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Entrevista com a professora Pórcia Guimarães Alves

ARTIGOS DE DEMANDA CONTÍNUA

Entrevista com a professora Pórcia Guimarães Alves

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Esta entrevista foi realizada pelos professores Virgínia Anne Van den Berg e José Vicente Augusto das Neves Miranda. A parte técnica de gravação esteve a cargo de Waldomiro Vicente de Souza, do Centro de Recursos Audiovisuais do Setor de Educação. A transcrição foi de Ana Ribeiro Caruso, Assistente Administrativo do Centro de Recursos Audiovisuais do Setor de Educação.

VIRGINIA - Hoje, dia 24 de abril de 1989, estamos aqui com o objetivo de fazer uma entrevista com a professora Pórcia Guimarães Alves, tendo em vista a publicação da revista EDUCAR, comemorativa dos 50 anos do Curso de Pedagogia. A professora Pórcia foi professora titular de Psicologia da Educação do Setor de Educação da UFPR. É uma pessoa que representa uma série de iniciativas, visíveis no campo da educação, sobremaneira no Setor de Educação, e que esteve presente nos mais significativos momentos da Faculdade de Filosofia, depois Faculdade de Educação e, finalmente, Setor de Educação. Fale, professora Pórcia, da sua passagem na UFPR e dos seus trabalhos na comunidade paranaense.

PÓRCIA - Inicialmente, quero agradecer ao Setor de Educação a lembrança do meu nome. Faz tanto tempo que estou trabalhando em Educação e em Psicologia que a comunidade já nem sabe mais dizer ou lembrar quem fui eu; as gerações estão se sucedendo, e a memória é sempre curta para essas coisas. Então, por isso, fico muito contente, muito alegre em receber, em minha casa, os professores e amigos para prestar um depoimento que espero seja de valia para os que forem ouvi-lo e ler através da Revista.

VIRGINIA - Professora Pórcia, gostaríamos de fazer uma pergunta à senhora:

- O que a levou a pensar em Pedagogia como compromisso profissional?

PÓRCIA - Inicialmente, esta palavra "profissional" não me soa bem. Não pensei nunca como um compromisso profissional. Se eu fosse pensar em compromisso profissional, pensaria em trabalhar em butique, em loja, em firma, inicialmente. Segundo, eu tinha terminado o Curso da Escola Normal, que estava voltado para o magistério. E posso dizer, de passagem, que faço parte de uma família que tradicionalmente tem sido de educadores. Desde a Mestra de Antonina, quando aqui chegou Zacarias Goes de Vasconcelos, com o desmembramento do Paraná da Comarca de São Paulo, quando ele chegou em Antonina, foi a filha da Mestra, que era tia-avó minha, que fez o discurso de recepção ao Cons. Zacarias. Depois, mais tarde, minha avó também, meus irmãos e eu, ligados ao magistério. Então havia uma tradição de educação e interesse pelo trabalho como professor, não como profissão para ganhar dinheiro. Então, vejam bem, tinha terminado o Curso de Escola Normal. Estava aguardando nomeação, quando recebi em casa circular que acabei de mostrar aos professores, convidando para matrícula na recém-fundada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Paraná - Instituto Superior de Educação. Além desta primeira circular - assinada pelo professor Homero de Melo Braga, tantos anos ligado à nossa Faculdade, estava o currículo dos Departamentos. Do Instituto Superior de Educação chamou a minha atenção o Curso Superior de Educação. E as disciplinas, que iam ser lecionadas no primeiro ano, vejam bem: Psicologia Genética, Psicologia da Educação, Lógica e Metodologia das Ciências. Então, pensei em me inscrever no Curso. Antes, porém, de me inscrever, como não tinha saído a minha nomeação, disse a meu pai: "Pai, eu queria continuar a estudar, o senhor paga a Faculdade?" - "Minha filha, para a educação, para o estudo, sempre há dinheiro". Então, me matriculei: naquele tempo, eram oitenta mil réis que poderiam ser pagos, 10 por mês, junto às mensalidades, no Instituto Nacional de Educação; o vestibular, da nova faculdade, na Assembléia Legislativa, onde está hoje a Câmara dos Deputados, que estava fechada na época. O Curso Superior de Educação foi o que mais me interessou; cerca de 20 candidatos se inscreveram; no Curso Superior de Educação. eram 10 no total. Tanto que, na formatura. éramos 9 alunos do Curso de Pedagogia, nesta 1ª turma 3 (três) mulheres: Gemeny Souza Feança, Lilian Weigert e eu. Fazia parte, também, o professor Francisco Albizú, que depois se tornou conhecido como fundador da Faculdade de Educação Física. Então, depois do vestibular, houve a solenidade de instalação, que foi muito bonita. Havia necessidade de Faculdade de Filosofia, porque, se não houvesse Faculdade de Filosofia, não haveria Universidade, porquanto a estrutura da Universidade se completaria com a Faculdade de Filosofia. Então, há 51 anos, exatamente no dia 2 de maio de 1938, na Assembléia, houve a instalação e a Aula Inaugural com o Padre Jesus Ballarin, que deu uma belíssima aula sobre Ciência e Filosofia. Então, logo depois, se iniciaram as aulas. O Curso de Educação foi colocado na cúpula do antigo prédio da Universidade, bem adequada, mesmo porque o diretor Gonçalves da Mota disse que a Faculdade de Filosofia representava a cúpula da Universidade. Então, estávamos realmente na cúpula da Universidade, mas aí surgiram problemas ligados à área do governo. A Faculdade passou a ter dificuldades econômicas e acabou passando para nova orientação.

MIRANDA - Quais as circunstâncias, na época, do seu ingresso na Instituição, com a atual Uiversidade Federal do Paraná, que naquele tempo não existia, como a senhora, inclusive, acabou de dizer. Ao nível nacional, ao nível regional, quais eram as circunstâncias?

PÓRCIA - Como disse, os serviços universitários estavam preocupados com as instalações. Então, ao nível regional, a história foi muito interessante. Os professores, posso dizer seus nomes, Mílton Carneiro, ilustre professor univeristário da Faculdade de Medicina e da Faculdade de Filosofia, e Homero de Melo Braga, tiveram destacada situação. Admiro-me de não ver seus nomes em nenhum local dentro da Universidade, nem ao menos na antiga Filosofia. Os professores Carlos de Paula Soares, Temístocles Linhares e João Xavier Vianna, se reuniram, sabe onde? no Café Collares, da Rua XV, hoje desaparecido. Na mesa do Café, depois do trabalho na Univerisdade, discutiam estratégias necessárias para a instalação da Faculdade. Os professores eram os intelectuais da terra. Estavam preocupados em estruturar a Universidade para garantir sua sobrevivência. Então, vejam que interessante, se reuniram nesse Café, as discussões continuavam, como refere o livro recente lançado pelo professor Temístocles Linhares. Continuavam mais tarde; iam para a sede da Gazeta, arrebanhando mais alguns jornalistas para bater papo, continuavam a boa vida de boemia e discussões. Então, foram Carlos de Paula Soares de Melo Braga e Omar Gonçalves da Mota que fizeram uma convocação para os demais professores da Universidade, onde se reuniram, no Salão Nobre. Ao nível regional, essa importância dava para constatar no dia da aula inaugural. Estavam presentes professores, representantes do mundo intelectual, político e social, todos engalanados, as senhoras de chapéu, os homens, como praxe naquele tempo, em passeio completo. Quer dizer, no nível regional, teve uma enorme e importante repercussão. Positiva, de um lado; agora, posso dizer, houve repercussão negativa, e é fácil de constatar. Existia a Escola Normal, a excelente Escola Normal em Curitiba, com excelentes professores. Esses professores se sentiram magoados pela instalação de Curso Superior de Educação que formava professores secundários e que um dos cursos formava professores primários. Esses professores, que eram só normalistas, não foram convidados para participar do corpo docente. Esse foi um aspecto, tanto que foi difícil a minha entrada no Instituto de Educação, a antiga Escola Normal. Só fui conseguir ser aprovada em 1948, e assim mesmo, ameaçando falar com o interventor Brasil Pinheiro Machado, que foi meu paraninfo na Faculdade. Naquela época, os quadros dos professores dos cursos secundários, complementares, eram feitos de uma forma muito simplista, e muito simpática até. O médico dava Biologia e Higiene, o padre lecionava Latim, o advogado dava História, o engenheiro Matemática, então, vejam, justamente esses professores sentiram-se atingidos. A modificação foi difícil, quase rendeu 50 anos, vocês devem estar lembrados, 12 anos mais ou menos, ainda, estávamos dando aula para dentista, engenheiro, advogado, que precisavam daquele verniz pedagógico, para fazer registro no MEC. Então, vejam como rendeu, quase 40 anos, para que se estabelecesse uma comunidade, de uma forma simples, corriqueira e normal que, para ser professor de curso secundário, tinha que ter diploma de curso superior.

MIRANDA - Professora, as circunstâncias ao nível regional sejam, talvez, uma das primeiras e das mais originais que eu ouvi até agora. Professora Pórcia, a senhora teria alguma coisa a colocar sobre as circunstâncias ao nível nacional?

PÓRCIA - A nível nacional, a Faculdade Nacional de Filosofia era modelo padrão. Depois de um ano, a nossa foi adaptada totalmente à Faculdade Nacional de Filosofia; nesse primeiro ano, o Instituto Superior de Educação funcionou, foi baseado na Faculdade de Filosofia e Letras de São Bento, de São Paulo, aliás no meu ponto de vista foi muito agradável que esse 1º ano fosse baseado no São Bento, porque isso proporcionou que a cadeira de Psicologia Genética funcionasse. No ano seguinte, vejam bem, desapareceu o Instituto Superior de Educação e no seu lugar surgiu o Curso de Pedagogia, então realmente o Curso de Pedagogia está fazendo este ano, como Curso de Pedagogia com esse nome, 50 anos. Agora, se nós levarmos em consideração como Curso Superior de Educação, são 51 anos. Quando houve essa adaptação, a Faculdade Nacional, que passou a ser a escola padrão para todas as Faculdades Nacionais, desapareceu a cadeira de Genética, e nessa matéria, foi o professor Mílton Carneiro, que era um homem de grande erudição, que nos deu aulas maravilhosas. Desde aí, fiquei interessada na Psicologia.

VIRGINIA - Muito bem. Gostaríamos de saber que fatos ou momentos durante essa corrida como educadora lhe marcaram mais, tanto em função de pessoas especiais, e mesmo com instituições fora da UFPR?

PÓRCIA - Eu não sei se deixei bem claro: no início, como você falou em termos profissionais, nunca estive preocupada com a profissão, nunca me preocupei com a questão salarial, porque aprendi desde o meu 1º vencimento de professora substituta, no Grupo Escolar "19 de Dezembro", que a gente vive com o dinheiro que ganha. Então, nunca houve essa preocupação. Agora, com respeito a essa última pergunta, nessa trajetória de 30 anos da Universidade, claro, os fatos que mais marcaram,que mais me alegraram, mais me emocionaram, foram relativos aos meus alunos. O relacionamento foi proveitoso e interessante. Eles foram os estímulos que me levaram à ação. Também posso dizer que isso também ocorreu com o curso primário. Também a eles devo as melhores horas da minha vida. Os alunos passaram a ser os meus amigos, podia conviver socialmente com eles, são meus amigos muitos deles até hoje, de modo que o fato mais marcante foi, como o dizer seu, o corpo discente. Foram os meus alunos. Bem, no decorrer desses 30 anos, tive oportunidade de conhecer as pessoas mais interessantes da nossa época e conviver com elas. Estou me lembrando, foi por ser formada e licenciada em Educação - aliás o primeiro aproveitamento do curso foi no Colégio Novo Ateneu - a primeira instituição que abriu as portas para os formandos em Pedagogia, só que não como educadora. A demanda para o Curso de Pedagogia era muito pequena. Eram só Escolas Normais naquele tempo, poucas; tanto que o Ministério da Educação permitiu que lecionasse História Geral e do Brasil e, se não me engano, Matemática. Como professora de História do Brasil, fui convidada a lecionar no Colégio Novo Ateneu. E aí tive a oportunidade de, em 1946, participar do Congresso Nacional de Educação, em Belo Horizonte, onde conheci os grandes educadores da época. Padre Alonso, Hélder Câmara, Malba Thaham, com quem conversava muitas vezes. Lembrem-se de que eu era jovem e muito disposta, desculpe referir um comentário pessoal de Malba Thaham, que me chamou de "equação perfeita". Conheci, ainda, grandes diretores de escolas, tais como: Flecha Ribeiro, Lara Rezende e outros. Mais interessante do que isso, naquele tempo, não havia televisão transmitindo nosso sotaque paranaense para todo o Brasil. O congresso reuniu-se no Colégio do professor Lara Rezende; conheci o filho do professor Lara Rezende, Oto Lara Rezende, escrito, que me apresentou ao Fernando Sabino, ao Hélio Pelegrino, que morreu há pouco tempo. Havia mais outros, eles achavam graça pela forma como eu falava. Lembro-me de que saíamos do colégio e seguimos de bonde, eles pediam que lesse tudo o que ia vendo, por causa do sotaque. Este grupo ficou, como se diz hoje, pontificando na literatura nacional. Também não por mercê da Faculdade de Filosofia, mas em 47 ia a passeio turístico conhecer a Bahia e Espírito Santo. O prof. Gaspar Velozo, que era Secretário da Educação, quando contei que ia à Bahia, perguntou-me se poderia levar carta ao professor Anísio Teixeira, que era o Secretário de Educação e Saúde. Foi ótimo, este encontro casual na Rua Emiliano Perneta, como o professor Gaspar Velozo, que tinha sido meu professor há pouco tempo, aliás foi um excelente professor de Administração Escolar. Em Salvador fui à Secretaria com a carta ao professor Anísio. Isso me abriu as portas de todos os colégios. O professor colocou à disposição a Drª Maísa Amorin. Visitei os melhores colégios da Bahia e aconteceu uma coisa interessante. Tenho um nome difícil que não se entende ao telefone. "Pérsia", "Pórcia", é difícil de dizer. Nome de família, já sou a Pórcia nº 8, já estou acostumada a ele. Estranhei na Bahia que eles diziam tão bem o meu nome, você vê como baiano é inteligente, sabia tão bem o meu nome, mas daí descobri a origem dessa inteligência particular baiana. Visitando o colégio na Avenida Joana Angélica, belo colégio, casarão antigo, a diretora Dona Anfrísia Santiago, mulher interessantíssima, preparada, me disse: "Que curioso o seu nome, fiz uma pesquisa sobre a Pórcia baiana e essa pesquisa depois doei ao Pedro Calmon, faz parte do seu livro "O ABC de Castro Alves". Não vou contar a história da Pórcia baiana, porque seria muito longa e fugiria completamente do nosso objetivo, mas a tia de Castro Alves, a associação de Pórcia e Alves, o meu nome, com ela, teve relação novelesca, para o dia de hoje e para compreensão dos baianos. Conheci e admirei Anísio Teixeira, sua contribuição à educação; tempos depois, voltei à Bahia para levar um trabalho para o Congresso Nacional do Rio de Janeiro, a convite do Dr. Álvaro Bahia. O trabalho foi publicado na Revista de Pediatria - "Anorexia Essencial na Infância". No dia da instalação do Congresso, o professor Anísio Teixeira, que fazia parte da mesa, quando terminou a instalação, fez-me ir ao seu encontro cumprimentá-lo. "Já estou aqui participando do Congresso". E ele respondeu: "A senhora tem que vir trabalhar aqui, desemperrar os baianos". Mais tarde, tive a oportunidade, realmente, de trabalhar com ele, quando ele era diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, no gabinete do Secretário de Educação, e eu, encarregada dos projetos da Secretaria junto ao INEP, tive ocasião de discutir e resolver com ele muitos problemas de educação. No gabinete de Newton Carneiro, no Governo Munhoz da Rocha, com o falecimento do professor Murilo Braga, primeiro diretor do INEP, o professor Anísio Teixeira assumiu o cargo. E eu até lhe escrevi: "Professor Anísio, agora vamos trabalhar juntos". Consegui, realmente, muitas coisas com o professor Anísio, mas não sei se devo dizer já ou mais tarde, nas próximas perguntas. Quando o prof. Anísio me enviou professoras do Recife, do Território do Acre, para fazer estágio comigo em Curitiba, tinha fundado (porque era assessora do professor Newton Carneiro) o Centro de Estudos e Pesquisas Educacionais da Secretaria da Educação, re unindo grupo de professoras formadas pelo Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos. Os cursos do INEP formaram quadros que tiveram ação muito destacada em vários Estados brasileiros. Essas professoras, que de volta ao curso, voltaram à sala de aula sem recurso nenhum, nos assessoravam, e com elas fundei o CEPE. O Centro teve uma atuação muito grande. Imaginem os senhores que, nessa época, o professor Munhoz da Rocha, então governador, perguntou ao Secretário da Educação se os alunos aprendiam História do Paraná. Não aprendiam. Foi então introduzida nos cursos primários, a partir de então. O CEPE reformulou currículos, disciplinas, forma de aprovação. Depois, o professor Anísio Teixeira criticou e introduziu as provas objetivas, dizendo: "mas, professora, já tiraram da professora pública a Educação Física, Trabalhos Manuais, Religião, e a senhora ainda vai tirar da mesma o direito de aprovar ou reprovar seus alunos?" Depois desta conversa, fizemos uma modificação e introduzimos de dissertação e média ponderada. E a professora então ficaria responsável pela aprovação de seus alunos. Continuando, depois disso, o professor Anísio me enviou as professoras. Mas, onde atender essas professoras? Na sede do CEPE, não havia espaço. Ficava na atual Secretaria da Cultura, subindo a escadaria, hoje, felizmente, toda restaurada, ao lado direito. Então, consegui, com grupos escolares, que atendessem as alunas. Quando fez um ano da instalação do CEPE, já era então Secretário da Educação o professor João Xavier Vianna, que tinha sido meu professor na Faculdade. No jantar, ao qual estive, disse o Secretário: "Eu estou precisando de uma escola para fazer experiência, uma escola para atender essas professoras que o professor Anísio está enviando, está bem?" Recebi, para isso, uma escola que estava paralisada em sua construção, e que, já no dia seguinte, fui visitar. Ficava na Rua Lamenha Lins, 1972. Quase desmaiei de susto quando vi o tamanho da escola: grande, bem localizada, em meio a enorme terreno. Aceitei o desafio. A escola estava paralisada desde o 1º governo de Moisés Lupion e só tinha a estrutura concluída. Fiz o planejamento, voltei ao professor Anísio e disse-lhe: "Tenho a escola, mas preciso de auxílio, quero modificar o ambiente emperrado das salas de aula nos nossos cursos primários: modificar aquela sala de aula rígida, monótona, enfadonha, sem nada que interesse ao aluno". O professor Anísio achou graça, pediu que fizesse as propostas para as modificações. Ganhei do INEP 50 mil cruzeiros, com este dinheiro fiz completa trasnformação do recheio da escola. Para começar, acabei com aqueles corredores cortados e pintados pela metade. Mandei pintar de azul-claro, de um lado, e do outro lado verde; acabei com o Museu, fechado e com aranhas em vidros. As peças para exposição, em armários envidraçados, ficaram ao longo dos corredores. Levei meses, estudando os projetos para os móveis escolares; imaginem que ainda existiam aquelas carteiras, as mesas dos alunos, grandes, com o buraco do tinteiro. Perguntei a um fabricante: "Mas que tinteiro? Ninguém mais usa tinteiro!" "Ah! Mas a tradição?" "Mas a tradição tem que ser rompida. Quero mesas, lisas, retas, para que possam ser colocadas uma ao lado das outras, formando mesas de equipe, formando mesas de festas, etc." Os antigos moveleiros não gostaram das novidades. Desenhistas das firmas fizeram projetos, levei cinco ou seis meses estudando os detalhes. Está tudo registrado e arquivado na Secretaria da Escola, e já foram estudados pelas alunas de História da Educação da PUC e da Tuiuti. Criamos novos móveis escolares. Umas das preocupações, na sala de aula, é diminuir as aratacas penduradas, por motivo de sujeira; inclusive cortinas em sala de aula é um absurdo, é para rasgar, sujar, arrebentar; então não queria cortinas. Os dois primeiros vidros das janelas eram transparentes, para que o aluno pudesse olhar para fora, para ver as árvores e pássaros. As árvores, eu plantei. Vão lá ver que maravilhosas estão as minhas árvores! Então, nas janelas, na parte de cima, vidros foscos, não martelados, que difundem para todos os alunos, o sol, mas vidros estriados, que difundem os raios de sol no mesmo sentido. Acabei com aquele corredor com foco de luz, as portas. Podia ser fechado e servir de depósito de material, mecanografia ou qualquer outra coisa. Todas as janelas que não eram de sala de aula eram inteiramente de vidros transparentes de modo a observar o que se passava lá fora, além de que o sol batia dentro dos corredores e das escadas. Dentro da sala de aula, então, as inovações foram das mesas dos alunos, caixas de madeira, com a ranhura para o lápis do lado de dentro, pés de ferro para dar segurança e equilíbrio. As cadeiras tradicionalmente de encosto largo; disse a um construtor de móveis: "Veja, senhor, com esta qualidade de madeira, o senhor faz de encostos - porque as crianças são pequenas". Foram com encosto adequado; aumentando para as 4ªs e 5ªs séries, tornando-se um pouco maior. A mesa da professora tinha prateleiras e gavetas atrás. As prateleiras serviam para colocar os livros da biblioteca da sala. Mas uma inovação que despertou muito interesse e sensação foi o quadro, o quadro-negro, que na verdade não é negro. Era uma moldura grande, e sobre ele corria duas pranchas, naquele tempo não existia Eucatex, era Celotex, material importado, para colocação de trabalhos de alunos; a outra, era de madeira, para pendurar os mapas. Com isto, se eliminavam os penduradores de quadros e os mapas. Os armários eram pequenos, baixos, com portas de cores diferentes, e em cima, cabides de bolas coloridas. Na parede, ao lado, o flanelógrafo. Nas 1ªs séries, os quadros apresentavam paisagens brasileiras; para as últimas séries, cópias de quadros célebres. Claro, foi um trabalho enorme, mas muito gratificante, naquele tempo rendiam juros os depósitos bancários; com 50 mil cruzeiros, paguei todos os móveis; com o rendimento dos juros, comprei molduras, claras, como disse, e , nas primeiras séries, paisagens, e nas 4ªs e 5ªs séries, cópia de quadros célebres. Comprei, também, vasos em cerâmica, para plantas e vasos para cima das mesas de todos os professores. Inauguramos esta escola quando da realização do Congresso Nacional de Educação, em Curitiba, do qual eu era Secretária Executiva, em janeiro de 1954, o professor Anísio esteve presente, e eu entreguei a ele a chave da escola, para, simbolicamente inaugurar a nova unidade escolar. Ele ficou encantado com os móveis, levou, já de volta para o Rio, no dia seguinte, cópia de todos os modelos de móveis da escola. "Vejam, os senhores, que interessante, esses móveis diferentes, feitos especialmente para aquela escola. "Tornaram o Paraná, mais tarde, adaptados à nova realidade. O professor Anísio mandou construí-los de forma comercial; a caixa-mesa servindo para dois alunos, em madeira, eliminando o ferro fundido, acompanhado de duas cadeirinhas também em madeira. Acabou voltando, como dizia, para as escolas do INEP no Paraná.

MIRANDA - Já que a senhora falou da Escola Experimental, nós gostaríamos de saber como é que essa escola funcionava e se esta escola, como estamos vendo, era um dos seus projetos, se era o único, e se havia outros.

PÓRCIA - A Escola Experimental veio suprir uma lacuna em parte da cadeira de Psicologia da Educação, uma lacuna grande e grave do Curso de Psicologia. Na falta de Escola da Faculdade de Filosofia. Então, nessa Escola Experimental, pude testar, estudar, levar minhas alunas de Pedagogia, para participarem. Aproveitei sempre o Curso de Pedagogia em toda a minha atividade pedagógica. Fiz muitas pesquisas interessantes na escola. Algumas, vou relatar, agora, pela 1ª vez. Estudar e ver como melhor se podia atender o aluno, porque sempre a preocupação era o aluno. Por exemplo, fizemos a divisão das classes pela Matemática, porque, quando o aluno ia bem em Matemática, já sabíamos, pela experiência, que ia bem nas demais disciplinas. Então, as classes com nossos melhores alunos em Matemática tinham 25 alunos. As classes onde os alunos tinham dificuldade em Matemática tinham de 17 a 20 alunos, Então, essa experiência deu resultados excelentes. Também relatando, agora, pela 1ª vez: dividimos as 3ªs e 4ªs séries por sexo, meninas e meninos em separado, porque alguém, em reunião pedagógica dos professores, sugeriu que seria mais interessante, considerando o vocabulário diferente, preconceitos sociais, etc. Dividimos as classes, Ah! Professores! A experiência só durou seis meses. Não deu certo. Sabem por quê? As meninas ficaram mais passivas, desinteressadas, não rendiam. Os meninos ficaram indisciplinados, tumultuados, etc. No segundo semestre, colocamos os meninos na classe das meninas e vice-versa. Observamos que o resultado deu certo. As meninas serviram como elemento moderador na sala dos meninos. As meninas passaram, com a presença dos meninos, a exibir qualidades, a trazer mais coisas para fazer, para mostrar e os meninos ficaram mais calmos com a presença delas. Estas foram duas experiências interessantes. Outras foram realizadas. Por exemplo, o professor José Loureiro me telefonou que estavam em Curitiba técnicos em Antropologia e Educação da UNESCO que aqui vieram a convite do Ministério da Educação, por indicação do prof. Anísio Teixeira, para conhecer a minha escola, porque a minha escola já era então considerada de Experimentação Pedagógica - o Centro Educacional Guaíra. Chama-se, hoje, Escola Guaíra. Claro que levei a preocupação e o requintes em todos os sentidos, até no traje, o hábito, de menino, de usar o avental amarrado um um lenço atrás foi abolido. Criei nova indumentária. Os meninos com casquinho branco e emblema do colégio no bolso; com calça azul-marinho; nas meninas, saia azul-marinho, ficavam diferenciadas de todos os demais escolares da capital. Recentemente, acabaram com isso, acabaram até com o uniforme, bem, esse é outro assunto. Mas como estava dizendo, estavam os técnicos da UNESCO em Curitiba. No dia seguinte, ao telefonema, recebi dois professores, enquanto o professor José Loureiro atendia o antropólogo. Levei-os às salas de aulas, mostrei, expliquei, fizeram muitas perguntas e, na Sala de Orientação: "O que é que a senhora está fazendo com este levantamento dos alunos, através desta técnica?" Eram os sociogramas para apontar os líderes, porque podemos chegar a quase totalidade dos alunos, através de seus líderes. "Muito interessante!", comentaram os professores. Meses depois, recebi carta dos técnicos da UNESCO, perguntando se eu já havia escrito sobre o assunto, poderia mandar cópia. Se não tinha escrito, se poderia fazê-lo para uma publicação da UNESCO. Respondi que não tinha escrito nada, porque o trabalho fazia parte da rotina escolar. Fui então convidada a escrever, tendo, para isso, recebido as normas para orientação. Oportunamente, recebi carta de Paris, do professor, comunicando que estaria no Rio em determinada época. Fui, então, ao Rio com a pesquisa realizada. O trabalho em várias páginas, ia fazer parte de um livro a ser editado pela UNESCO. Tenho-o na biblioteca, "Educación y Sociedad en la America Latina". O professor leu, aprovou, só cortou um item, referente à religião. Algum tempo depois, recebi o livro. Mais tarde, estando com os professores da Univerisdade de São Paulo, hoje atuantes ainda em setores diferentes, Fernando Henrique Cardos, Otávio Ianni, contei o trabalho para a UNESCO. Perguntaram: "Quanto você ganhou, Pórcia?" "Ganhei? Não, não ganhei nada, nem me passou pela cabeça isso". - "Mas como, a UNESCO é riquíssima, você manda um trabalho desses e não ganha nada?" - "Só recebi um exemplar do livro!" Voltando à pergunta da experiência, foi bastante interessante. Já nos dois primeiros anos, verifiquei que os alunos precisavam de uma orientação mais minuciosa. Organizei, então, a primeira Clínica Psicológica do Estado. A Escola Guaíra, vejam bem, está completando 35 anos. Passamos a estudar os alunos que não aprendiam, tínhamos gravador, projetor, para enriquecer o processo de ensino. Os recreios em dias de chuva eram com música, várias músicas da época. Quando o lanche e o lazer se faziam dentro do salão, esqueci de dizer que, em lugar de cadeiras tipo salão nobre, eram cadeiras e bancos e as mesas dobravam e desarmavam. No dia da inauguração da Escola, muitos congressistas levaram o modelo da mesa para a casa da fazenda e para as casas de praia. Então, na hora de uma festa, armavam ou desarmavam as mesas, os banquinhos ficavam, e as cadeiras também. Faziam festa, improvisavam no auditório números de canto e dança, porque na nossa escola, o auditório e o palco, principalmente, funcionavam para os alunos, nunca para as autoridades que não entendiam nada de educação. Os alunos, os mais pobres, os que não podiam comprar roupa cara, os tímidos, os que sofrem tanto do ponto do estigma social, estes precisam do palco da escola. Para desinibir-se e afirmar-se. Agora, me desculpem, vou contar um caso muito interessante. Em Curitiba, uma menina que ia muito mal na escola repetindo a 1ª série do curso primário, várias vezes foi levada a médicos e outros especialistas em São Paulo. Os médicos recomendavam o in ternamento da menina em Escola de Deficientes, mas essa mãe, que era mãe, quando visitou a escola e viu a freqüência da mesma, o ambiente, não teve coragem de deixar a filha! As escolas, ainda agora, muitas delas, são tristes, imagine há tantos anos, estou falando há mais de 30 anos. Então, a mãe não teve dúvida, não internou a filha e foi para o Rio, procurar o prof. Mira y Lopes, que era também grande amigo meu; foi o primeiro a criar no Brasil Serviço de Seleção e Orientação. Então o prof. Mira, ao saber que ela era de Curitiba, disse: "A senhora procure a professora Pórcia". Ainda não tinha criado a Classe Especial, que fiz mais tarde, organizando na Escola Guaíra a classe para recuperação de débeis mentais, que foi também a 1ª em nosso Estado. Atendi a menina, conversando com a mãe na sede do CEPE, na Secretaria da Educação, Era uma menina que roía as unhas. Não falava, cabelos mal-cortados, aspecto desagradável. Resolvi, então, colocar a menina numa classe comum da 2ª série. Comecei a trabalhar com ela. Lógico, não pude matriculá-la, assim, a professora colocou o nome a lápis, na chamada, para que as crianças não percebessem e a menina deficiente também não. Disse à professora "não faça a chamada com caneta, mas a lápis", para que não se observasse a troca de caneta para o lápis, quando chegasse ao nome da nova aluna. Na Secretaria, depois, de faria à tinta. A menina foi para a sala de aula na 2ª série; mas aula mesmo, de acordo com o seu nível, ela tinha com a mesma professora à tarde. Nos recreios, a aluna fica distanciada das demais. Em classe, tratamento igual era incentivada como os outros. "Como, você ainda está aí, os outros já terminaram, depressa, etc". A família reclamava que, quando ela ficava braba, rasgava a roupa. Quando chegava à escola, eu dizia: "Mas como? O que significava isso, não senhora, amanhã não quero ver você deste jeito, vai costurar essa saia, não é a mãe, nem a irmã, nem a avó, mas você". Bom, para encurtar, no pátio, aquela menina encostada, olhando de lado. As outras pulando corta, peteca, eu, de longe, observando junto com a professora. Até que um dia, uma menina disse: "Também você aí não presta nem para segurar a corda" E ela segurou a corda. Disse para a professor: "Está salva". Lógico, depois de segurar a corda, ela ia pular corda. Realmente, uns 15 ou 20 dias depois, ela pulou corda. Mas eu estava contando esse caso, por causa do palco. O nosso palco era diferente daqueles, com todos, "com pezinhos iguais, para cá, para lá". Eu dizia há pouco que o palco é para isso: criatividade, liberdade de movimentos. Na primeira vez programada, que foi a festa da primavera, como tínhamos um conjuntinho, dei à nossa aluna o prato para ela tocar no conjunto. Imagine que ela, veio na 1ª semana de agosto, tocou todo o tempo com a cabeça virada para o lado da parede, não importa, já estava no palco! Claro que passou no final do ano. Hoje, tem uma vida normal, casada, com filhos. Como eu ia sempre ao Rio, a serviço, fui conversar com o professor Mira Y Lopes e contei-lhe que a cliente enviada por ele ia bem e que passaria para a 3ª série. - "Como, Pórcia, foi trabalho de bruxaria?" - "Eu nem usei os recursos da Psicologia, usei apenas os recursos da Educação. Respeitei a aluna, tratei-a como as demais, e ela reagiu a esse tratamento". Esse foi um caso então bastante interessante e está publicado em revista portuguesa especializada em Psicologia. Como é que alguns alunos aprendiam? Mas tinham que aprender, pois nós nos cercávamos de todo material adequado, palavras difíceis no flanelógrafo, jogos didáticos, etc; tinham que aprender. Quando não conseguiam, mereciam ser estudados. Surgiu a clínica, então. Concluímos, através da bateria de testes, que alguns tinham dificuldades maiores. Como conseqüência, surgiu a 1ª classe de recuperação de débeis mentais do Paraná, que está completando 31 anos, neste ano de 1989. Nesta classe especial, sempre alunos do Curso de Psicologia, no trabalho, na clínica, também. O Curso de Psicologia, essa é uma outra história longa, nem existia, portanto me valia das alunas de Pedagogia. Essas professoras, hoje lecionando na UFPR, passaram por mim, a professora Clara, a professora Rosa Elisa, a professora Gilda, a professora Vera, participaram deste trabalho pioneiro. O Curso de Pedagogia foi o meu grande celeiro. É difícil trabalhar com crianças, é muito difícil, é preciso aceitar esta criança como uma criança diferente, aceitar naturalmente, agir com elas como se fossem iguais às demais. "Que é isso, rapaz? Que modos são esses? Levante-se. Onde se viu no chão?" E a criança reagia positivamente: Não eram todas as alunas que suportavam esse tipo de trabalho. Lembro-me de uma aluna formada em Pedagogia, que trabalhava na Escola e de repente deixou de ir, não foi mais. - " Professora, a senhora desculpe", voltou para me dizer "não posso ver estas crianças". As que aceitaram, continuaram, estão hoje ainda, muitas delas em Serviço de Orientação e Recuperação. Mas, não sei se disse que tudo o que pude fazer na Escola! Comecei a sentir necessidade de ocupar os alunos o dia inteiro, claro, em classes integrais. Voltei ao professor Anísio Teixeira. - "Professor Anísio, quero fazer um pavilhão, para ocupar meus alunos o tempo todo." - "Professora, isto não existe." - "Mas, professor Anísio, estou numa sala acanhada, atendendo as quintas séries, onde passam o dia todo ocupados." Então, ele me pediu um modelo, uma sugestão. Levei-lhe. Está bem, chamou o encarregado, fiz a adaptação, coloquei, então, Trabalhos Manuais e Economia Doméstica, ao lado da Macenaria e Cestaria. Já tinha feito uma experiência antes, ensinar coisas complementares para as mães. Ocupar mães e alunas da 5ª série, no Salão da Escola. Arranjei professora para ensinar a fazer flores, ajudava fornecendo papel crepom. Via as mães, tão alegres, tão contentinhas, levand o papel, estavam fazendo flores, estavam vendendo para a Igreja, para casamento, e tendo lucros. Em outra oportunidade, foi contratada para pintura de porcelana, professora especializada. Curso mais requintado e mais caro o material, não teve o sucesso do primeiro. Então, o Pavilhão poderia realizar muitas atividades. Foi o primeiro Pavilhão de Artes Industriais no Estado. Então, crianças e alunos, mães e pais, se quisessem, podiam freqüentá-lo. Para as meninas, eu coloquei estas duas atividades acima apontadas.

MIRANDA - Quanta sabedoria, quanta informação sobre a história que a senhora vai colocando nas respostas a nossas perguntas. Gostaria de fazer uma pergunta sobre isso. Bom, à luz dos projetos que a senhora realizou na sua vida, que a senhora acabou de relatar, que balanço a senhora faria dos 50 anos de história com respeito ao Curso de Pedagogia da UFPR? É o que a gente gostaria de saber.

- Esses projetos só me enriqueceram como pessoa, me enriqueceram, também, como professora, além da Escola Guaíra que está completando 35 anos este ano. Além dela, que já citei bastante, fundei, também, por solicitação a Associação de Proteção ao Psicopata, a Escola Mercedes Stresser. Não houve experiência diferente, em tese, durante o 1º ano do seu funcionamento. Trabalhei com a equipe da Faculdade, alunas de Pedagogia, gratuitamente, até que alguém se preparasse e que assumisse a direção. No ano seguinte, senti necessidade de ir além. Por que, o senhor poderia tanto ter-me perguntado outra coisa, professor Miranda! Por que fui levada a uma coisa e outra? Muito simples. Quando se trata de educação, quando a criança é o centro, e seu interesse e seu desenvolvimento formam o núcleo da nossa preocupação, você sente que precisa estudar mais, pesquisar mais. Resultado: primeiro a Clínica Psicológica e depois a Classe de Recuperação. Mas eu não podia ir adiante, na escola pública. Então fundei o Instituto Decroly, meu, particular, sem verbas do Estado. Nele, instalei a clínica, as classes especiais e a 1ª sala, também do Estado, do que hoje se chama Fonoaudiologia, naquele tempo, Foniatria. Mandei professores seguirem curso fora. Convém dizer que todo o tempo de trabalho na Escola Guaíra consegui do professo Anísio Teixeira bolsa s de estudos para as professoras do Guaíra, todos os anos iam duas fazer estágio e cursos no Rio de Janeiro. Voltavam enriquecidas no seu enfoque à criança e na orientação às suas atividades. Então, no meu Instituto Decroly, pude fazer a clínica, o trabalho de recuperação, foniatria e tentativa de fisioterapia. Na Escola de Recuperação anexa, para adolescentes e para crianças deficientes mentais, organizei, no Instituto, a 1ª classe no Brasil para crianças superdotadas, durante alguns anos. Teve muita repercussão, era procurada pela imprensa nacional, pela imprensa estadual, que teimava em chamá-los de "mini-gênios". Pedia às mães que não comprassem a revista e, se o fizessem, não deixassem que as crianças a vissem. Nesta atividade fora da Universidade, eu contava sempre com as alunas de Pedagogia. Todo mo meu instituto funcionou com estas alunas na Escola Mercedes Stresser, também. Era uma forma de valorizar o curso e, também claro, enriquecer a experiência dessas professoras que hoje estão aí, dirigindo e orientando. Agora, essa experiência, por mais rica e fecunda, embora, não substituiu a Escola Experimental que a Universidade, através do Setor de Educação, deveria ter desenvolvido. Transmiti, em sala de aula, passo a passo, cada projeto que realizava aqui fora com relação às crianças atendidas, citava o caso, lógico sempre com cuidado, para não identificá-lo. Os alunos, então, enriqueciam seus conhecimentos com os meus exemplos vividos. Chamava atenção dos alunos para detalhes. Isso, é claro, repercutiu dentro da Universidade. Com relação a esses 50 anos, professor, essa pergunta é difícil de responder. Mas eu vou lhe perguntar - 50 anos, veja bem, meio século - que modificações nós encontramos aqui fora, graças aos 50 anos do Curso de Pedagogia? Fora a nossa Escola Guaíra, onde modifiquei o mobiliário, o ambiente, o conteúdo e o atendimento ao aluno, onde comecei com 300 alunos e que hoje tem 1.500 matriculados nos 3 turnos, fora esta escola, olhe as demais. Os alunos estão nas alas de aula como há 50 anos; até parece, foram 5 dias sentados, bracinhos cruzados, uma professora falando à frente e que ainda é capaz de estar com a régua na mão. Que modificações ocorreram? Com tantas estratégias e tantas reciclagens, o ensino piorou. O professor perdeu o prestígio, a importância, dentro do grupo social. Vejam bem, estão confundindo questão educacional com questão salarial, já perderam aquela visão universal da Educação. Sem a visão universal nós não chegamos ao particular. Já não há cultura geral, nem cultura filosófica, e muito menos cultura política. A maioria, quero crer, desculpe-me, não lê nem o jornal. E quando lê jornal, é para saber das notícias sociais, os artigos da moda. Mas, os artigos literários que a nossa "Gazeta do Povo" fornece hoje, não. E a leitura é necessidade básica. Lembro-me de quando, já estava na Universidade, em encontro com o professor Temístocles Linhares, ele perguntou: "Já leu Dostoievski?" "Ainda não", respondi. "Como a senhora pode ser professora sem ter lido Dostoievski? Que vergonha!" Lia autores nacionais, passei aos demais, hoje sou leitora inveterada, minha média é de 4 a 5 livros por mês. Depois das crianças, a coisa que mais aprecio são os livros. Voltando aos nossos professores, se perderam, a Universidade se transformou numa grande repartição pública, cada um está preocupado com o seu problema particular, que é sempre o maior problema da humanidade. Não vão além do seu sapato! Então, isto está prejudicando a educação, a Universidade, a sociedade em geral. No dia em que o professor for o educador e estiver preocupado com o aluno, então as coisas serão diferentes. Infelizmente, nesses 50 anos, nós não tivemos, não sei se devo dizer, pessoas na direção do Setor, realmente preocupadas coma educação. Alguns poucos, talvez. Outros, estavam aplicando vem a prece de São Francisco "é dando que se recebe", então, era sempre dando que se recebe, e nesta preocupação com a troca esqueceram de instalar a Escola de Aplicação. E se fazia de forma tão precária no meu tempo de estágio, não sei hoje o que se está fazendo, dividiram, cortaram, fizeram colagens e os cursos são outros. Não são os cursos que me interessaram, que me apaixonaram, que modificaram minha vida quando eu entrei há 50 anos.

MIRANDA - Professora Pórcia, nesta conversa, neste diálogo real, acredito que nós tivemos a oportunidade de saber se, dentro de toda essa história sua como educadora dentro do Paraná, da Universidade Federal do Paraná, se realmente a senhora acha que conseguiu atingir todos os seus objetivos enquanto ser humano, enquanto educadora.

- Realmente, a alegria do convívio com professores amigos, que os conservo até hoje, os alunos que me enriqueceram, que também até hoje são grandes amigos. De fato nesse aspecto, foi uma riqueza enorme profissionalmente falando. Mas guardei uma frustração. Durante quase 30 anos, eu não tive nem vez nem voz dentro da Faculdade, fui praticamente marginalizada. Mas, como acabamos de conversar hoje, transferi toda a minha energia, o meu desejo de realizar, para fora da Universidade, o que poderia ter realizado dentro dela. Nunca realizamos todos os objetivos, o trabalho com o ser humano é rico, dinâmico e fonte sempre de estímulos. Agora, poderia, concluindo, dizer alguma coisa aos que nos ouvem. Queria dizer que tudo o que se faz com amor, traz recompensa, e neste sentido vale também o verso de São Francisco "é dando que se recebe". Então, hoje, essa alegria que conservo, esse bem-estar de nunca ter contemporizado nem com conchavos, nem com privilégios, embora isso tivesse me custado bastante, ns minha ascensão profissional, não vou falar nisso agora, que a tarde foi agradável e amena. Digo, hoje, de cabeça erguida: posso falar, posso dizer, nunca prejudiquei um colega, nunca tumultuei a vida de um aluno, esqueci sempre alguns agravos, de alguns alunos que às vezes queriam lógico, chamar a atenção, estava lidando com adolescentes, e os adolescentes precisam se destacar. Agora, para finalizar, vou contar um caso muito interessante. Estava dando um curso para profissionais de fora da UFPR, que necessitavam o aval pedagógico, quando vejo um aluno com o jornal aberto, lendo, logo eu, a professora Pórcia, que era intransigente, antipática, exigia silêncio, sem nunca gritar ou exigir, bastava olhar. Então, parei e fiquei olhando. De repente, ele se sentiu observado. - "Espero que o senhor termine de ler o jornal, para continuar a minha aula, não quero perturbar sua leitura." - "Não me perturba", disse ele. - "Mas a minha educação não me permite que eu fale, quando alguém está lendo". Ele fechou o jornal e a aula continuou tranqüila. Ele faltou à próxima aula, na outra, ele me esperou no corredor. - "Professora, quero pedir desculpa, a senhora tinha razão, fui grosseiro." - "Ora, rapaz, já esqueci, não se preocupe". Era assim, não agradava rancor, tratava todos iguais, sempre com respeito, sempre "o senhor", "a senhora". Quando uma aluna mais exibida se dirigia: "Pórcia, você acha que naquele livro tem esse assunto?", respondia, fingindo que não ouvira bem: - "Como é que a senhora disse? O que foi que a senhora perguntou? Claro que a senhora encontra, etc." Dentro deste comportamento, fui amiga dos alunos de igual para igual, tanto que participei de várias excursões pelo Brasil e pelos países da América do Sul. Foram excursões interessantes, eu sempre mantinha respeito ao lado da amizade. Gostaria de ter ensinado para os meus alunos, infelizmente não consegui, esse limite entre o ser amigo, o ser de igual para igual, sem perder o respeito e a autoridade.

MIRANDA - Professora Pórcia, em nome da revista "EDUCAR", em nome do Departamento ao qual nós ambos pertencemos, a senhora e eu guardaremos com muito carinho, com muito apreço, as palavras, como eu disse, de tanta sabedoria, que a senhora nos falou. Não vou falar mais, porque seria disperdiçar as minhas palavras e, talvez, as minhas palavras tirassem o apreço às palavras que a senhora colocou. Muito obrigado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 1988
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