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Apresentação

Embora leitura e produção de textos sejam temas investigados separadamente devido ao fato de apresentarem peculiaridades distintas que caracterizam cada um desses processos, em última instância, ler e produzir textos fazem parte de um mesmo campo de conhecimento: conhecimento sobre a linguagem escrita. Ao focalizar a leitura e a produção de textos, este Dossiê assume o desafio de articular esses dois temas a partir de um conjunto de artigos que visam tanto atualizar os leitores interessados nesta área de investigação como também propiciar reflexões que permitam o diálogo entre leitura e escrita. Esses temas, de grande interesse teórico e aplicado, contribuem para desvelar como se caracteriza o conhecimento sobre a linguagem escrita por parte daquele que constrói e produz significados através de textos.

Os artigos reunidos neste Dossiê se apoiam na Psicologia do Desenvolvimento Cognitivo, com aproximações com a psicolinguística e com a educação, sendo um esforço de construção que vem sendo feito no sentido de melhor compreender o desenvolvimento da linguagem escrita e seus processos. Versando sobre uma variedade de aspectos que englobam funções executivas, concepções, competências e habilidades linguístico-cognitivas e os fatores que influenciam a leitura e a produção de textos, os estudos apresentados utilizam recursos analítico-metodológicos distintos e rigorosamente tratados, permitindo o avanço e o aprofundamento necessários para contribuir com este campo do conhecimento. Esses aspectos são investigados em participantes de diferentes idades (adultos, crianças), níveis de escolaridade (ensino fundamental, ensino superior), com perfis típico e atípico (ouvintes e surdos) quanto ao uso da linguagem e que assumem papéis distintos diante da linguagem escrita (alunos, professores). Destaca-se, ainda, o fato dos estudos investigarem a leitura e a produção de textos de diferentes gêneros: narrativos, de opinião e expositivos. Esta multiplicidade de aspectos considerados neste Dossiê expande o quadro de possíveis leitores que possuem em comum o interesse em compreender como se processa e como se desenvolve o conhecimento sobre a linguagem escrita, em termos de leitura e de produção textual.

Ressalta-se aqui a relevância deste tema, uma vez que a linguagem escrita constitui não apenas um objeto de conhecimento, mas, também, uma ferramenta de comunicação e registro em uma sociedade letrada e uma ferramenta para a aprendizagem escolar em todos os seus segmentos e disciplinas que compõem o currículo.

Pesquisadores de várias instituições brasileiras que compõem o Grupo de Trabalho intitulado "Desenvolvimento Sociocognitivo e da Linguagem" - vinculado à Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP) - e pesquisadores estrangeiros se apresentam como autores dos artigos neste Dossiê que ilustra o amadurecimento de uma trajetória de cooperação acadêmico-científica estável e produtiva.

Assim, sem a pretensão de abarcar toda a complexidade que caracteriza o processo de desenvolvimento e uso da linguagem escrita, os artigos que constituem o Dossiê tratam de temas atuais relativos à compreensão e à produção de texto. O artigo de Cardoso-Martins e Navas e o de Viana e Borges discutem o papel da fluência de leitura, em relação à rapidez e acurácia, no desenvolvimento da compreensão leitora. Cardoso-Martins e Navas usam como referência o modelo denominado "Visão Simples da Leitura" (VSL), que descreve a compreensão leitora como produto da decodificação e da compreensão linguística, e analisaram a possibilidade de incluir a fluência da leitura (acurácia e rapidez) nesse modelo. Para tal, foi realizado um estudo longitudinal com duração de um ano e meio, cujos participantes estavam inicialmente no 1º ano do ensino fundamental, e analisam as correlações entre as habilidades de decodificação, habilidade linguística, fluência de leitura e compreensão da leitura. Em vista dos resultados obtidos nas correlações, foram feitas análises de regressão, verificando-se que a fluência de leitura contribui para o desenvolvimento inicial da compreensão da leitura, mesmo após o controle do efeito de variações no desempenho em decodificação e na habilidade linguística. As autoras apontam a necessidade de estudos futuros que examinem as correlações entre essas variáveis em anos escolares mais avançados, quando é exigida a compreensão da leitura de textos mais complexos.

O estudo apresentado no segundo artigo, conduzido com estudantes portugueses, frequentando o 2º ano do ensino fundamental, evidencia uma significativa evolução na velocidade de leitura no grupo de estudantes que participou de um Programa de Promoção da Fluência em Leitura. Com base nos resultados obtidos, os autores argumentam que é possível, desejável e urgente que os professores incluam na sua prática docente estratégias diversificadas que visem a promoção da fluência em leitura, considerando seu papel facilitador na construção de sentidos do texto.

No terceiro artigo, Salles e Paula conduziram uma análise de natureza teórico-metodológica referente a alguns modelos de compreensão leitora e os instrumentos adotados na avaliação desta habilidade, em especial aqueles que avaliam as funções executivas potencialmente envolvidas neste processo. As autoras acrescentam a esta análise uma reflexão acerca de pesquisas recentes, nacionais e estrangeiras, que investigam as relações entre funções executivas e compreensão de texto. Os resultados desses estudos apontam os efeitos positivos de programas de intervenção que buscam promover o desenvolvimento das funções executivas, funções que, posteriormente, podem contribuir com a compreensão de textos, sobretudo entre crianças com dificuldades nesta área.

Os artigos seguintes tratam da produção de textos, versando sobre diferentes facetas da escrita de textos e investigando participantes com diferentes perfis. Barrera e Santos discutem como diferentes tipos de apoio (visual ou verbal), bem como a presença ou ausência da sugestão de conflito no enredo da narrativa influenciam o desempenho na produção de textos por estudantes do 3º e 5º anos do ensino fundamental. Os resultados mostraram que os participantes com menor nível de consciência textual - menor domínio do esquema narrativo - beneficiam-se menos do apoio oferecido. Os estudantes do 3º ano beneficiaram-se apenas do apoio mais estruturado (sequência de gravuras com situação conflituosa). Entre os alunos do 5º ano a sugestão de conflito influenciou a qualidade dos textos produzidos, tanto as produções apoiadas em estímulos visuais como verbais. A partir desses resultados, as autoras enfatizam que a aprendizagem da produção de texto necessita de um ensino explícito sobre as características estruturais e convenções dos diferentes tipos de texto.

Pinheiro e Guimarães discutem a possibilidade de aprendizagem e/ou aprimoramento da escrita de textos argumentativos a partir do desenvolvimento de habilidades metatextuais. No artigo, as autoras relatam uma pesquisa de intervenção cujo objetivo era desenvolver a capacidade de gestão consciente do uso de marcas linguísticas da argumentação (operadores argumentativos e operadores organizacionais). Os resultados mostraram que o conhecimento dos elementos constitutivos de um texto de opinião (argumento, contra-argumento, resposta) não foi o único fator que interferiu nas produções. Na realidade, o tema e a forma como o teste é apresentado geram maior ou menor motivação no escritor e, consequentemente, mobilizam, em igual medida, a capacidade produtiva dos estudantes. Neste sentido, destaca-se que as intervenções didático-pedagógicas voltadas para a produção de texto devem atentar para a escolha dos temas e para a forma como eles são apresentados aos estudantes.

Na sequência, Spinillo e Correa examinam as concepções de professoras do ensino fundamental acerca da revisão textual a partir de uma entrevista em que eram solicitadas a discorrer acerca de como conceituam a revisão textual, do que revisar, e sobre as situações didáticas e procedimentos que adotam para que seus alunos revisem os textos que produzem. Os dados foram analisados de forma qualitativa, estabelecendo-se como este conhecimento se aproxima ou se distancia daquele descrito na literatura. De maneira geral, as professoras possuem uma concepção linear da revisão textual no processo de escrita. A revisão está associada à correção de erros, voltando-se para a edição dos aspectos formais do texto. A prática de revisão mais frequentemente citada consistia em levar o aluno a reler seu texto ao lado da professora. Verificou-se um afastamento entre as concepções teóricas e os resultados de pesquisas na área e a forma como as professoras entrevistadas concebem a revisão textual e conduzem sua prática pedagógica quanto à escrita de textos por seus alunos.

Nunes e Vargas analisam textos escritos produzidos por escritores surdos usuários da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) por meio de um instrumento com duas escalas: uma que a partir de critérios sintáticos avalia a qualidade gramatical do texto, e outra que avalia a qualidade da mensagem, baseando-se em aspectos opcionais que enriquecem a mensagem ou lhe dão maior coerência. Participaram do estudo alunos surdos do 5º ao 8º ano do ensino fundamental que produziam histórias a partir de uma sequência de gravuras. A relevância do instrumento para a avaliação das escritas dos usuários de LIBRAS foi analisada considerando sua distribuição, a fidedignidade da escala e a correlação entre a escala sintática e a de qualidade do texto. As autoras, a partir dos dados obtidos, julgam que o instrumento apresentado no presente trabalho possa constribuir não só para uma avaliação mais apropriada das habilidades de escrita dos surdos como para a educação dos usuários de LIBRAS.

Encerrando o Dossiê, tem-se o artigo de Morais e Kolinsky que trata do conceito de literacia científica. De acordo com os autores, esse conceito inclui tanto a produção científica escrita como o conhecimento e compreensão que as pessoas têm a respeito de ciência. Salientando a necessidade de educar para a literacia científica, os autores apresentam dados que retratam os baixos níveis de consciência científica na população de um modo geral e, também, entre os estudantes. Além disso, os autores destacam a carência de educação científica no Brasil e no mundo, o que leva as pessoas a desenvolver uma visão limitada sobre o que é a ciência, bem como conhecimentos e capacidades que comprometem a sua relação com situações complexas do dia a dia. Como conclusão, defendem que as escolas sejam orientadas não apenas para o ensino de fatos, mas para o desenvolvimento da capacidade de compreensão (análise e interpretação) da realidade.

Após os artigos, este número da revista conta com a resenha feita por Minatel e Barbosa acerca do livro de autoria de Nunes e Bryant intitulado "Leitura e ortografia: além dos primeiros passos". Na resenha são apontadas as principais contribuições teóricas da obra, a abordagem inovadora presente na reflexão conduzida a respeito das relações entre leitura e ortografia, assim como as implicações educacionais derivadas de um número expressivo de estudos acerca da leitura e da escrita. A obra em questão surge como consulta importante por parte de pesquisadores e educadores interessados no processo de aquisição da leitura e da escrita em crianças.

Por último, cabe salientar que, inserido em um cenário plural a respeito do processo de desenvolvimento da linguagem escrita, este Dossiê visa acrescentar substância e densidade à discussão relativa à compreensão e produção de textos. Como é possível observar, os trabalhos apresentados foram elaborados no cruzamento entre o já dito com o ainda por dizer, procurando, assim, contribuir com uma visão atual e diversificada do tema.

Sandra Regina Kirchner GuimarãesAlina Galvão Spinillo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2016
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