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Relação ensino-aprendizagem da docência: traços da Pedagogia de Paulo Freire no Ensino Superior

Teaching-learning correlation at the university: aspects of Freirean Pedagogy in Higher Education

Resumo

Com o objetivo de contribuir com o debate sobre a docência no Ensino Superior, compreendendo-a como fenômeno educativo concreto e historicamente situado, o artigo aponta elementos para uma práxis dialógica na formação do professor universitário. Recorre à pesquisa bibliográfica e ao estudo qualitativo de natureza exploratória para refletir sobre o Estágio de Docência com âncora nos aportes teóricos de Lima (2002, 2015), Pimenta (2002, 2006), Ghedin (2010), Freitas (2016) e da Pedagogia de Paulo Freire. O reconhecimento das contradições inerentes ao contexto político e sua influência na formação para a docência no espaço-tempo da universidade indica a pesquisa como princípio formativo e ato de conhecimento mediador do contato e da reflexão com e sobre a realidade da sala de aula na universidade, com vistas a compreender e objetivar ações e relações autenticamente formadoras.

Palavras-chave:
relação ensino-aprendizagem; Estágio de Docência; Pedagogia de Paulo Freire

Abstract

This article explores some aspects of dialogical practices in the education of university professors. It seeks to contribute to the debate on teaching practices in Higher Education, understood as a historically-situated concrete fact. This has been done through an analsys of Teaching Internships based on qualitative research and on the works of Lima (2002, 2015), Pimenta (2002, 2006), Ghedin (2010), Freitas (2016) and Paulo Freire's Pedagogy. Recognizing both the contradictions inherent to political contexts and their influence on the day-to-day education of teachers indicates research as a formative principle and as an understanding act capable of intermediating approaches and considerations towards the realities of university classrooms experience. Thus, research was aimed at understanding and realizing actions and relationships that are truly educational.

Keywords:
teaching-learning correlation; University Teaching Internships; Freirean Pedagogy

Introdução

A relação ensino-aprendizagem da docência para a Educação Superior situa-se na complexidade de um contexto de necessidades e exigências formativas para os estudantes da pós-graduação. Com o expressivo crescimento do Ensino Superior em todos os campos do conhecimento, a possibilidade de qualificação e de desenvolvimento profissional tem na pós-graduação uma porta de ingresso para a docência universitária.

A obrigatoriedade do Estágio de Docência, para todos os estudantes matriculados, está inserida na estrutura curricular dos cursos de pós-graduação stricto sensu. Com efeito, tal atividade soma-se ao desafio de produção da pesquisa em tempo mínimo, aos trabalhos das disciplinas obrigatórias e optativas, à cobrança institucional por pontuação no currículo lattes, ao relacionamento com o orientador, entre outros desafios do cotidiano acadêmico.

As considerações, aqui expostas, apontam para alguns questionamentos: O que é Estágio de Docência e quais as suas possibilidades formativas para o processo ensino-aprendizagem da profissão de professor universitário? Como é situada esta atividade no processo histórico e conceitual, que compõe as ideias pedagógicas do Estágio de Docência, nas distintas maneiras de pensar quadros para o Ensino Superior? Qual a contribuição da pedagogia freireana para o Estágio de Docência, na relação com os processos formativos que se desenvolvem na pós-graduação?

No intuito de contribuir com o debate sobre a docência no Ensino Superior, compreendendo-a como fenômeno educativo concreto e historicamente situado, apontando elementos para uma práxis dialógica na formação do professor universitário, realizamos uma pesquisa bibliográfica e um estudo qualitativo de natureza exploratória.

A pesquisa bibliográfica se constituiu em prática investigativa valiosa, nos moldes apresentados por Silva e Farias (2011SILVA, S. P.; FARIAS, I. M. S. Pesquisa e prática pedagógica II. Fortaleza: UAB, 2011.), por permitir a ampliação das formulações sobre Estágio de Docência e acerca das contribuições de Paulo Freire, que nos ajuda a compreender as relações teoria-prática, ensino-aprendizagem e ensino-pesquisa, para conceituar a pesquisa como ato de conhecimento.

Os achados e reflexões da pesquisa O Estágio de Docência nos Programas de Pós-graduação stricto sensu da Universidade Estadual do Ceará: tendências formativas a partir da pedagogia freireana e do professor pesquisador1 1 Para Freire (1996), a prática pedagógica segue na direção do compromisso histórico com a superação das condições de exploração. Pimenta e Ghedin (2006), ao sistematizarem os conceitos de professor reflexivo e professor pesquisador no movimento de formação, desde 1990, apontam alternativas que emergem da análise: instaurar na escola uma cultura de análise das práticas vivenciadas, com base na sua problematização e da realização de projetos coletivos de investigação com a colaboração da universidade; reforçar a importância da universidade para os processos formativos, que tomem a realidade existente (as escolas, por exemplo) como parte integrante e a pesquisa como eixo central. , da qual participamos, evidenciam traços da operacionalidade, limites e possibilidades do Estágio de Docência, como exercício orientado para o ensino-aprendizagem da docência no Ensino Superior. Além disso, nos ajudam a compreender a docência no contexto da Didática, campo de conhecimento complementar do Estágio de Docência, e a pesquisa como princípio formativo da constituição de professores universitários.

As reflexões sobre a docência no Ensino Superior, com foco no estágio, ancoradas nos aportes teóricos da Pedagogia de Paulo Freire e dos achados do estudo exploratório, nos levam a assumir a totalidade como pressuposto para reconhecer as contradições inerentes ao contexto político e pedagógico, sua influência na formação para a docência no espaço-tempo da universidade e a indicar a pesquisa como princípio formativo e ato de conhecimento. A pesquisa como elemento mediador do contato e da reflexão, com e sobre a realidade da sala de aula na universidade, instiga-nos a compreender e objetivar modos de ações e relações instituidoras de um autêntico processo formador, como aponta a epígrafe do texto.

O Estágio de Docência como espaço de ensino-aprendizagem na Educação Superior

Percorrendo a trilha histórica e conceitual do Estágio Supervisionado nos cursos de formação de professores, Pimenta e Lima (2010PIMENTA, S. G.; LIMA, M. S. L. Estágio e docência. 7. ed. São Paulo: Cortez , 2010.) apontam os enfoques que se seguem: a prática como imitação de modelos; o Estágio como "a hora da prática"; o Estágio situado na aproximação com a realidade; o Estágio como atividade teórica instrumentalizadora da práxis; o Estágio como pesquisa e o Estágio como campo de conhecimento.

O estudo conceitual e metodológico do Estágio de Docência abrange a função do professor da universidade, que tem a Didática como porta de entrada na profissão de professor do Ensino Superior. Na sociedade dita do conhecimento, não basta saber a ciência a ser ensinada, pois é preciso estabelecer a mediação entre este campo de conhecimento e os estudantes, de maneira que se promova o processo ensino-aprendizagem da profissão docente, valores e visão de mundo.

Pimenta (2006PIMENTA, S. G. Professor reflexivo no Brasil: construindo uma crítica. In: PIMENTA, S. G.; GHEDIN, E. (Org.). Professor reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito. 4. ed. São Paulo: Cortez , 2006.) ensina que o professor pode, com sua atividade docente, se transformar a si mesmo e também mudar a sociedade circundante. Para tanto, não se pode prescindir de uma postura crítica. Pimenta e Lima (2010PIMENTA, S. G.; LIMA, M. S. L. Estágio e docência. 7. ed. São Paulo: Cortez , 2010.) asseveram que o professor, em sua ação docente, precisará recorrer ao conhecimento da área na qual é especialista, ao conhecimento pedagógico e ao conhecimento do sentido e significado da Educação na perspectiva da formação humana.

É preciso levar em conta a noção de que a prática pedagógica docente é objeto dos reflexos da sociedade e das exigências das instituições, pois, ao mesmo tempo em que o professor vive uma corrida em busca de melhores condições de trabalho, falta-lhe tempo para a leitura e a preparação das aulas.

A resignificação das práticas e teorias pressupõe que o professor saia do campo teórico e desenvolva uma visão crítico-reflexiva da realidade socioeducacional em que está inserido. Nessa direção, o Estágio de Docência pode se constituir como oportunidade de formação do professor-pesquisador, no exercício de aliar ensino-pesquisa, um diferencial nas práticas de sala de aula. (PIMENTA, 2002PIMENTA, S. G. O estágio na formação de professores. 7. ed. São Paulo: Cortez , 2002.).

Pensar a reflexão como caminho, de acordo com Ghedin (2010GHEDIN, E. Professor reflexivo: da alienação da técnica à autonomia da critica. In: PIMENTA, S. G.; GHEDIN, E. (Org.). Professor reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito. 6. ed. São Paulo: Cortez , 2010.), requer de nós um ato de vontade e uma ação de coragem em busca de possibilidades de mudança. Mesmo nas contradições e limites, que impedem ou dificultam a reflexão, é preciso um impulso de superação para descobrir as portas abertas em direções que ainda não havíamos percebido. Assim, o conhecimento é uma possibilidade de reaver a dignidade do ser humano inserto no contexto social.

Em revisão de literatura sobre o Estágio de Docência (ED), Freitas (2016FREITAS, E. N. B. O estágio docência na formação de professores da educação superior: representações de estudantes do mestrado em saúde coletiva. 2016. 134 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, 2016.) mapeia conceitos e reflexões e encontra que: é uma atividade que contribui para a elaboração de estratégias de ensino-aprendizagem (MARTINS, 2013MARTINS, M. M. M. de C. Estágio de docência na Pós-Graduação stricto sensu: uma perspectiva de formação pedagógica. 2013. 137 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2013.); deve pautar-se na indissociabilidade ensino-aprendizagem (FEITOSA, 2002FEITOSA, J. P. A. Construindo o estágio de docência na Pós-Graduação em Química. Revista Química Nova, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 153-158, jan./fev. 2002.); precisa configurar-se na articulação teoria-prática (JOAQUIM; VILAS BOAS; CARRIERI, 2012JOAQUIM, N. de F.; VILAS BOAS, A. A.; CARRIERI, A. de P. Entre o discurso praticado e a realidade percebida no processo de formação docente. Avaliação, Campinas, Sorocaba, v. 17, n. 2, p. 503-528, jul. 2012.); ser fruto de uma elaboração coletiva (JOAQUIM et al., 2011JOAQUIM, N. de F.; NASCIMENTO, J. P. de B.; VILAS BOAS, A. A.; SILVA F. T. Estágio docência: um estudo no programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal de Lavras. Revista de Administração Contemporânea, Curitiba, v. 15, n. 6, p. 1137-1151, nov./dez. 2011.); pode assumir a perspectiva da reflexão-ação como elemento fundante (PACHANE, 2005PACHANE, G. G. Teoria e prática na formação pedagógica do professor universitário: elementos para discussão. Publicatio UEPG, Ponta Grossa, v. 13, p. 13-24, jun. 2005.); precisa considerar a complexidade da docência universitária (SANTOS, 2013SANTOS, K. C. G. dos. O estágio docente e o desenvolvimento de competências: um estudo no Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal da Paraíba. 2013. 162 f. Dissertação (Mestrado em Administração) - Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2013.); constitui-se como importante meio para a formação pedagógica do professor ou futuro professor da Educação Superior. (OLIVEIRA; SILVA, 2012OLIVEIRA, M. L. C. de; SILVA, N. C. da. Estágio de docência na formação do mestre em enfermagem: relato de experiência. Enfermagem em Foco, v. 3, p. 131-134, 2012.).

O movimento de Estágio de Docência na pós-graduação vem acontecendo com a legislação, que constitui sua obrigatoriedade pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) como prática curricular. Em 2002, foi editada pela CAPES a Portaria nº 065, estabelecendo que:

Art. 17. O Estágio de Docência é parte integrante da formação do pós-graduando, objetivando a preparação para a docência, e a qualificação do ensino de graduação sendo obrigatório para todos os bolsistas do Programa de Demanda Social, obedecendo aos seguintes critérios:

I - no Programa que possuir os dois níveis, mestrado e doutorado, a obrigatoriedade ficará restrita ao doutorado;

II - no Programa que possuir apenas o nível de mestrado, ficará obrigado à realização do estágio;

III - as Instituições que não oferecerem curso de graduação deverão associar-se a outras Instituições de ensino superior para atender as exigências do Estágio de Docência;

IV - o Estágio de Docência com carga superior a 60 (sessenta) horas poderá ser remunerado a critério da Instituição, vedado à utilização de recursos repassados pela CAPES;

V - a duração mínima do Estágio de Docência será de um semestre para o mestrado e dois semestres para o doutorado;

VI - compete à Comissão de Bolsa/CAPES, registrar e avaliar o Estágio de Docência para fins de crédito do pós-graduando, bem como a definição quanto à supervisão e o acompanhamento do estágio;

VII - o docente de ensino superior que comprovar tais atividades ficará dispensado do Estágio de Docência;

VIII - as atividades do Estágio de Docência deverá ser compatível com a área de pesquisa do programa de pós-graduação realizado pelo pós-graduando. (CAPES, 2002COORDENAÇÃO DE APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL DE NÍVEL SUPERIOR (CAPES). Portaria nº 65, de 18 de novembro de 2002. Disponível em: <Disponível em: http://www.capes.gov.br >. Acesso em: 15 maio 2016.
http://www.capes.gov.br ...
, não paginado).

Em 2003, foi publicada a Portaria nº 22/2003, determinando a inclusão do inciso IX no Regulamento anterior: "- havendo específica articulação entre os sistemas de ensino pactuada pelas autoridades competentes, e observadas as demais condições estabelecidas neste artigo, admitir-se-á a realização do estágio docente na rede pública do ensino médio". (CAPES, 2003COORDENAÇÃO DE APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL DE NÍVEL SUPERIOR (CAPES). Portaria nº 22, de 05 de junho de 2003. Disponível em: <Disponível em: http://www.capes.gov.br >. Acesso em: 15 maio 2016.
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, não paginado)

Atualmente, o Estágio de Docência é regulamentado nacionalmente pela Portaria nº 76COORDENAÇÃO DE APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL DE NÍVEL SUPERIOR (CAPES). Portaria nº 76, de 14 de abril de 2010. Disponível em: <Disponível em: http://www.capes.gov.br >. Acesso em: 15 maio 2016.
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, de 14 de abril de 2010, que inclui junto aos outros elementos já postos nos documentos anteriores a carga máxima de quatro horas semanais para as atividades inerentes às suas práticas.

A obrigatoriedade do Estágio para os pós-graduandos, bolsistas e não bolsistas parte do entendimento de que os cursos de pós-graduação stricto sensu constituem uma porta de entrada para a docência universitária, já que o estágio é uma das escassas atividades nos cursos voltadas para a formação docente.

Em análise do Plano Nacional de Pós-Graduação (PNPG) (2011 a 2020), Freitas (2016FREITAS, E. N. B. O estágio docência na formação de professores da educação superior: representações de estudantes do mestrado em saúde coletiva. 2016. 134 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, 2016.) observa que, mesmo apontando a necessidade de profissionais qualificados para atuar no Ensino Superior, não privilegia a formação docente, em detrimento de outros aspectos, como:

[...] novas modalidades de interação entre universidade e sociedade, particularmente entre a universidade com a escola básica; a formação multi, inter e transdisciplinares; a interiorização do sistema de Pós-Graduação e a equalização das oportunidades, combatendo as assimetrias das áreas de conhecimento; o aumento do número de doutores por mil habitantes, de 1,4 para 2,8 em 2020. (FREITAS, 2016FREITAS, E. N. B. O estágio docência na formação de professores da educação superior: representações de estudantes do mestrado em saúde coletiva. 2016. 134 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, 2016., p. 29-30).

Na direção do PNPG, Martins (2013MARTINS, M. M. M. de C. Estágio de docência na Pós-Graduação stricto sensu: uma perspectiva de formação pedagógica. 2013. 137 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2013.) destaca a necessidade de se estimular a efetivação de uma política nacional de pós-graduação no país, considerando que esta deveria ser o lugar por excelência da formação dos docentes do Ensino Superior, que vai repercutir na melhoria dos cursos de graduação, desde que seja capaz de mobilizar recursos materiais e humanos para viabilizá-la.

Mesmo que repetidas experiências de estágio já tenham acontecido no âmbito da universidade, observa-se ainda a falta de um espaço para discussão e socialização dessas experiências, para que se viabilize a elaboração de conhecimentos e saberes sobre a prática, superando sua redução à mera aplicação de teorias ou como fazer, feição que se assemelha ao treinamento técnico. Entre o como fazer e o todo fazer docente na Educação Superior há o processo ensino-aprendizagem de uma profissão, de maneira que as experiências de Estágio constituam práticas significativas para a formação docente e o desenvolvimento profissional e pessoal dos estagiários, conforme se pode depreender dos achados da pesquisa:

o estágio é o momento de aprendizagem de uma profissão, é a passagem que ocorre em meio às relações sociais, em que se processam trocas de experiências acerca das práticas educativas, dos objetivos de ensino e aprendizagem e da produção de significados sobre a docência na educação superior;

a possibilidade do Estágio em Docência ser considerado como práxis passa tanto pela leitura crítica da pós-graduação stricto sensu como espaço inserido em um contexto social de desafios institucionais, quanto pela figura do professor orientador, sua história de vida, seus valores, visão de mundo, de ciência e de professor universitário;

o Estágio de Docência dos cursos de Pós-graduação stricto sensu não é o único, mas é uma oportunidade, por excelência, de conhecimento profissional e do trabalho docente na educação superior e na formação do professor pesquisador, que se materializa através de uma aproximação dialógica com os seus profissionais, extrapolando, assim, as questões ligadas apenas à sala de aula;

a Pedagogia é considerada como área do conhecimento que investiga a realidade educacional, em que os momentos da prática docente - planejamento, metodologia e avaliação - devem ser definidos a partir da organização da escola e da reflexão sobre as questões de âmbito social, político e econômico do contexto onde está situada;

a Didática, como área da Pedagogia, se constitui como um prolongamento das questões pedagógicas que dizem respeito à construção e à apropriação de saberes ocorridos nas situações concretas das salas de aula e das instituições educacionais. (LIMA, 2015LIMA, M. S. L. O estágio de docência nos Programas de Pós-Graduação stricto sensu da Universidade Estadual do Ceará: tendências formativas a partir da pedagogia freireana e do professor pesquisador. Relatório de pesquisa. Fortaleza: UECE, 2015., p. 37-38).

O reconhecimento da Didática, como área da Pedagogia que tem como objetos de análise os atos de ensinar e aprender, reverbera no reconhecimento da Educação como prática social e para a necessária relação entre este componente curricular, voltado à formação de professores para atuarem na Educação Superior, e os conhecimentos situados no campo da Pedagogia e da Didática. Além dos conhecimentos pertinentes a cada área de atuação, se constitui como fundamental a leitura crítica do contexto de atuação profissional, seus limites e possibilidades, bem como o entendimento da construção identitária do docente como um processo complexo, mediado por questões sociais, econômicas, culturais, epistemológicas e institucionais, entre outras.

Pensar a Didática como processo, exercício, realidade em constituição nos mobiliza em direção aos desafios da realidade concreta, que resvalam em incertezas e curiosidades, advindas das ações e relações vivenciadas na aula. A aula, entendida como o espaço-tempo coletivo de conquista e de formulação de saberes, na perspectiva do sujeito e da universidade em movimento. (FARIAS et al., 2014FARIAS, I. M. S. de; SALES, J. de O. C. B.; BRAGA, M. M. S. de C.; FRANÇA, M. do S. L. M. Didática e docência: aprendendo a profissão. 4. ed. Brasília: Liber Livro, 2014.; FAGUNDES; BRAGA, 2015FAGUNDES, M. C. V.; BRAGA, M. M. S. de C. Por uma didática humanizadora à luz de Paulo Freire. In: REUNIÃO NACIONAL DA ANPED, 37., 2015, Florianópolis. Anais... Florianópolis: UFSC, 04 a 08 de outubro de 2015.).

A complexidade da prática docente vivenciada na universidade aponta para a elaboração coletiva como elemento fundante da formação pedagógica, que considere pressupostos necessários a um saber-fazer transformador. Nessa direção, a Pedagogia de Paulo Freire evidencia relações - teoria-prática, ensino-aprendizagem e ensino-pesquisa - que permitem situar a pesquisa como ato de conhecimento e princípio formativo da docência na pós-graduação.

Pressupostos de Paulo Freire para a prática pedagógica docente-discente na universidade

Na perspectiva progressista, a prática pedagógica docente-discente, como espaço e tempo de ações e relações entre sujeitos do processo ensino-aprendizagem, mediados pelo conhecimento, vai além da utilização de métodos e técnicas, como advoga Veiga (2008VEIGA, I. P. A. Organização didática da aula: um projeto colaborativo de ação imediata. In: VEIGA, I. P. A. (Org.). Aula: gênese, dimensões, princípios e práticas. Campinas: Papirus, 2008. (Coleção Magistério: Formação e Trabalho Pedagógico).). Na universidade, a prática pedagógica se organiza como espaço de negação da dominação, superando a condição de instrumento para reproduzir a estrutura social vigente, associando: teoria-prática, ensino-aprendizagem e ensino-pesquisa.

Para Freire (1996FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.), o trabalho educacional precisa partir da realidade, no intuito de possibilitar o diálogo permanente com a reflexão em um processo de formulação do conhecimento, com suporte na relação teoria-prática. Na busca da análise da prática e da leitura de mundo estão imbricadas as posturas dos professores, que perseguem desenvolver a "prática de pensar a prática", cabendo-lhes empreender o exercício de uma competência que abrange a totalidade e, ao mesmo tempo, a atividade docente, porquanto,

Especificamente humana a educação é gnosiológica, é diretiva, por isso política, é artística e moral, serve-se de meios, de técnicas, envolve frustrações, medo, desejos. Exige de mim, como professor, uma competência geral, um saber de sua natureza e saberes especiais, ligados à minha atividade docente. (FREIRE, 1996FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996., p. 70).

Professores que envidam esforços em práticas pedagógicas transformadoras não prescindem da teoria, que nutre a compreensão da razão de ser do processo formativo que coordenam, antecipando possíveis embates que se darão em reação a elas. A relação dialética teoria-prática orienta as ações político-pedagógicas, pois a teoria não pode ser dicotomizada da prática em que vivemos. (FREIRE, 2001aFREIRE, P. A Educação na Cidade. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2001a.).

Refletir sobre a prática cotidiana é uma necessidade que se transforma em desafio a ser enfrentado incessantemente (FREIRE, 1996FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.), remetendo ao que Lima (2002LIMA, M. S. L. A hora da prática. 4. ed. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 2002., p. 39) denomina de uma postura de eterno aprendiz: "É na condição de eternos aprendizes da prática docente que vamos mudando, fazendo e refazendo a nossa profissão, bem como, crescendo como pessoa e como profissionais".

A prática docente-discente demanda "[...] uma programação que pode ser refeita durante o processo permanente de sua avaliação. Praticar implica programar e avaliar a prática. E a prática de programar, que se alonga na de avaliar a prática, é uma prática teórica". (FREIRE, 2001aFREIRE, P. A Educação na Cidade. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2001a., p. 109). Na compreensão de Paulo Freire, o educador e a educadora críticos não podem pensar que, com suporte no curso que coordenam ou no seminário que lideram, podem transformar o país, mas podem demonstrar que é possível mudar. E isso reforça, nele ou nela, a importância de sua tarefa político-pedagógica de, pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem, melhorar a prática de amanhã.

Ao acentuar que a prática docente crítica envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer, de modo que, se voltando sobre si mesma, por via da reflexão sobre a prática, a curiosidade ingênua, percebendo-se como tal, se vá tornando crítica. Para Freire (1996FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.),

[...] quanto mais me assumo como estou sendo e percebo a ou as razões de ser de porque estou sendo assim, mais me torno capaz de mudar, de promover-me, no caso, do estado de curiosidade ingênua para o de curiosidade epistemológica2 2 Paulo Freire define-a como sendo a curiosidade que busca conhecer a razão de existir do objeto. . Não é possível a assunção que o sujeito faz de si numa certa forma de estar sendo sem a disponibilidade para mudar. Para mudar e de cujo processo se faz necessariamente sujeito também. (FREIRE, 1996FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996., p. 44).

A condição de sujeitos de transformação é encontrada na Pedagogia de Paulo Freire (1978FREIRE, P. Cartas à Guiné-Bissau: registro de uma experiência em processo. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978., p. 27), que indica a necessidade de que se compreenda a criticidade como "[...] a forma radical de ser dos seres humanos, enquanto seres, que não apenas conhecem, mas sabem que conhecem". A criticidade é elemento mediador da relação teoria-prática, princípio fundante da formação permanente. (FREIRE, 2000FREIRE, P. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. 10. ed. São Paulo: Olho d'Água, 2000.).

Com amparo em Freire, compreendemos a formação permanente como a apreensão crítica do espaço pedagógico, calcada em leituras aprofundadas das ações e relações nela vivenciadas, intencionando a superação de condições de exploração e rotina, com suporte na leitura constante, análise, interpretação, escrita e reescrita da realidade. (FREIRE, 1996FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996., 2000).

A formação permanente constitui-se e institui-se como um princípio que não se coaduna com a feição transmissora dos conteúdos, mas com a perspectiva construtora do conhecimento, vinculando ensino-aprendizagem. Orienta que os conteúdos precisam fazer sentido e ter significado para o estudante e que o professor assuma uma atitude rigorosa na prática de conhecer e crítica no respeito aos saberes populares, a serem superados pelo saberes culturalmente produzidos, mediante o exercício da curiosidade epistemológica. (FREIRE, 1996FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.).

Aliado ao aguçamento da curiosidade epistêmica, o diálogo entre professor e estudante como sujeitos do ato de conhecer configura a prática de ensinar-aprender na sala de aula. Sala de aula como espaço-tempo de desenvolver ações criadoras, por meio da valorização do pensamento divergente e no estímulo à elaboração de respostas que superem as expectativas, o convencional. (BRAGA, 2015BRAGA, M. M. S. de C.. Prática pedagógica docente-discente: traços da pedagogia de Paulo Freire na sala de aula. Recife: Editora UFPE, 2015.).

O diálogo, entendido como uma "[...] relação epistemológica, de horizontalidade, capaz de gerar autonomia, responsabilidade e compromisso pelo exercício da fala-escuta" (SANTIAGO, 2007SANTIAGO, M. E. Campo Curricular, Prática Pedagógica e Pedagogia Freireana. Revista de Educação da AEC, Brasília: AEC, n. 142, p. 28-40, 2007., p. 37), materializa a associação ensino-aprendizagem, permitindo o conhecimento da realidade em suas múltiplas situações e causalidades, ao estabelecer relações entre sujeito e contexto, sujeito e sujeito, pensar e fazer, teoria e prática, reflexão e ação. Pensada nessa lógica, a prática do que fazer na Educação e nas ações que acontecem dentro e fora do espaço escolar assume uma perspectiva crítico-transformadora, favorecendo os grupos subalternizados da sociedade. (SAUL, 2014SAUL, A. M. Políticas e práticas educativas inspiradas no pensamento de Paulo Freire. Currículo sem Fronteiras, v. 14, n. 3, p. 129-142, set./dez. 2014.).

Paulo Freire nos dá a dimensão do mundo num constructo histórico. Um mundo formado pela história, pela cultura, pela política, fazendo-nos constatar que nele estamos não para nos adaptar, mas para promover a mudança. Decorrente dessa posição, não há como conceber o espaço pedagógico como neutro, imune a uma ideologia, como o querem os defensores da Escola Sem Partido3 3 Segundo Gregório Grisa, as pessoas que propõem a "escola sem partido" defendem uma suposta neutralidade pedagógica, visando "[...] impedir que educadores incentivem seus alunos a participarem de movimentos sociais, de manifestações e de debates políticos [...]. Setores religiosos contrários a "ideologia de gênero" (com sérios traços de homofobia, racismo e misoginia em seus repertórios valorativos) e políticos saudosos do regime militar encabeçam essas propostas". Disponível em: <http://seauniversidadefossenossa.com.br/2016/06/07/qual-e-ideologia-da-escola-sem-partido/>. Acesso em: 08 jun. 2016. . Uma escola em que, supostamente, se treinam os alunos para práticas apolíticas como se a maneira humana de estar no mundo pudesse ser neutra.

Enquanto seres humanos conscientes, podemos descobrir como somos condicionados pela ideologia dominante. Podemos distanciar-nos da nossa época. Podemos aprender, portanto, como nos libertar através da luta política na sociedade. Podemos lutar para ser livres, precisamente porque sabemos que não somos livres! É por isso que podemos pensar na transformação. (FREIRE; SHOR, 1986FREIRE, P.; SHOR, I. Medo e ousadia: o cotidiano do professor. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1986., p. 17).

Investir em práticas rigorosas, que tomam por base o entendimento de que o processo de conhecer nem é neutro nem é indiferente, implica "[...] procurar com rigor, com humildade, sem a arrogância dos sectários demasiado certos de suas certezas universais, desocultar as verdades escondidas pelas ideologias tão vivas quanto delas se diz que estão mortas". (FREIRE, 2001aFREIRE, P. A Educação na Cidade. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2001a., p. 113). Rigorosidade, humildade, desvelamento do real existente são elementos anunciadores da contribuição de Paulo Freire para conceituar pesquisa que, em associação com o ensino, se constitui como ato de conhecimento.

A pesquisa como ato de conhecimento: contributo de Paulo Freire para a formação de professores da Educação Superior

A Pedagogia freireana acentua que a relação ensino-pesquisa se configura à proporção que se ensina e se aprende o conhecimento em curso e na medida em que se trabalha a produção do conhecimento ainda não existente. Esses são os chamados momentos do ciclo gnosiológico que, por se encontrarem engendrados pela pesquisa, levam ao entendimento de que não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino; pesquisa entendida como movimento de busca por conhecer e constatar, constatar para intervir e, desse modo, educar e educar-se. (FREIRE, 1996FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.).

A pesquisa como atividade de estímulo à curiosidade configura-se como um direito do ser humano, com vistas à compreensão do objeto investigado. Contrariamente a isso, quando a curiosidade é freada, alcança o patamar mínimo da memorização.

Com a curiosidade domesticada posso alcançar a memorização mecânica do perfil deste ou daquele objeto, mas não o aprendizado real ou o conhecimento cabal do objeto. A construção ou a produção do conhecimento do objeto implica o exercício da curiosidade, sua capacidade crítica de "tomar distância" do objeto, de observá-lo, de delimitá-lo. De cindi-lo. De "cercar" o objeto ou fazer sua aproximação metódica, sua capacidade de comparar, de perguntar. (FREIRE, 1996FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996., p. 95).

A criação de um clima pedagógico para a produção do conhecimento pressupõe que o professor se revele aberto às indagações, à curiosidade, às perguntas dos alunos, às suas inibições. Um professor crítico, inquiridor e inquieto, ante a tarefa que tem, a de ensinar e não a de transferir conhecimento. (FREIRE, 1996FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.). Na acepção freireana, a pesquisa faz parte do processo de ensinar-aprender:

Fala‐se hoje, com insistência, no professor pesquisador. No meu entender o que há de pesquisador no professor não é uma qualidade ou uma forma de ser ou de atuar que se acrescenta à de ensinar. Faz parte da natureza da prática docente a indagação, a busca, a pesquisa. O que se precisa é que, em sua formação permanente, o professor se perceba e se assuma, porque professor, como pesquisador. (FREIRE, 1996FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996., p. 29).

O docente que se assume como pesquisador encontra no movimento da sociedade elementos para reconhecer o conhecimento como dinâmico e inacabado e passível de ser culturalmente apreendido e construído, levando-nos a compreender, como Freire (2013FREIRE, P. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 2013. [e-book].), que

[...] toda docência implica pesquisa e toda pesquisa implica docência. Não há docência verdadeira em cujo processo não se encontre a pesquisa como pergunta, como indagação, como curiosidade, criatividade, assim como não há pesquisa em cujo andamento necessariamente não se aprenda porque se conhece e não se ensine porque se aprende. (FREIRE, 2013FREIRE, P. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 2013. [e-book]., p. 123-124).

No contexto da Educação Superior, o ensino, quando associado à pesquisa, leva a um pensar e um agir comprometidos com a reflexão sobre o cotidiano em que se vive e atua. É nesse percurso que se percebem os distintos ângulos da prática e que se descobrem as possibilidades de romper com as amarras de um olhar comum, estereotipado, que em nada ajuda a compreender a realidade.

A integração com a realidade é inerente à consciência crítica que representa coisas e situações como as expressadas na sala de aula do Ensino Superior. Esse caráter da criticidade contribui com a intervenção consciente do ser humano no mundo, que constitui a consciência revolucionária, a consciência de classe. (FREIRE, 1988FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 18. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1988.).

A Pedagogia de Paulo Freire (1978FREIRE, P. Cartas à Guiné-Bissau: registro de uma experiência em processo. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.) indica-nos a necessidade de que se compreenda a criticidade como forma radical de ser dos seres humanos, como pessoas que, ao conhecerem, assumem a condição de sujeitos de transformação. Para tanto, a tomada de distância dos objetos pressupõe a percepção deles em suas relações uns com os outros. O processo dialético de afastar-se para se aproximar permite a apreensão rigorosa e crítica do objeto a ser conhecido, em suas relações com outros objetos, condição necessária "para alcançar a raison d'être dos mesmos". (FREIRE, 2001aFREIRE, P. A Educação na Cidade. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2001a., p. 112). Dessa maneira, Freire (1983) situa a pesquisa como ato de conhecimento.

[...] a pesquisa, como ato de conhecimento, tem como sujeitos cognoscentes, de um lado, os pesquisadores profissionais; de outro, os grupos populares e, como objeto a ser desvelado, a realidade concreta. Quanto mais, em tal forma de conceber e praticar a pesquisa, os grupos populares vão aprofundando como sujeitos, o ato de conhecimento de si em suas relações com a sua realidade, tanto mais vão podendo superar ou vão superando o conhecimento anterior em seus aspectos mais ingênuos. Deste modo, fazendo pesquisa, educo e estou me educando com os grupos populares. Voltando à área para pôr em prática os resultados da pesquisa não estou somente educando ou sendo educado: estou pesquisando outra vez. No sentido aqui descrito pesquisar e educar se identifica em um permanente e dinâmico movimento. (FREIRE, 1983FREIRE, P. Criando métodos de pesquisa alternativa. In: BRANDÃO, C. R. (Org.). Pesquisa participante. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 36-49., p. 36).

As colocações expressas permitem compreender que a identificação de problemas postos pela realidade torna possível, por meio do processo ensino-aprendizagem, assentado na "prática de pensar a prática", mobilizar o conhecimento em ação transformadora. No que tange à prática pedagógica desenvolvida no âmbito do Estágio de Docência, educar e pesquisar são dimensões que se cruzam no processo de ensinar-aprender a profissão de magistério no Ensino Superior.

Achados do estudo

O olhar para a contribuição de Paulo Freire nos ajuda a compreender a relação ensino-aprendizagem da docência para a Educação Superior, no complexo contexto de necessidades e exigências formativas hodiernas, destacando sua importância para o campo epistemológico do Estágio de Docência e da Pedagogia, que toma a Didática como área que se ocupa dos fenômenos de ensinar e aprender.

O estudo exploratório revela o Estágio de Docência como possibilidade de exercício profissional docente na Educação Superior em suas singularidades. Convida a pensar que a especificidade do Ensino Superior é a pesquisa. Os professores e estudantes dos cursos de pós-graduação stricto sensu, no entanto, por entenderem que o ensino dos conteúdos seja suficiente, não encaminham suas práticas nessa direção, levando-nos a entender que falta uma política institucional que valide, proponha e incentive a realização do Estágio de Docência como práxis dialógica.

As reflexões sobre os resultados da pesquisa O Estágio de Docência nos Programas de Pós-graduação stricto sensu da Universidade Estadual do Ceará: tendências formativas a partir da pedagogia freireana e do professor pesquisador e sua relação com o pensamento de Paulo Freire provocaram a ideia de que o Estágio, por si só, não pode responder aos desafios inerentes à formação e à prática dos professores universitários, de um modo geral, mas permite compreender que,

  1. no contexto de contradições em que se apresenta o Ensino Superior, o Estágio de Docência, como atividade fundante da formação docente, carece de maior atenção institucional quanto ao seu papel de instrumentalizador da práxis, exigindo planejamento e direção orientada;

  2. o Estágio de Docência está situado no campo epistemológico da Didática, convidando o professor universitário a associar a aprendizagem da profissão com os fenômenos do processo ensinar-aprender como campo de conhecimento;

  3. a produção teórico-prática de Paulo Freire contribui para o debate sobre docência no Ensino Superior, convergindo para dimensões formativas, que podem ser incorporadas ao Estágio de Docência na pós-graduação: o contexto social, a relação ensino-pesquisa e o conceito de pesquisa como ato de conhecimento; a visão do professor universitário como intelectual comprometido com processos de transformação da sociedade; e

  4. a compreensão da pesquisa como ato de conhecimento demanda uma formação do professor universitário na perspectiva de um novo agir, que pressupõe o reconhecimento de si como capaz de aprender, de conhecer criticamente para transformar a realidade e que o domínio dos conteúdos relativos à sua área de atuação não é suficiente para cumprir o seu papel como formador.

Os achados do estudo encaminham a discussão para compreendermos que, por se constituir como uma atividade complexa, o exercício da docência na Educação Superior demanda dos educadores a capacidade de, junto com os estudantes, ler a realidade, problematizá-la e, a partir da perspectiva dialógica, tornar a teoria prenhe de sentidos que se vinculam dialeticamente à prática social.

Considerações finais

Empreender estudos com apoio de uma pesquisa já realizada mobilizou a produção de outra investigação, suscitando novos olhares e intervenção sobre o Estágio de Docência, como política e prática pedagógica superadoras de rotinas que esgotam o interesse por aprender a profissão de professor universitário.

O reconhecimento da pesquisa como princípio formativo e como ato de conhecimento permite enveredar por novas análises sobre a docência no Ensino Superior, fortalecendo uma cultura formativa que exerça a reflexão sobre o processo de ensino-aprendizagem e as suas teorias, acerca da prática pedagógica e do contexto social em sua totalidade e movimento.

As reflexões de Paulo Freire acerca dos processos formativos contribuem com a literatura pedagógica, acrescentando posicionamentos que subsidiam a nossa proposição de que o Estágio de Docência seja uma oportunidade de reflexão e diálogo entre o ensino e a pesquisa, a teoria e a prática, o ensino e a aprendizagem.

A segunda contribuição dos estudos de Freire, atrelada ao necessário compromisso com a transformação da sociedade, nos leva a reconhecer que, além do como fazer, o Estágio de Docência se exprime como campo de conhecimento a ser explorado, na perspectiva de conhecimento da prática, com origem no investimento em pesquisa, não somente sobre a sala de aula, mas também sobre o magistério superior como um todo.

Ao trazer os estudos de Freire para aprofundar a compreensão do Estágio de Docência, apontamos a necessária superação do perfil de treinamento técnico, vindo a constituir-se como possibilidade formativa eivada de uma práxis dialógica, que toma a pesquisa como um ato de conhecimento. Para tanto, esperamos que os docentes da pós-graduação assumam a premissa freireana, expressa na epígrafe deste texto, de que educar é essencialmente formar como inspiração de suas práticas.

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  • 1
    Para Freire (1996), a prática pedagógica segue na direção do compromisso histórico com a superação das condições de exploração. Pimenta e Ghedin (2006PIMENTA, S. G.; GHEDIN, E. (Org.). Professor reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito. 4. ed. São Paulo: Cortez , 2006.), ao sistematizarem os conceitos de professor reflexivo e professor pesquisador no movimento de formação, desde 1990, apontam alternativas que emergem da análise: instaurar na escola uma cultura de análise das práticas vivenciadas, com base na sua problematização e da realização de projetos coletivos de investigação com a colaboração da universidade; reforçar a importância da universidade para os processos formativos, que tomem a realidade existente (as escolas, por exemplo) como parte integrante e a pesquisa como eixo central.
  • 2
    Paulo Freire define-a como sendo a curiosidade que busca conhecer a razão de existir do objeto.
  • 3
    Segundo Gregório Grisa, as pessoas que propõem a "escola sem partido" defendem uma suposta neutralidade pedagógica, visando "[...] impedir que educadores incentivem seus alunos a participarem de movimentos sociais, de manifestações e de debates políticos [...]. Setores religiosos contrários a "ideologia de gênero" (com sérios traços de homofobia, racismo e misoginia em seus repertórios valorativos) e políticos saudosos do regime militar encabeçam essas propostas". Disponível em: <http://seauniversidadefossenossa.com.br/2016/06/07/qual-e-ideologia-da-escola-sem-partido/>. Acesso em: 08 jun. 2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016

Histórico

  • Recebido
    16 Jun 2016
  • Aceito
    17 Jun 2016
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