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O ensino de ciências do 1.º grau nas escolas brasileira e norte-americana: uma comparação de seus currículos

ARTIGOS DE DEMANDA CONTÍNUA

O ensino de ciências do 1.º grau nas escolas brasileira e norte-americana: uma comparação de seus currículos

Karl Michael LorenzI; Araci Asinelli da LuzII; Sônia Maria Marchiorato CarneiroIII; Célia Fink BrandtIV; Tânia Brandt SantosV

IDoutor em Educação pela Columbia University, New York, USA. Professor Visitante do Curso de Mestrado em Educação da Universidade Federal do Paraná

IIProfessor Assistente do Departamento de Métodos e Técnicas da Educação da Universidade Federal do Paraná

IIIProfessor Assistente do Departamento de Métodos e Técnicas da Educação da Universidade Federal do Paraná

IVProfessor do Magistério Oficial do Estado do Paraná

VEspecialista em Supervisão Escolar

O ensino de Ciências nas escolas de 1º. grau, na maioria dos sistemas educacionais, assume uma posição importante nos currículos escolares, caracterizando-se como matéria obrigatória, pois ao mesmo tempo que proporciona uma cultura científica, contribui para o crescimento intelectual da criança. Pelo estudo dos conteúdos dessa matéria e pela vivência do método científico na escola, a criança alcança um entendimento de ciências e da sua importância na vida cotidiana.

A forma que estes estudos tomam no currículo da escola de 1.º grau depende.muito das idéias dos curriculistas sobre o que constitui o bom ensino de Ciências, da filosofia adotada com respeito aos fins da educação, dos pensamentos sobre o desenvolvimento intelectual da criança e de como todas essas considerações devem ser refletidas no currículo. Devesse também ter em conta quais são os recursos humanos e materiais de que dispõe a escola para implementar o tipo de ensino de sejado. Assim, cada currículo apresenta um ensino de Ciências que traduz os interesses e os pensamentos predominantes no sistema educacional em geral. Não é surpreendente, então, que currículos de 1.º grau possam deferir de um país para outro e, mais especificamente, que o conceito do ensino de Ciências varie conforme o país e seu sistema educacional.

No Brasil e nos Estados Unidos o ensino de Ciências é considerado importante para o aluno de lo. grau. No Brasil, o aluno de 1.º grau estuda Ciências em todas as oito séries desse nível, sendo que, nas primeiras séries, são ensinados conceitos básicos sob a forma de atividades e, nas últimas séries, os conhecimentos mais profundos das Ciências Físicas e Biológicas sob a forma de área de estudo. O estudo de Ciências é, acima de tudo, uma parte integrante da vida escolar do aluno primário, desde que curse as oito séries desse grau de ensino.

Nos Estados Unidos, o estudo de Ciências também é parte integrante da vida escolar da criança. O sistema descentralizado de educação permite que a escola primária adote um currículo de seis ou oito séries, dependendo da posição que a escola tome com relação às necessidades dos alunos. O mais comum, porém é uma escola de lo. grau com seis séries. O currículo adotado pode ser desenvolvido pelo pessoal da escola ou pode ser baseado integralmente nos programas apresentados nos livros didáticos ou projetos curriculares específicos para o ensino nesse nível.

E evidente que a seleção e a organização dos conteúdos a serem ensinados diferem num e noutro país, uma vez que cada sistema educacional decide o que é mais importante para o currículo de Ciências do 1º. grau. Liste fato levou a indagar-se até que ponto os currículos de 1º. grau das escolas brasileiras e norte-americanas são semelhantes ou diferentes a respeito do ensino de Ciências. Foi antecipado que as possíveis diferenças a serem encontradas deveriam revelar muito sobre o conceito de Ciências como área de estudo no 1º. grau e sobre a sua importância para a criança.

No desenvolvimento deste estudo foram comparados um currículo da escola brasileira de 1º. grau e outro da escola de lo. grau baseado nas diretrizes curriculares da Secretaria de Estado da Educação do Paraná.1 Estas diretrizes focalizam os conteúdos que devem ser ensinados nas várias séries de 1º. grau nas escolas da rede oficial do Estado do Paraná. Por outro lado. foi selecionada uma série de livros didáticos de Ciências publicados para as seis séries da escola de 1º. grau norte-americana e que configura um modelo curricular típico.2

Foram analisados apenas os conteúdos das quatro primeiras series do 1º. grau em razão da diferença do número de séries que compõem os estudos básicos nos dois países, bem como devido à estrutura dos seus currículos de Ciências: na escola brasileira, um programa dividido em atividades a áreas de estudo e. na norte-americana, um programa integralizado. Embora o estudo se tenha restringido a esta séries iniciais, a comparação dos currículos proporcionou um delineamento global das semelhanças e diferenças que caracterizam o ensino de Ciências nos dois sistemas educacionais.

Nos dois currículos foram identificados e listados os conteúdos de Ciências mais ensinados e determinados quais os conceitos comuns e não-comuns a ambos. Além disso, localizou-se em que séries esses conceitos são ensinados. Estas informações não só revelam a organização dos conteúdos de Ciências e sua respectiva importância, mas também indicam como os conteúdos são relacionados com as capacidades intelectuais do aluno.

A análise dos conteúdos possibilitou a identificação de cinquenta (50) conceitos de Ciências no currículo brasileiro e de quarenta e seis (46) no currículo americano, sendo que vinte e oito (28) desses conceitos aparecem nos dois currículos. Os conceitos e sua distribuição pelas séries constam do Quadro 1 (em anexo).


Como se pode observar, os dois currículos adotam programas abrangentes de Ciências em três áreas principais: Ciências naturais. Ciências Físicas e Geociências. As três áreas, porém, são enfatizadas de forma diferente. Dos conceitos ensinados na escola brasileira, mais da metade se refere às Ciências Naturais, aproximadamente um terço às Ciências Físicas e muito pouco às Geociências. De sua parte, a escola norte-americana evidencia uma situação inversa: quase a metade dos conceitos ensinados relaciona-se com as Ciências Físicas, aproximadamente um terço com as Ciências Naturais e uma parcela, mais ou menos proporcional à do currículo brasileiro, diz respeito às Geociências.

Pela comparação dos dois currículos conclui-se que, das três áreas, o currículo brasileiro dá maior importância às Ciências Naturais, enquanto o currículo norte-americano destaca as Ciências Físicas. Observe-se, a propósito, o Gráfico I:


Uma das possíveis explicações para a proporção diversa dos conteúdos de cada currículo, provenientes das Ciências Naturais e das Ciências Físicas, envolve um questionamento sobre o papel que a natureza e a tecnologia desempenham nos dois países, enquanto tal papel esteja implícito e refletido na diferença de ênfase detectada. Assim, num país como o Brasil, rico em recursos naturais, onde a natureza está muito próxima da vida de cada um, é importante que o aluno de lo. grau entenda de modo crescente a natureza e o ambiente em que ele vive. Nos Estados Unidos, de outro lado, a criança vive numa sociedade altamente tecnológica, sendo necessário que ela conheça e compreenda os conceitos de energia, força, etc., familiarizando-se na escola com muitos dos fenômenos cotidianos de sua vida. Pode-se supor, pois, que as diferenças de ênfase nos conteúdos dos currículos refletem os valores dos dois países, com respeito à relação homem-natureza à tecnologia.

Uma outra possível explicação para as diferenças entre os dois currículos está relacionada com a representação que a escola se faz das habilidades intelectuais que a criança possui. O currículo brasileiro focaliza os conteúdos de Ciências numa ordenação de complexidade, entendendo-se que, na medida em que a criança se desenvolva intelectualmente, estará preparada para estudos mais abstratos, como os compreendidos pelas Ciências Físicas. Daí o fato de aparecerem os conteúdos de Ciências Físicas apenas na 4a. série do 1º. grau. Já o currículo norte-americano pressupõe ser possível que a criança aprenda esses conceitos desde o início de sua escolarização. E aqui surge uma questão: como é possível a escola primária norte-americana propor o estudo de conceitos tão abstratos nas séries iniciais, tendo-se em vista a premissa de que, para a criança aprender algo, é preciso que vivencie e experimente concretamente o que esteja sendo estudado?

A resposta à questão acima se viabiliza pela análise da Tabela 1, que dá idéia da estrutura curricular de 1ª. - 4ª. séries adotada nos dois países em nível de 1º. grau:

Pela Tabela I verifica-se que muitos dos conceitos ensinados no currículo norte-americano são repetidos na seriação, enquanto que, em termos gerais, os conceitos do currículo brasileiro se restringem mais a determinadas séries. Ou seja, dos quarenta e seis (46) conceitos do currículo norte-americano vinte e oito (28) aparecem em mais de uma série, perfazendo 61% do total, contra dezoito (18), i. é, 39%, que integram uma única série. No currículo brasileiro, em contraposição, apenas doze (12) dos cinqüenta (50) conceitos levantados se repetem em mais de uma série, i. é, 24% do total, ao passo que trinta e oito (38) conceitos, correspondendo a 76% do total, são encontrados em uma única série.

A distribuição dos conceitos de Ciências, da 1ª. à 4ª. série do 1º. grau, no currículo norte-americano se fundamenta na posição de alguns curriculistas de que é possível ensinar qualquer conteúdo a alunos de qualquer idade, desde que tal conteúdo seja estruturado e apresentado de acordo com o nível intelectual do educando.3 Com base nesta concepção, certos conceitos são trabalhados de forma simples e elementar nas primeiras séries e, em séries superiores, reaparecem com maior complexidade, caracterizando o ''currículo em espiral". Assim, por exemplo, na Iª. série aparece o conceito de força: a criança estuda a relação entre força e peso dos corpos, a força da gravidade, a força magnética e a interferência do atrito no movimento dos corpos; na 3a. série reaparece o mesmo conceito, mas relacionado ao conceito de trabalho, como decorrente do movimento do ar e da água.

No currículo brasileiro não se evidencia esse tipo de estrutura dos conteúdos. Os conceitos que o aluno estuda em uma série não são, em sua maioria, retomados em séries posteriores. Neste currículo o conteúdo é mais restrito a uma única série, segundo um plano fundado em princípios psicológicos de maturidade evolutiva do aluno. Isto caracteriza um "currículo seriado". Por exemplo, o conceito de força é trabalhado somente na 4ª. série, como um tópico das Ciências Físicas, quando se focaliza a necessidade de forças para o movimento dos corpos: o desencadeamento do movimento e resistência ao mesmo, a força de gravidade e a força muscular em suas relações com o peso dos corpos e, como conseqüência, a introdução do conceito de trabalho e de máquinas simples.

Pode-se, portanto, concluir que as diferenças observadas, em termos de seleção e organização dos conteúdos de Ciências nas quatro séries iniciais do lo. grau, evidenciam percepções valorativas diversificadas nos dois sistemas educacionais relacionados no estudo.

Deve-se ressaltar que este estudo compreendeu a análise de um único modelo de currículo norte-americano que, embora bastante difundido e aceito, não representa uma média de aproximação ou afastamento em relação ao currículo adotado pela Secretaria de Estado da Educação do Paraná, assim como este currículo também não pode ser tomado como modelo típico do currículo brasileiro na área de Ciências. Além disso, o estudo limitou-se às quatro primeiras séries do lo. grau, não se ocupando com as séries subseqüentes desse grau nos dois sistemas educacionais. Espera-se que estudos mais detalhados sobre o ensino de Ciências, envolvendo outros currículos e outras séries do 1º. grau, venham a reforçar e complementar as conclusões deste trabalho.

NOTAS DE REFERÊNCIAS

  • 1 PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação e Cultura. Departamento de Ensino de Iş. grau. Currículo, Curitiba, Imprensa Oficial, 1977, 1978, 1979.
  • 2 BRANDERIN, Paul F. et alii. Concepts in Science. New York, Harcourt Brace Jovanovich, 1975.
  • 3 BRUNES, Jerome Seymor. O processo da educação. Trad, de Lólio Lourenço de Oliveira. 3 ed. São Paulo, Nacional, 1973. p. 1 - 29.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 1984
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