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A escrita: algumas questões de natureza lingüística

ARTIGOS DE DEMANDA CONTÍNUA

A escrita: algumas questões de natureza lingüística* * Palestra proferida no seminário: Reflexões sobre a alfabetização, promovido pelo Setor de Educação da UFPR no 2º semestre de 1989, onde figurou o título: A escrita: características e funções.

Maria Ignez de Oliveira Guimarães

Professora Adjunta do Departamento de Lingüística, Letras Clássicas e Vernáculas do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes

1 - QUESTÕES PRÉVIAS

Desde Saussure (1916) se discute a "objetividade" na ciência lingüística e, a partir dele, seria até truísmo afirmar que "(...) é o ponto de vista que cria o objeto".1 1 SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. 5. ed., São Paulo, Cultrix, 1973, p.15. (Versão de: Cours de Linguistique Générale. Paris, Payot, 1916).

Esta proposição, que tomamos como verdadeira, nos autoriza a conduzir a reflexão sobre o modo como a ciência percebeu a linguagem, criando recortes no "objeto" que embasaram os conjuntos de crenças de correntes metodológicas diversas na descrição do fenômeno lingüístico.

A ação metodológica da escola reflete muito diretamente a influência do pensar sobre a língua dessas orientações, adotadas sem maiores cuidados e, principalmente, sem uma crítica dos pressupostos que subjazem a cada proposta metodológica da alfabetização.

Tem-se hoje como pacífico que esta seja um fenômeno multifacetado que não se reduz a uma perspectiva quer sociológica, quer psicológica, quer puramente lingüística. A multiplicação de estudos e pesquisas no campo da alfabetização demonstra que o problema ainda perturba os educadores e resiste aos esforços e investimentos dos planos e campanhas de maior abrangência dos órgãos governamentais, de escassos resultados na modificação do quadro de evasão e repetência nas primeiras séries e da taxa de analfabetismo no país.

Acresce, ainda, que o problema da leitura e da produção de textos repercurte nas séries posteriores, revelando que, mesmo entre os "alfabetizados", permanece a pouco familiaridade com o código gráfico como espaço de reação e expressão verbal, que pode indicar uma distorção quanto ao uso e função da escrita estabelecida na própria fase de aquisição.2 2 Dois trabalhos da autora - A validade da mensagem nas classes de alfabetização (1979) e Redação escolar: processo e produto das classes de iniciação (1980) - revelam a preocupação da escolar apenas com o aspecto de treinamento mecânico da associação som x grafema e a predominância do cuidado com a forma ortográfica em detrimento do alcance do significado da mensagem do texto escrito.

Esta palestra pretende levantar alguns pontos de reflexão sobre o objeto escrita, consciente do grau ainda incipiente das propostas, que apenas representam pontos de partida para o aprofundamento necessário da questão de que depende o delineamento de uma ação pedagógica mais eficaz no ensino de primeiro grau.

2 - CONCEPÇÕES DE LINGUAGEM E ALGUMAS CONSEQÜÊNCIAS PARA O ENSINO

Tendo-se como pacífico que a linguagem é um conjunto organizado por significantes - formas auditivo orais - a que membros da comunidade atribuem significados, plausíveis em determinado contexto ou situação, vamos repassar algumas concepções teóricas que embasaram as crenças do pensamento sobre a língua e que, de certo modo, repercutem em ações, algumas até preconceituosas, do professor em sala de aula.

2.1. - Concepção tradicional

A primeira delas, de muita força, constitui legado da antiga tradição grega. Especulando a linguagem, num esforço que caracterizou a operosidade desse povo em épocas áureas de sua história e que enriqueceu os mais diversos campos da ciência, os filósofos a perceberam como análoga a "pensamento". A concatenação lógica entre os elementos da frase passa a constituir a característica mais relevante do código verbal, cujo ponto culminante seria encontrado na produção escrita. Ora, todos sabemos a importância que a nossa cultura atribui ao texto escrito. Pelos seus parâmetros é avaliada a competência lingüística dos usuários e são marginalizadas as populações ágrafas ou as que, mesmo alfabetizadas, revelam pouca habilidade no uso do código gráfico.3 3 Para uma preciação sobre o poder que a nossa cultura atribui à escrita, ver GNERRE. Linguagem, escrita e poder. S. Paulo, Editora Martins Fontes, 1985. Sabe-se hoje que o texto escrito tem condições de produção diversa da situação de oralidade: implica planejamento, reflexão sobre a língua, objetivos mais claros, linguagem verbal mais explícita e grau de correspondência mais pleno em relação ao leitor, o que lhe confere o caráter de maior organização e completude em relação ao que se passa na produção oral. Nesta, os tempos de fala são interrompidos, o planejamento do que se vai dizer é, via de regra, simultâneo ao ato da fala, as negociações são sucessivas entre os interlocutores, o que os leva a repetir, reformular ou abandonar certos assuntos, em benefício da conservação do fluxo comunicativo entre os interlocutores.

Como são diversas as condições de produção, os textos - oral e escrito - serão também diversos, na organização textual e formas de linguagem. Ora, tomar a escrita como padrão ideal da fala não nos parece verdadeiro. No entanto, o que se vê acontecer ainda hoje no comportamento escolar, quer na pronúncia marcada das sílabas pelos professores que tentam passar a imagem de uma fala "culta" como reprodução oral de "como se escreve", quer nos exercícios e lições de gramática, recortes estranhos, para fins de exemplo, de uma linguagem isolada da situação de uso.

Aliás, convém relembrar que as primeiras propostas de gramática nasceram da tentativa de tornar explícita a linguagem escrita (de textos literários, na atividade dos filólogos hindus e os árabes) a uma população cujo uso de língua já se afasta nitidamente dos padrões dos textos. Foi, portanto, de uma necessidade funcional de "explicação" de textos, de modo a facilitar a sua compreensão pelos usuários de outras formas de linguagem, que surgiram as descrições gramaticais que hoje, conhecemos como matéria imposta aos alunos nos currículos de ensino da língua materna, na expectativa de que o conhecimento sobre a língua possa gerar uma produção "correta" e "elegante", no ideal do "falar bem a língua portuguesa".

Aos professores que trabalham com as primeiras séries, porém, seja relembrada uma outra conseqüência da visão de língua como reflexo do pensamento: a possibilidade de estabelecer uma relação unívoca entre "boa lingugem" e "pensamento lógico". Trata-se de repensar esta relação no sentido preconceituoso com que se pode admitir perfeição do pensamento ligado a "boa linguagem", esta última moldada pelos padrões da norma culta escrita escrita e, conseqüentemente, o uso de variantes populareas como equivalente a deficiência ou incapacidade de formular um pensamento.

Note-se a rejeição da credibilidade aos discursos em que ocorrem os chamados "erros" de linguagem. Basta que se avalie o que acontece nas campanhas dos candidatos a cargos políticos: acredita-se que quem não saiba sequer "falar bem" o português, não seja capaz de pensar para apresentar propostas plausíveis de governo...

Isto também se repete, em larga escala, na escola: é "ignorante" e, pior, "incapaz de pensar" a criança que reproduz na sala de aula a variante "nós vai" - legítima no seu meio familiar...

2.2. - Concepção positivista (estruturalista)

Passaremos, agora, a outra visão de língua, também de considerável importância como embasamento da ação do professor. A corrente, que se instala no início do nosso século e que tem como base lingüística relevante a contribuição de Ferdinand Saussure, concebe a linguagem como "hábito".

Ora, para o mestre de Genebra, a linguagem seria um conjunto organizado, em que, a um elemento sensável, auditivo oral - o significante - , corresponderia outro componente representativo de atos do universo cultural - o significado. O conjunto organizado dos signos assim constituídos seria o "patrimônio social" próprio de cada comunidade de fala, a que seria exposto cada indivíduo no processo da aquisição da linguagem.

Não se pode negar que hoje a extrema validade da contribuição saussureana, no sentido de propor uma metodologia segura de análise dos dados empíricos de uma língua, levantando-lhes os elementos constantes e as regras de organização do sistema lingüístico, desde o nível dos fonemas, ao dos lexemas, até chegar às estruturas sintáticas das locuções e sentenças na complexidade dos períodos. Mas, ainda que convincente, a metodologia estruturalista dá conta apenas da organização formal do significante lingüístico e instrumenta a descrição mais precisa da "gramática" de uma língua do ponto de vista do cientista, não do usuário de um idioma. Além disso, é bastante conhecido o adiantamento da questão do significado pelos estruturalistas, que não se deixa descrever com o menor rigor científico exigido para a teoria do significante.

No entanto, a idéia de que a aquisição da linguagem seria decorrente de repetições e treinamentos de estruturas para instalar e fortalecer um "hábito" teve muito sucesso nas escolas, não só as de língua estrangeira - onde é ponto pacífico, ainda hoje, que se deve repetir até gerar automatismo (nem que isso implique exaustão do aprendiz) determinadas estruturas, rigorosamente apresentadas em graus de complexidade crescente, para que o estudante forme novos "hábitos" de língua - mas também na condução da aprendizagem das estruturas "cultas" da própria língua nativa. Desse modo, os manuais didáticos reúnem expressivas baterias de exercícios do tipo "siga o modelo", para cada caso específico previsto no programa escolar.

Acresce, ainda, que o embasamento teórico da teoria lingüística coincide com a visão behaviorista da aprendizagem, de modo que "repertir o certo" até formar um novo condicionamento se tronou palavra de ordem nas escolas.

Todos os professores, acredito, já tiveram ocasião de vivenciar a técnica de "treinamento" coletivo, ideal, diga-se de passagem, para tratar com classes numerosas - e, via-de-regra, de sentir-lhe a frustração em relação ao objetivo visado. É difícil encontrar quem não conheça - até por experiência própria - a história do "Joãozinho" que depois de tentar obedecer à professora, que lhe ordena copiar "cem vezes" a forma coube, se desculpa, depois de "noventa e nove" tentativas bem sucedidas com o recado de que não completara a tarefa visto que: "não cabeu na folha"...

É ainda essa concepção de aprendizagem como condicionamento gradativo do aprendiz a formas de complexidade crescente que parace muito operante na tarefa central da escola - a iniciação à escrita.

Não é sem respaldo teórico (ainda que a teoria não esteja explícita e se trabalhe acriticamente com seus pressupostos) que as cartilhas submetem o aprendiz, primeiramente ao conjunto de letras que remetem a sons "simples" - vogais, que se juntam "simplesmente" para formar sílabas; depois, engenhosamente, vão sendo apresentadas, com "dificuldades", as combinações de consoante-vogal, que formam palavras. Espera-se que, depois de uma série de "lições", o iniciante já esteja "pronto" para enfrentar obstáculos maiores como os "grupos consonantais", as seqüências "consoante-vogal-consoante", e, afinal, realizar a suprema conquista: ler frases! Não importa, mesmo, que haja compreensão: basta que ele transforme grafemas, penosa e arrastadamente, em sons da língua; e o professor a terá considerado alfabetizada.

Ora, outra é a realidade quando a criança vive o processo de aquisição da linguagem, cuja gramática básica já domina por volta dos seus três primeiros anos de vida. Aqui, nas relações familiares, ela aprende, muito efetivamente, que a "linguagem faz coisas", segundo se percebe em Halliday.4 4 HALLIDAY, M. A. K. Modelos relevantes de língua. In: Explorations in the functions of linguage. London, E. Arnold, 1973. A tradução para o português do capítulo se encontra em cópia datilografada no Departamento de Lingüística, Letras Clássicas e Vernáculas da UFPR. Para este autor, é a realidade das situações diversas que proporciona as condições ideais para o exercício de diversos "modelos" de textos necessários para antingir determinados resultados. Para a criança, a linguagem principalmente significa algo: ela não se apresenta como forma de ser repetida ou treinada pelos adultos.

Estes jamais se preocupam com o aspecto externo ou "correto" da forma verbal. Mais do que isso, sua atenção está dirigida para o antendimento daquilo que o bebê deseja "dizer", para satisfazer-lhe as necessidades imediatas.

Como os trabalhos de Halliday, a que se juntam outros pesquisadores, tem-se hoje como certo que a função "representacional" ou "informativa" é apenas uma, relevante para o universo adulto, mas não a única.5 5 Os "modelos relevantes" que significam situações diversas de produção de linguagem são, no texto citado; o instrumental, o interacional, o regulador, o imaginativo, o expressivo, o heurístico e o r epresentacional, além do metalingüístico. A escola valoriza apenas a linguagem como informação (modelo representacional) e investe demasiadamente na metalinguagem, com que pensa estar ensinando a gramática da língua...

Essa reflexão sobre a linguagem como resultante de situações relacionais específicas em determinada situação vai alimentar a tendência que atualmente ganha vulto nas especulações lingüísticas e que poderá contribuir para uma ação pedagógica mais eficiente e real de escola: a visão internacional, enfoque que julgamos indispensável para uma tomada de posição sobre a língua.

2.3. - Concepção interacionista de língua

Por essa trilha, o fenômeno da linguagem humana é percebido como uma relação muito concreta de um eu para um tu em determinada situação, para consecução de objetivos. A concepção de uma dinâmica no intercâmbio de signos verbais entre interlocutores temporal e espacialmente determinados, que produzem significados agindo com e na língua traz uma perspectiva nova para o ensino da língua materna. Essa proposta tem origem no lingüista russo Mikhail Bakhtin, 1929, cuja obra apenas a partir de 1970 antinge o mundo ocidental, nas traduções para o inglês e o francês e destas, afinal, para o português em 1979.6 6 BAKHTIN, M. (VOLOSHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, HUCITEC, 1979. Trad. de LAHUD, M. & VIEIRA, I. F. São desconhecidas as causas pelas quais VOLOSHINOV, amigo de BAKHTIN, assina a obra, reconhecidamente deste último pela clara indicação das suas publicações posteriores.

É bastante perturbadora para nós, professores, acostumados a ser a única fonte de informação para uma classe de alunos e, mesmo, com o modelo unidirecional do esquema da Teoria da Comunicação (EMISSOR-RECEPTOR-CÓDIGO-CANAL-MENSAGEM), aceitar o caráter eminentemente dialógico como constitutivo do próprio signo verbal.

E, contudo, desde os trabalhos de Charles Sanders Peirce7 7 Uma apresentação bastante didática da contribuição de Peirce se encontra na obra de TEIXEIRA COELHO NETO, Semiótica, informação e comunicação. São Paulo, Perspectiva, 1980. , no início do nosso século, o pensamento sobre o significado dos signos vinha sendo abalado pelo seu caráter de construção individual, reelaboração mental do componente interpretante, diverso quanto são diferentes as experiências pessoais de cada um. Essa relação aberta entre o signo e o objeto se opõe definitivamente à certeza de que cada signo deveria significar uma e apenas uma "realidade", ainda que fossem diferentes os receptores.

Ora, admitir que tanto o que fala como o que escuta e responde estão realizando operações contínuas de construção e reconstrução de significados e, mais, que a diversidade dos efeitos é própria da natureza do próprio signo verbal é colocar por terra tudo o que sabíamos a respeito de ensino como processo de massa, controlado por testes e provas "objetivas", com questões de resposta única, que teriam de conferir com a do professor...

A idéia de que uma interação efetiva - aluno/professor, professor/aluno, aluno/aluno - produz uma forte modificação no universo de representações dos envolvidos se, de certo modo, nos deixa tranqüilos e menos ansiosos quanto à precisão dos resultados explícitos em medidas ou notas, por outro lado, atribui ao professor uma enorme carga de responsabilidade em criar situações favoráveis ao desenvolvimento da construção de significados, à ampliação dos instrumentos de atuação dos indivíduos no mundo. Além disso, admite-se que não só os alunos, mas também o professor, devem crescer e refinar o universo de referência, o que significa, pedagogicamente, uma atenção maior para o que está acontecendo naquele instante do processo - consigo mesmo e com cada um dos alunos - percebendo as sinalizações diferenciadas da construção do aprendiz como marcas de uma operação intelectual intensa - o que descortina um horizonte maior para a compreensão do trabalho que subjaz ao próprio erro, principalmente, na produção escrita.

Com essa concepção internacional da linguagem, passaremos agora à consideração do objeto escrita, com a intenção de ressaltar-lhes as características e como podem representar dificuldades para o alunado.

3 - A QUESTÃO DA ESCRITA

A primeira questão que se nos apresenta é relativa a mudança de canal: enquanto na linguagem oral os nossos ouvidos estão atentos aos significados decorrentes de uma cadeia sonora produzida por um falante, na escrita será a visão convocada para decifrar uma codificação que remete à linguagem. Aqui está a primeira descoberta que a criança deverá fazer: a de que o sinal gráfico não remete ao referente, mas à forma sonora da linguagem que o representa.

Essa relação, que parece óbvia ao adulto alfabetizado, é o salto fundamental do aprendiz, empenhado na construção do novo conhecimento - a decifração do código gráfico alfabético de que se vale a nossa cultura.

Muitos já têm observado, mas nunca será demais repetir, que as crianças percorrem na sua busca o caminho que a humanidade levou para descobrir a escrita alfabética, no século X a. C.. segundo declara Ignace Gelb, 52.8 8 O trabalho de Ignace GELB (1952, Chicago) foi traduzido para o espanhol: Historia de la escritura, Madrid, Alianza Editorial, 1985 (3ª ed.). É um trabalho muito sério, referência básica para todos os que estudam o problema da escrita. Na verdade, nascida da necessidade da comunicação humana, a escrita vai atravessar diversas fases, que coincidem com as hipóteses da criança. Num primeiro momento, será pictográfica, em que o desenho reproduz analogicamente a cena que se quis registrar; a estilização dos desenhos da forma pictográfica, que perde as curvas para assumir o traço retilíneo, representa um primeiro esforço para a composição de um sistema convencional, mas ainda sugestivo da coisa representada, embora já esvaziado do seu valor semântico.9 9 É interessante a observação de Mary KATO ( No mundo da escrita: uma perspectiva sociolingüística. S. Paulo, Ática, 1986), a respeito do esvaziamento semântico do ideograma chinês, que permite juntar dois ideogramas - de homem e árvore para significar 'descansar'.

A criança, que busca decifrar o que significam os "desenhos" que os adultos conseguem ler, fará inicialmente uma hipótese analógica - a do tamanho da palavra escrita com o tamanho do referente.

Assim, Flávia, 5 anos, não terá dúvida de responder que "está escrito florzinha" exatamente na escrita flor, de tamanho gráfico evidentemente menor do que o seu correspondente (florzinha).

É com os fenícios, no entanto, que a humanidade dará o salto qualitativo na descoberta de um sistema bem mais econômico do que os ideogramas.

Valendo-se dos caracteres pictográficos dos egípicios o poderoso povo fenício seleciona 24 caracteres que corresponderiam, não a idéias ou cenas do referente, mas à forma sonora das sílabas de sua própria língua.

É esse também o caminho que a criança faz, como observa Emília Ferreiro, quando percebe uma correspondência do sistema gráfico não mais com o do referente, mas com o som das palavras, de que destaca, primeiramente, a representação silábica.10 10 É já bastante conhecida a contribuição de Emília FERREIRO no pensar a aquisição da escrita como construção cognitiva da criança em inúmeras publicações já traduzidas para o português, dentre as quais a já clássica obra em co-autoria com Ana TEBEROSKI: Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre, Artes Médicas, 1987. É por esse motivo que, na mesma ocasião em que "lê" "florzinha" onde estava escrito flor, a mesma Flávia seguramente apontará o dedinho f-l-o (r) / "flor" "zi" "nha"/; surpresa com a "sobra" e sinais, desiste da empresa e, tímida, se recusa a continuar a "leitura".

De qualquer modo, ainda que frustrada a primeira experiência, Flávia já nos indica estar tentando uma hipótese mais aproximada do nosso sistema gráfico, ao supor que se pode desenhar não só figuras (análogas ao referente), mas o que se fala segundo já tinha observado o psicólogo Vigotsky.11 11 Essa observação consta no texto de KATO, já citado, . 16.

Mas, embora tenha feito uma descoberta importante, a criança terá ainda de construir outros refinamentos para alcançar o sistema convencional alfabético, necessário para aproximar a escrita dos valores fonêmicos próprios do nosso sistema lingüístico.

Pois, se é verdadeiro que, para os fenícios, bastava a representação das consoantes (apenas muito eventualmente algumas semiconsoantes - /w/ e /y/ - assumiam o papel de vogais) para dar conta do padrão silábico da língua, isso não era satisfatório para a língua grega, onde claramente as vogais tinham valor fonêmico e, assim, qualitativamente se diferenciavam, como acontece entre nós, que temos valores diversos, entre, pá, pe, pE, pi, po, pO e pu. Assim, quando os gregos adotaram caracteres fenícios, tiveram de acrescentar-lhes outros, exigindo do leitor uma operação mais minuciosa, destacando fonemas na constituição de uma sílaba, o sistema alfabético, que, absorvido pelos romanos, nos foi legado.

Não é, de modo algum, simples essa descoberta pela criança: ela terá de empenhar-se, e muito, para perceber a correspondência fonema/grafema, nem sempre clara, pois o sistema de escrita na língua portuguesa não reproduz a fala, que tem um ritmo e uma melodia que apagam os contrastes silábicos apenas gráficos que a escola teima em treinar nos famosos exercícios das "famílias silábicas" - ba, be, bi, bo, bu; pa, pe, pi, po, pu, etc. No seu caminho penoso de construção de uma escrita alfabética, a criança, quando escreve, demonstra com clareza a insuficiência do sistema para reproduzir os sons da sua própria fala. É verdade que a escola transforma em tragédia as iniciativas da criança em reproduzir a fala, como a que foi registrada por Cagliari. Trata-se do relato de um garoto de 9 anos, de Campinas, imaginando uma situação amorosa em primeira pessoa:

"(...) ai euvi umamenina quechãomava

luciana ai euapachonei

poréla ai euvi é la daí

élaqueria cazacomigo

aiquadoeu fiquei grade ai

eucazeicoéla (...)"12 12 CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetização e Lingüística., São Paulo, Editora Scipione, 1989, p.134 (Série: Pensamento e ação no magistério).

Assim como está, o texto provavelmente renderia uma reprovação ao seu "apachonado" autor. No entanto, ele sem dúvida está alfabetizado, no sentido em que demonstra ter aprendido o essencial do sistema alfabético, isto é, a utilização de grafemas para representar os sons da fala e, mais, conseguir reproduzir um texto coerente, bastante diverso das construções reprodutivas, sem erro ortográfico, mas sem expressividade nem coesão, como aparece constantemente nas "redações" escolares.

"O dia está bonito.

Ela é uma dama", etc.

Acontece que o autor do primeiro texto deverá ainda aprender outros pormenores, de natureza ortográfica e não propriamente lingüística, como a separação dos vocabulários em grupos cuja intensidade modula os contornos de uma só palavra, como em "euvi", no ouvido da criança uma só palavra oxítona (como ali), "poréla", em que a intensidade da locução é "caprichosamente" marcada pelo acento agudo... A tentativa de aproximação da escrita ao ritmo da fala chegará ao cúmulo quando a criança reproduz a frase, juntando seus elementos e produzindo um contorno melódico que sente como uma só palavra. "eucazeicoéla". O critério da união de vocábulos pelo contorno da intensidade não é, porém, tão consistente, pois a criança destaca "ai" e vai separar um vocábulo em dois como no caso de "é la".

É também verdade que a criança luta com outros problemas ortográficos coom a representação da nasalização do /ã/ ora não marcada como em "grade" "quado", ora excessivamente assinalada como "chãomava"; com a ortografia complicada que reproduz o mesmo fonema /z/ ora por s, ora por z; ou o /s/u, representado ora por ch, ora por x, causas dos erros muito evidentes no texto (e os que mais irritam os professores), Outras normatizações próprias da grafia ainda estão evidentes por adquirir: o emprego de maiúsculas, a pontuação, assim como a reelaboração de variantes da oralidade para o padrão escrito, como no reestabelecimento gáfico do ditongo inexistente no uso oral - apaixonado - e no uso do mesmo verbo numa forma reflexiva (eu me apaixonei por ela).

São questões, no entanto, que podem ser resolvidas ao longo das séries escolares, ora funcionando o professor como escriba de um texto produzido e lido pelo aluno (o que apagará todas as marcas de desvios ortográficos), ora trabalhando com o "autor" na discussão do texto produzido, levantando questões, mostrando como fica "na escrita" a forma falada.

Mas, em toda a sua tarefa, tenha sempre presente o professor que é muito mais eficiente um contacto prazeroso com o texto, por meio do qual o aluno amplia o seu poder de comunicação, do que fazê-lo calar-se para evitar a "fixação" de um erro ortográfico...

A ortografia tem um aspecto social: suas normas aparecem quando um texto se torna público -que é exatamente quando se fecha o circuito que o motivou: escreve-se algo para ser lido por muitos. Nesse caso não se justifica uma "grafia individual", e é sempre com este propósito que os alunos devem empenhar-se para construírem sempre o melhor possível um texto, de modo claro e acessível aos leitores.

Felizmente, ele terá tempo para dominar todas as peculiaridades da ortografia, se todas as ocasiões forem efetivamente aproveitadas e, principalmente, se ele próprio souber recorrer às fontes (dicionário, gramática) que lhe poderão fornecer de imediato a informação que desconhece.

  • BAKHTIN, M. (Voloshinov). Marxismo e filosofia da linguagem São Paulo, Hucitec, 1979 (Trad. da versão francesa de 1972).
  • CAGLIARI, L. C. Alfabetização e Lingüística Série: Pensamento e ação no magistério. São Paulo, Editora Scipione, 1989.
  • FERREIRO, E. & TEBEROSKI, A. Psicogênese da língua escrita Porto Alegre, Artes Médicas, 1987.
  • GELB, I. J. Historia de la escritura 3. ed., Madrid, Alianza Editorial, 1985.
  • GNERRE, M. Linguagem, escrita e poder São Paulo, Martins Fontes, 1985.
  • HALLIDAY, M. A. K. Explorations in the functions of linguage London, E. Arnold, 1973.
  • KATO, M. No mundo da escrita: uma pespectiva psicollingüística Série Fundamentos, São Paulo, Ática, 1986.
  • SAUSSURE, F. Curso de Lingüística Geral 5. ed., São Paulo, Cultrix, 1973. (Versão de Cours de Lingistique Générale Paris, Payot, 1916).
  • TEIXEIRA COELHO NETO, J. Semiótica, informação e comunicação São Paulo, Perspectiva, 1980.
  • *
    Palestra proferida no seminário:
    Reflexões sobre a alfabetização, promovido pelo Setor de Educação da UFPR no 2º semestre de 1989, onde figurou o título:
    A escrita: características e funções.
  • 1
    SAUSSURE, Ferdinand de.
    Curso de lingüística geral. 5. ed., São Paulo, Cultrix, 1973, p.15. (Versão de:
    Cours de Linguistique Générale. Paris, Payot, 1916).
  • 2
    Dois trabalhos da autora -
    A validade da mensagem nas classes de alfabetização (1979) e
    Redação escolar: processo e produto das classes de iniciação (1980) - revelam a preocupação da escolar apenas com o aspecto de treinamento mecânico da associação som x grafema e a predominância do cuidado com a forma ortográfica em detrimento do alcance do significado da mensagem do texto escrito.
  • 3
    Para uma preciação sobre o poder que a nossa cultura atribui à escrita, ver GNERRE. Linguagem, escrita e poder. S. Paulo, Editora Martins Fontes, 1985.
  • 4
    HALLIDAY, M. A. K. Modelos relevantes de língua. In:
    Explorations in the functions of linguage. London, E. Arnold, 1973. A tradução para o português do capítulo se encontra em cópia datilografada no Departamento de Lingüística, Letras Clássicas e Vernáculas da UFPR.
  • 5
    Os "modelos relevantes" que significam situações diversas de produção de linguagem são, no texto citado; o
    instrumental, o
    interacional, o
    regulador, o
    imaginativo, o
    expressivo, o
    heurístico e o r
    epresentacional, além do
    metalingüístico. A escola valoriza apenas a linguagem como informação (modelo
    representacional) e investe demasiadamente na
    metalinguagem, com que pensa estar ensinando a gramática da língua...
  • 6
    BAKHTIN, M. (VOLOSHINOV).
    Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo, HUCITEC, 1979. Trad. de LAHUD, M. & VIEIRA, I. F. São desconhecidas as causas pelas quais VOLOSHINOV, amigo de BAKHTIN, assina a obra, reconhecidamente deste último pela clara indicação das suas publicações posteriores.
  • 7
    Uma apresentação bastante didática da contribuição de Peirce se encontra na obra de TEIXEIRA COELHO NETO,
    Semiótica, informação e comunicação. São Paulo, Perspectiva, 1980.
  • 8
    O trabalho de Ignace GELB (1952, Chicago) foi traduzido para o espanhol:
    Historia de la escritura, Madrid, Alianza Editorial, 1985 (3ª ed.). É um trabalho muito sério, referência básica para todos os que estudam o problema da escrita.
  • 9
    É interessante a observação de Mary KATO (
    No mundo da escrita: uma perspectiva sociolingüística. S. Paulo, Ática, 1986), a respeito do esvaziamento semântico do ideograma chinês, que permite juntar dois ideogramas - de
    homem e
    árvore para significar
    'descansar'.
  • 10
    É já bastante conhecida a contribuição de Emília FERREIRO no pensar a aquisição da escrita como construção cognitiva da criança em inúmeras publicações já traduzidas para o português, dentre as quais a já clássica obra em co-autoria com Ana TEBEROSKI:
    Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre, Artes Médicas, 1987.
  • 11
    Essa observação consta no texto de KATO, já citado, . 16.
  • 12
    CAGLIARI, Luiz Carlos.
    Alfabetização e Lingüística., São Paulo, Editora Scipione, 1989, p.134 (Série: Pensamento e ação no magistério).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Mar 2015
    • Data do Fascículo
      Dez 1989
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