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Alfabetização e ortografia

Literacy and orthography

Resumos

A ortografia era uma das metas mais importantes na metodologia das cartilhas. Com o advento de novas metodologias, as cartilhas deixaram de ser usadas. Nas novas abordagens, a ortografia passou a ocupar um lugar secundário na alfabetização ou mesmo ficou excluída. Essa atitude com relação à ortografia representa um retrocesso educacional. Sem o método das cartilhas e sem informações técnicas sobre a ortografia, muitos professores se viram na situação de não saber o que fazer. O presente trabalho apresenta algumas das noções básicas que definem e caracterizam a ortografia e, além disso, sugere procedimentos metodológicos.

alfabetização; ortografia; ensino e aprendizagem


Spelling used to be one of the primary goals in the Brazilian Cartilha teaching methodology. With new approaches to literacy process in the past twenty years, the old Cartilha method is no more in use. On the other hand, teaching of spelling has been withdrawn from literacy activities. This procedure is misleading and it represents a serious problem for teachers and students. Without the old rigid methodology to literacy teachers, and with a lack of information to understand orthography nature and uses of orthography, teaching became chaotic, in this respect. This paper aims to report basic notions that characterise orthography as a special writing phenomenon, and at the same time to show methodological suggestions on how to deal with spelling in this new educational context.

spelling; orthography; literacy


DOSSIÊ - LINGUAGEM E ENSINO: TEMAS E PERSPECTIVAS

Alfabetização e ortografia* * Este trabalho faz parte do projeto PQ - 1A, Nº 301450/78-1, que conta com financiamento do CNPq. 1 Falantes com pouca instrução costumam achar que a ortografia é uma espécie de transcrição fonética que usa as letras com valores sonoros unívocos - o que é falso em muitos aspectos. Além disso, esses falantes têm menos consciência das questões de variação, embora saibam que sua fala é diferente e, às vezes, estigmatizada. Ao escrever, misturam questões de categorização funcional das letras (CAGLIARI, 1998a, p. 122; MASSINI-CAGLIARI; CAGLIARI, 1999, p. 148-150) com questões de variação dialetal, com falta de conhecimentos sobre a ortografia (MASSINI-CAGLIARI; CAGLIARI, 1999, p. 61-96), produzindo todo tipo de representação escrita (CAGLIARI, 1989, p. 120-146) que se pode derivar dessa situação (MASSINI-CAGLIARI; CAGLIARI, 1999, p. 49-58; 121-128). 2 Essa é uma das idéias tradicionais da prática pedagógica, mas não faz nenhum sentido. Em vez de evitar que a criança veja grafias erradas, é melhor ensinar como proceder diante de qualquer escrita. 3 Já há vários estudos sobre cartilhas (MORTATTI, 1999), algumas teses, mas falta ainda um estudo lingüístico mais detalhado desse tipo de material didático. É preciso reconhecer muitas das contribuições reais que esses livros trouxeram ao ensino. A visão apenas dos aspectos negativos tem confundido muitos professores e até pesquisadores. 4 A idéia do construtivismo trazida por Emília Ferreiro, por um lado, contribuiu muito para uma profunda revisão do processo de alfabetização entre nós, mas, por outro, trouxe muita confusão, em grande parte, gerada pelos próprios problemas e soluções dos trabalhos daquela pesquisadora. 5 Sempre fui favorável a que se tirassem as notas (provas etc.) das escolas, ocorrendo sempre uma promoção automática (CAGLIARI, 1996b). Muitos educadores confundem avaliação com promoção. A avaliação é fundamental. A promoção é outra coisa. Nos últimos anos, tem havido uma incompreensão sistemática, distorcendo idéias com o objetivo de eximir da responsabilidade profissional professores e educadores incompetentes. 6 Recentemente, um noticiário da televisão mostrou que mais da metade dos alunos das escolas da periferia de uma grande cidade sabiam onde comprar uma arma (sem ser em lojas especializadas). Como se não bastasse o vandalismo nas escolas públicas, alguns alunos passaram até a portar revólveres. A indisciplina na escola é o fator mais importante da degradação do ensino a que temos assistido nos últimos anos. 7 Num país com o crescimento populacional do Brasil, os problemas de infra-estrutura social crescem mais rapidamente do que a execução de qualquer planejamento, por melhor que seja. Não quero justificar o governo, mesmo porque não é esse o caso. Mas o problema do crescimento populacional é grave. A meu ver, seria melhor ter menos e melhores escolas, e ir resolvendo esse problema aos poucos, sem deixar de lado as condições materiais e a qualidade do ensino. Escolas em condições precárias e apinhadas de alunos favorecem uma indisciplina generalizada e impedem qualquer trabalho sério. 8 Isso se deve mais ao esforço pessoal de muitos professores do que a um planejamento bem feito pelo governo. 9 Nas referências, no final deste trabalho, encontram-se várias obras em que trato da ortografia sob vários aspectos, trazendo informações teóricas e metodológicas a respeito dessa questão, como CAGLIARI 1989; 1992; 1993; 1994a; 1995; 1996a; 1998a; 1998b; MASSINI-CAGLIARI e CAGLIARI, 1999. 10 Forma antiga de escrita dessas palavras. 11 Legalmente, quem não seguir a ortografia oficial comete uma contravenção sujeita a sanção. 12 Com as comemorações dos 500 anos do descobrimento do Brasil, a Carta de Pero Vaz de Caminha foi publicada de muitas formas, incluindo reproduções fac-similadas. É muito interessante e útil ao professor comparar a ortografia de hoje com a usada pelo autor da Carta (um trecho pode ser visto em MASSINI-CAGLIARI e CAGLIARI, 1999, p. 59). 13 Para um estudo de aspectos importantes da ortografia, veja CAGLIARI, 1998a, p. 341-357; MASSINI-CAGLIARI e CAGLIARI, 1999, p. 61-110. 14 Uma vez estabelecida, aceita e usada, a grafia de uma palavra passa a ser do domínio da História da língua e não mais de dicionaristas, gramáticos, ortógrafos etc. 15 Veja a esse respeito, o trabalho de Massini-Cagliari, "Aquisição da escrita: questões de categorização gráfica" (Cf. MASSINI-CAGLIARI; CAGLIARI, 1999, p. 49-58).

Literacy and orthography

Luiz Carlos Cagliari

Doutor em Lingüística pela Universidade de Edimburgo. Professor colaborador voluntário do IEL-CL/Unicamp. cagliari@lexxa.com.br

RESUMO

A ortografia era uma das metas mais importantes na metodologia das cartilhas. Com o advento de novas metodologias, as cartilhas deixaram de ser usadas. Nas novas abordagens, a ortografia passou a ocupar um lugar secundário na alfabetização ou mesmo ficou excluída. Essa atitude com relação à ortografia representa um retrocesso educacional. Sem o método das cartilhas e sem informações técnicas sobre a ortografia, muitos professores se viram na situação de não saber o que fazer. O presente trabalho apresenta algumas das noções básicas que definem e caracterizam a ortografia e, além disso, sugere procedimentos metodológicos.

Palavras-chave: alfabetização, ortografia, ensino e aprendizagem.

ABSTRACT

Spelling used to be one of the primary goals in the Brazilian Cartilha teaching methodology. With new approaches to literacy process in the past twenty years, the old Cartilha method is no more in use. On the other hand, teaching of spelling has been withdrawn from literacy activities. This procedure is misleading and it represents a serious problem for teachers and students. Without the old rigid methodology to literacy teachers, and with a lack of information to understand orthography nature and uses of orthography, teaching became chaotic, in this respect. This paper aims to report basic notions that characterise orthography as a special writing phenomenon, and at the same time to show methodological suggestions on how to deal with spelling in this new educational context.

Key-words: spelling, orthography, literacy.

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Texto recebido em 22 jul. 2002

Texto aprovado em 26 ago. 2002

  • CAGLIARI, L. C. Caminhos e descaminhos da fala, da leitura e da escrita na escola. Projeto Ipê - Ciclo Básico. São Paulo: CENP-SE-SP, 1985. p. 45-60.
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  • ______. O que é a ortografia. In: ESTUDOS Lingüísticos - XXIII Anais de Seminários do GEL. CNPq. USP e GEL, 1994a. v. 1, p. 552-559.
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  • ______. Alfabetizando sem o bá-bé-bi-bó-bu. São Paulo: Scipione, 1998a.
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  • ______. Variação e preconceito. Textura, Canoas, n. 2, p. 15-22, 2000.
  • ______.Como alfabetizar: 20 anos em busca de soluções. In: LAMPRECHT, R.; Menuzzi, S. (Org.). Letras de hoje Anais do 5.ş Encontro Nacional Sobre Aquisição da Linguagem e do 1.ş Encontro Internacional Sobre Aquisição da Linguagem. Porto Alegre: Centro de Estudos sobre Aquisição e Aprendizagem da Linguagem, PUCRS, 2001a. v. 36, n. 3, p. 47-66.
  • ______. A decifração, o aprendiz e os conhecimentos lingüísticos na alfabetização. Bolando Aula, Santos, ano 5, n. 42, p. 3-4 (I parte); n. 43, p. 3-4 (II parte), 2001b.
  • FERREIRA, A. B. de H. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da Língua Portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
  • FERREIRA, E.; TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.
  • HOUAISS, A. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. 1 CD-ROM.
  • MASSINI-CAGLIARI, G.; CAGLIARI, L. C. De sons de poetas ou Estudando fonologia através da poesia. Revista da ANPOLL, São Paulo, n. 5, p. 77-105, 1998.
  • MASSINI-CAGLIARI, G.; CAGLIARI, L. C. Diante das letras: a escrita na alfabetização. Campinas: Mercado de Letras, 1999.
  • MORTATTI, M. do R. L. Os sentidos da alfabetização - São Paulo/1876-1994a. São Paulo: Ed. da Unesp, 1999.
  • *
    Este trabalho faz parte do projeto PQ - 1A, Nº 301450/78-1, que conta com financiamento do CNPq.
    1 Falantes com pouca instrução costumam achar que a ortografia é uma espécie de transcrição fonética que usa as letras com valores sonoros unívocos - o que é falso em muitos aspectos. Além disso, esses falantes têm menos consciência das questões de variação, embora saibam que sua fala é diferente e, às vezes, estigmatizada. Ao escrever, misturam questões de categorização funcional das letras (CAGLIARI, 1998a, p. 122; MASSINI-CAGLIARI; CAGLIARI, 1999, p. 148-150) com questões de variação dialetal, com falta de conhecimentos sobre a ortografia (MASSINI-CAGLIARI; CAGLIARI, 1999, p. 61-96), produzindo todo tipo de representação escrita (CAGLIARI, 1989, p. 120-146) que se pode derivar dessa situação (MASSINI-CAGLIARI; CAGLIARI, 1999, p. 49-58; 121-128).
    2 Essa é uma das idéias tradicionais da prática pedagógica, mas não faz nenhum sentido. Em vez de evitar que a criança veja grafias erradas, é melhor ensinar como proceder diante de qualquer escrita.
    3 Já há vários estudos sobre cartilhas (MORTATTI, 1999), algumas teses, mas falta ainda um estudo lingüístico mais detalhado desse tipo de material didático. É preciso reconhecer muitas das contribuições reais que esses livros trouxeram ao ensino. A visão apenas dos aspectos negativos tem confundido muitos professores e até pesquisadores.
    4 A idéia do construtivismo trazida por Emília Ferreiro, por um lado, contribuiu muito para uma profunda revisão do processo de alfabetização entre nós, mas, por outro, trouxe muita confusão, em grande parte, gerada pelos próprios problemas e soluções dos trabalhos daquela pesquisadora.
    5 Sempre fui favorável a que se tirassem as notas (provas etc.) das escolas, ocorrendo sempre uma promoção automática (CAGLIARI, 1996b). Muitos educadores confundem avaliação com promoção. A avaliação é fundamental. A promoção é outra coisa. Nos últimos anos, tem havido uma incompreensão sistemática, distorcendo idéias com o objetivo de eximir da responsabilidade profissional professores e educadores incompetentes.
    6 Recentemente, um noticiário da televisão mostrou que mais da metade dos alunos das escolas da periferia de uma grande cidade sabiam onde comprar uma arma (sem ser em lojas especializadas). Como se não bastasse o vandalismo nas escolas públicas, alguns alunos passaram até a portar revólveres. A indisciplina na escola é o fator mais importante da degradação do ensino a que temos assistido nos últimos anos.
    7 Num país com o crescimento populacional do Brasil, os problemas de infra-estrutura social crescem mais rapidamente do que a execução de qualquer planejamento, por melhor que seja. Não quero justificar o governo, mesmo porque não é esse o caso. Mas o problema do crescimento populacional é grave. A meu ver, seria melhor ter menos e melhores escolas, e ir resolvendo esse problema aos poucos, sem deixar de lado as condições materiais e a qualidade do ensino. Escolas em condições precárias e apinhadas de alunos favorecem uma indisciplina generalizada e impedem qualquer trabalho sério.
    8 Isso se deve mais ao esforço pessoal de muitos professores do que a um planejamento bem feito pelo governo.
    9 Nas referências, no final deste trabalho, encontram-se várias obras em que trato da ortografia sob vários aspectos, trazendo informações teóricas e metodológicas a respeito dessa questão, como CAGLIARI 1989; 1992; 1993; 1994a; 1995; 1996a; 1998a; 1998b; MASSINI-CAGLIARI e CAGLIARI, 1999.
    10 Forma antiga de escrita dessas palavras.
    11 Legalmente, quem não seguir a ortografia oficial comete uma contravenção sujeita a sanção.
    12 Com as comemorações dos 500 anos do descobrimento do Brasil, a Carta de Pero Vaz de Caminha foi publicada de muitas formas, incluindo reproduções fac-similadas. É muito interessante e útil ao professor comparar a ortografia de hoje com a usada pelo autor da Carta (um trecho pode ser visto em MASSINI-CAGLIARI e CAGLIARI, 1999, p. 59).
    13 Para um estudo de aspectos importantes da ortografia, veja CAGLIARI, 1998a, p. 341-357; MASSINI-CAGLIARI e CAGLIARI, 1999, p. 61-110.
    14 Uma vez estabelecida, aceita e usada, a grafia de uma palavra passa a ser do domínio da História da língua e não mais de dicionaristas, gramáticos, ortógrafos etc.
    15 Veja a esse respeito, o trabalho de Massini-Cagliari, "Aquisição da escrita: questões de categorização gráfica" (Cf. MASSINI-CAGLIARI; CAGLIARI, 1999, p. 49-58).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Mar 2015
    • Data do Fascículo
      Dez 2002

    Histórico

    • Recebido
      22 Jun 2002
    • Aceito
      26 Ago 2002
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