho

c) Em quantas escolas trabalha e carga horária semanal

d) Possui outro trabalho

APÊNDICE - Nível cultural

a) Pontuação para construção do nível cultural - Prova Brasil 2011

b) Pontuação para construção do nível cultural - CPM 2003

c) Tabela com a pontuação do Nível cultural

  • ABREU, D. C. Mudanças na carreira e no salário dos professores da rede municipal de ensino de Curitiba e as condições de financiamento da educação - 1998/2006 Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2008.
  • BOCK, Ana M. B. A Psicologia a caminho do novo século: identidade profissional e compromisso social. Estudos de Psicologia v. 4, n. 2, 1999.
  • GATTI, B.; BARRETO, E. S. Professores do Brasil: impasses e desafios. Brasília: UNESCO, 2009.
  • IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2011 Brasília, 2012.
  • IBGE. Resultados Gerais da Amostra do Censo Demográfico 2010 Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/resultados_gerais_amostra/default_resultados_gerais_amostra.shtm>. Acesso em: 01/10/2012.
  • MAUÉS, O. A reconfiguração do trabalho docente na educação superior. Educar em Revista, n. especial. Curitiba: Ed. UFPR, 2010.
  • MEC/INEP. Censo dos Profissionais do Magistério 2003 - Microdados Brasília, 2006.
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  • 1
    Este estudo se articula aos trabalhos das pesquisas "Trabalho Docente na Educação Básica no Brasil", coordenada pelo Grupo de Estudos sobre Política Educacional e Trabalho Docente/Universidade Federal de Minas Gerais (GESTRADO/UFMG) e financiada pela Secretaria de Educação Básica/Ministério da Educação (SEB/MEC), e "Remuneração de professores de escolas públicas da educação básica: configurações, impactos, impasses e perspectivas", coordenada pela Universidade de São Paulo (USP) e financiada pelo Observatório da Educação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior/Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (CAPES/INEP). Em ambas, participei como pesquisador vinculado ao Núcleo de Políticas Educacionais da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
  • 2
    O questionário da Prova Brasil é aplicado apenas aos professores das redes públicas que atuam nos 5ºs anos ou nas disciplinas de matemática e língua portuguesa para os 9ºs anos do ensino fundamental. Isso pode conter características que enviesem um tanto a amostra, pois não são todos os docentes (nem a expressão amostral deles) que respondem o questionário. De qualquer forma, tivemos 65.535 docentes, com aquele perfil, respondendo o questionário em 2011. Já o questionário do Censo dos Profissionais do Magistério foi respondido por 1.542.878 profissionais que atuavam na educação básica em funções docentes. Todavia, a cobertura do censo não foi completa: "Planejado inicialmente para exercer um alcance censitário, o Censo dos Profissionais do Magistério da Educação Básica, devido a problemas operacionais nas fases de planejamento e execução, não obteve êxito neste propósito inicial" (MEC, 2006, p. 15). A cobertura do censo atingiu 77,8% das escolas brasileiras e 61,8% dos docentes.
  • 3
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Jul 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013

    Histórico

    • Recebido
      10 Out 2012
    • Aceito
      25 Out 2012
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