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A diversidade cultural e a reprodução humana

DOSSIÊ (A) - A BIOÉTICA / DOSSIÊ (B) - LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL

A diversidade cultural e a reprodução humana

Jungla Maria Pimentel DanielI; Veraluz Zicarelli CravoI; Zulmara C. Sauner PosseII

IMestres em Antropologia pela PUC/SP

IIDoutora em Arqueologia pela USP/SP

Antes de começar a discorrer sobre este tema é necessário dizer algumas palavras sobre como ocorre a relação natureza e cultura, à partir do protagonista deste processo: o Homem.

Em sua totalidade, o homem é o foco da produção científica. Sua apropriação diferencial, nas muitas áreas do conhecimento, torna-o, porém, divisível, portanto sujeito a análises parciais e diferentes.

A diversidade das visões profissionais representa a somatória da experiência concreta vivida e dos valores assimilados no processo de aprendizagem. Essa diversidade orienta, enquanto experiência individual, a percepção do mundo, e, enquanto profissional, o seu objeto de trabalho.

Os especialistas da área de saúde, por exemplo, costumam pensar o homem, que constitui seu objeto de estudo e de trabalho, como um corpo biológico depositário da doença e da saúde. Os especialistas das ciências sociais pensam o homem como um corpo social pertencente a uma classe ou a um grupo ou a uma família. Os especialistas da área da educação pensam esse mesmo homem como um corpo inteligente.

Para a Antropologia torna-se importante, iniciar-se essa reflexão sobre o homem tomando duas idéias que surgem quando pensamos no gênero HOMO. A primeira é que o homem que somos é biologicamente SAPIENS e que se apresenta como tal em qualquer lugar que possamos encontrá-lo. A segunda, é que no processo de seu surgimento, ele só foi reconhecido como HOMO, quando apresentou indícios de que havia transformado a natureza criando objetos úteis para suas atividades diárias, bem como outras de maior complexidade, como reflexões elaboradas a respeito da morte e do sobrenatural.

No processo evolutivo seguido por todos os seres do planeta, este ser único se destaca porque não tem o comportamento determinado somente pela sua engenharia genética, encontra-se liberado para criar as condições de sua vida que estão ao seu alcance, que considera as mais certas e lógicas. A cultura, esse elemento criador e orientador, passa a operar não apenas na natureza externa do HOMO como resultado das suas necessidades, mas também nele. O corpo torna-se então matéria-prima essencial que, ao ser usado, vai permitir a utilização adequada de objetos, a transformação de instrumentos e de si mesmo. As "técnicas corporais" aparecem como resultado da ação conjunta do refletir sobre seu corpo e sobre a natureza circundante. Este corpo, não possuidor de habilidades específicas como dos outros animais, constituía-se perante aqueles como um animal a ser completado. A relação entre a natureza biológica do homem e a cultura preencherá o seu "corpo inacabado".

Desse modo, temos um homem genética e culturalmente produzido como SAPIENS e temos homens específicos de sociedades particulares, em tempos determinados. Falar de um homem genérico é falar em nível ideal, afastado da realidade em que os homens vivem e se fazem homens. O próprio homem biológico não pode ser pensado como universal, pois as condições socioculturais onde ele vive, o especificam. O corpo biológico e o corpo social se relacionam dando uma única dimensão para este ser, porque cada sociedade desenvolve um projeto para a sua produção. Quando pensamos que somos resultado de combinações apenas genéticas, acabamos por dar um peso exagerado ao biológico. Entretanto, quando analisamos mais cuidadosamente, percebemos que essas combinações não se dão ao acaso, o cultural tem implicações importantes nesse processo combinatório. Normais sociais altamente elaboradas socializam os indivíduos e os obrigam a determinadas relações sociais, como o caso da aliança. As combinações genéticas passam por combinações sociais. São as regras de uma sociedade e os códigos de valores culturais que irão dizer de que modo os cônjuges podem ser escolhidos. Assim, a genética que especifica cada ser é resultado de fatores genéticos e determinações sociais, excluindo ou favorecendo as uniões no processo de reprodução do homem. É o caso do tabu do incesto. Segundo Lévi-Strauss, "a raíz da proibição do incesto está na natureza, apenas por seu turno, na verdade é, como regra social que podemos apreendê-la". Assim, por exemplo, a proibição do incesto não se exprime sempre em função das regras de parentesco real, mas têm por objeto sempre os indivíduos que se dirigem uns aos outros empregando certos termos como pai, mãe, irmão e irmã."

Desta maneira, entre os trobriandeses, população que habita um arquipélago da Oceania, o irmão da mãe é quem desempenha o papel de autoridade paterna. O pai não é parente, e conseqüentemente seus parentes colaterias e descedentes são os cônjuges preferenciais de Ego. Portanto, uma moça pode casar-se com seu primo-irmão do lado paterno, porque nesta sociedade ele não é seu parente, mas não pode se casar com seu primo-irmão por parte de mãe, porque seria uma união incestuosa. Também no Brasil, um padrinho não pode casar-se com a afilhada ou um padrasto casar-se com a enteada, pois, apesar de não existir vínculo de consangüinidade a união seria entendida como incestuosa. É que na verdade em ambos os casos, estamos nos referindo a regras sociais e não a relação de consangüinidade. O que existe é que na natureza há um princípio de indeterminação, que se manifesta no caráter arbitrário da aliança. A natureza diz que tem que haver uma aliança para que haja filhos, porém quem serão os cônjuges, cabe a cultura definir. O tabu do incesto é uma forma de intervenção na biologia, porém não é a única. O preconceito de classe, de cor, de etnia, de religião, de idade, de instrução, de biotipo nas sociedades complexas são também, exemplos de intervenção na biologia.

A aliança, enquanto uma relação de união entre um homem e uma mulher, é um fenômeno universal. Entretanto, manifesta uma grande diversidade cultural em cada contexto social. Algumas alianças são monogêmicas outras são poligâmicas. Diferentes rituais formalizam a aliança. Em nossa sociedade, atinge algumas elaborações requintadas, o casamento religioso é um exemplo significativo. Em outras como entre os esquimós, o casamento se formaliza num ritual simples em que o noivo obtém uma mulher oferecendo a sua família um objeto utilitário. Permeando esta diversidade existe uma característica universal nas relações que se estabelecem entre os cônjuges. A mulher se apresenta como um ser dominado em todas as sociedades humanas. Este aspecto é importante porque vai interferir no comportamento reprodutivo.

Na sociedade brasileira, específicamente em Curitiba, em pesquisa realizada com mulheres de baixa renda e de camadas médias, sobre o planejamento familiar, percebemos que esta dominação tem um papel significativo no entendimento do processo de reprodução humana. Assim, no trabalho realizado com as mulheres de baixa renda, sexo e reprodução se apresentam de modo diferente para o homem e para a mulher, na vida conjugal. Algumas relacionam sexo a reprodução, logo, a figura masculina torna-se secundária, pois na sua representação casar é ter filhos. Outras além dos filhos, entendem que a presença do homem no casamento lhes dá segurança e o respaldo sobre a sua sexualidade. Há ainda, o caso daquelas que pensam o casamento sem filhos, pois, eles só atrapalham. Para os homens, segundo a representação das mulheres, o casamento é entendido como o espaço legal para a sua sexualidade independente das conseqüências destes, tanto que não se preocupam com o papel tradicional de provedor. As mulheres justificam o comportamento masculino porque o homem não cumpre função biológica na gestação, parto e amamentação. A construção cultural da paternidade não tem a mesma força social que a construção cultural da maternidade, fundamentada na biologia. O peso dos filhos recai sobre as mulheres porque elas os geram e de acordo com os valores sociais, tornam-se, resposnáveis por eles. Passam a entender por isso que lhes cabe o controle do número de filhos. Entretanto, controlar a natalidade não é uma resolução individual, porque o marido interfere nesta decisão embora não assuma a prole. A concepção se torna uma questão masculina no sentido de que o ato sexual tem que ser realizado quando o parceiro deseja; e a gravidez consecutiva não é problema para ele, ao contrário, controla a sexualidade feminina, reafirma publicamente a sua virilidade e ainda justifica as suas atividades extra conjugais.

As mulheres que no casamento relacionam sexo a reprodução assim o justificam: ou porque o convívio com o parceiro revelou a impossibilidade dele atender as expectativas de provedor, protetor, companheiro e pai responsável; ou porque fica muito claro na sua representação que a família se limita a mães e filhos, onde o homem pode ou não estar constantemente presente. Por outro lado, as mulheres que vêem no casamento não só os filhos, mas também a importância do marido, refletem o contexto social, no qual não só a sexualidade, mas a própria respeitabilidade da mulher, exige a presença de um homem, ainda que não seja o marido ideal. Tanto mulheres com mais tempo de casamento, como as mulheres de uniões mais recentes reproduzem este padrão da sociedade. Assim, por exemplo, uma informante que se casou com 22 anos e teve 12 filhos, sempre trabalhou para criá-los sem contar com o apoio do marido. Hoje com 48 anos continua com o marido, apesar de alcoólatra e só trabalhando ocasionalmente.

A terceira situação remete às mulheres que trabalham fora do lar e entendem que os filhos representam um impedimento para executar estas atividades do modo que desejam. Isto não significa que as mulheres com filhos não desenvolvam atividade fora do lar. Elas são faxineiras, cozinheiras, domésticas, etc. porém não consideram os filhos como atrapalho por que o seu trabalho é viabilizado pela presença de outras mulheres: avós, filhas e/ou enteadas agregadas a unidade familiar que assumem a responsabilidade do cuidado da casa e das crianças.

Em qualquer das situações referidas elas esperam encontrar no homem o príncipe encantado, protetor responsável por mulheres e crianças. Embora tal expectativa raramente seja correspondida por pai, irmão e marido não significa que as mulheres eliminem esta idéia que tem raízes profundas em nossa cultura.

A questão da reprodução permeia o universo feminino e masculino com significados diversos. No primeiro caso, a mulher que tem que ter filhos porque é o que a sociedade espera dela, isto é, não pode ser figueira seca. No caso dos homens, a reprodução é necessária como prova de sua virilidade ao mesmo tempo que mulheres que tomam pílulas são "frias". Estas concepções simbólicas jogam com as funções macho e fêmea, ora colocando-as no plano da natureza, ora colocando-as no plano da cultura. Assim, homem e mulher cumprem na sociedade estas funções as quais são apropriadas e complexamente reelaboradas pela cultura, como um fenômeno menos natural.

As representações sobre sexo e reprodução na construção da identidade masculina interferem profundamente no cotidiano das mulheres. Elas vivem a contradição de controlar a natalidade com o uso de contraceptivos e por isso deixarem de ser reprodutoras e ao mesmo tempo tornarem-se imprestáveis para o sexo, na perspectiva da cultura. Assim não controlam de maneira efetiva a fecundidade, fazendo-o de forma irregular, inviabilizando o controle da natalidade. A sociedade se apresenta também contraditória pois ao mesmo tempo que espera que os casais tenham filhos, critica aqueles que têm muitos.

Pode-se dizer, portanto, que o comportamento reprodutivo das mulheres pesquisadas ocorre em contextos distintos. O primeiro, tradicional, onde predominavam os métodos naturais, curandeiras atuavam nas práticas abortivas e reprodução era responsabilidade quase que exclusiva das mulheres. Simultaneamente, o conhecimento inadequado das práticas de controle artificiais tornam as mulheres imprestáveis para a vida sexual, interferiam profundamente na reprodução. Acrescente-se ainda a relação de dominação/subordinação entre o homem e a mulher principalmente na vida sexual. Todas essas variáveis compõem de uma certa forma o contexto tradicional delineando o comportamento reprodutivo onde o controle e o planejamento se tornam difíceis. O segundo contexto, isto é, o contexto social das mulheres mais jovens atingido pela modernidade, se caracteriza pelo desenvolvimento da indústria farmacêutica, a ampliação do mercado consumidor dos contraceptivos, o avanço técnico-científico dos métodos artificiais, a simultânea divulgação de alguns deles, o acesso ao atendimento médico e a ênfase nas questões demográficas como causadoras da pobreza. Apesar destas inovações persistem ainda as interpretações populares do uso destes métodos e a relação de dominação homem-mulher, o que torna o contexto moderno muito contraditório. Alguns métodos artificiais como a vasectomia, laqueadura e o diu, encontram uma certa resistência, enquanto a pílula, igualmente um método artificial e moderno é amplamente utilizada. Há, sem dúvida mudanças no comportamento reprodutivo decorrentes das transformações verificadas no contexto social.

Percebe-se então que ambos os grupos de mulheres, em momentos diferentes foram atingidos pela modernidade dos métodos contraceptivos, mas continuam fazendo uso tanto dos naturais como dos artificiais. As mulheres mais velhas passaram a fazer uso dos contraceptivos artificiais num período avançado do processo reprodutivo, tornando-se mais difícil sua prática. As mulheres mais jovens iniciam a atividade sexual e a reprodução já se utilizando do contexto da modernidade o que lhes permite pensar o controle da natalidade. Contudo embora façam uso com mais facilidade e freqüência da pílula não empregam os demais métodos artificiais modernos. Nestas mulheres, o controle e/ou a redução da natalidade vem se acentuando, porém continuam esbarrando nas contradições culturais da construção do gênero masculino e feminino.

Na pesquisa realizada com as mulheres das classes de renda média, também tomando como referência a questão do comportamento reprodutivo, é possível identificar dois grupos: as mulheres mais velhas, que serão nominadas como 1º grupo, iniciaram sua vida sexual de modo geral, com o casamento e a reprodução da prole aproximadamente aos vinte anos e tiveram em média quatro filhos. Elas desconheciama princípio não só os métodos contraceptivo, mas também as questões ligadas à reprodução. As mulheres mais jovens, ou seja, do 2º grupo, iniciaram a vida sexual antes do casamento próximo aos 18 anos, à reprodução aproximadamente aos 22 anos de idade, tendo em média um ou mesmo nenhum filho. Embora as mulheres desse grupo conhecessem e fizessem uso dos métodos contraceptivos, desde o início da atividade sexual, nem todos os filhos foram planejados.

Todas as mulheres se apresentam de início como seres domindados no uso e no conhecimento do seu próprio corpo, seja pelo "tabu" que envolve o fenômeno da menstruação e a sexualidade; seja pela ausência do controle da reprodução.

A sociedade sabe muito bem que a menina-mulher menstruada está apta para ter filhos. Mas, a reprodução, segundo as regras sociais deve acontecer com o casamento. Assim, o matrimônio, a identidade da mulher está associada ao "ser mãe". Todas as informantes do 1º grupo tinham como ideal casar e ter filhos e como conseqüência do casamento "tendo filhos que Deus quis".

Foi o "desgaste" das gestações seguidas, o cuidado com as crianças que as fez sentir a necessidade de impedir, ou pelo menos distanciar uma gravidez da outra. Assim, após algumas gestações consecutivas fizeram uso de alguns métodos contraceptivos: tabelhinha, coito interrompido, camisinha e a prática do aborto.

O que se percebe nos depoimentos das mulheres do 1º grupo é que com a experiência do casamento, passam a conhecer e a utilizar métodos contraceptivos, embora de forma precária. Contudo, não havia uma ênfase no planejamento familiar, apesar de alguns métodos contraceptivos artificiais já existirem.

Os métodos anticoncepcionais constituíram fator fundamental na mudança do comportamento reprodutivo da mulher, pois através deles a mulher passa a domesticar sua natureza biológica, dando os primeiros passos no seu processo de liberação. Entretanto devido as construções culturais, a aceitação dos mesmos foi um processo lento e difícil.

Estas mulheres, do 1º grupo, embora representando uma época em que a divisão sexual do trabalho se caracterizava por considerar o marido como provedor e a mulher como responsável pelo lar e pela prole, desenvolveram atividades fora do lar. Atividades estas sempre pensadas como secundárias diante das atividades desempenhadas pelo marido. A exigência das atividades desempenhadas no espaço doméstico são concebidas como prioritárias, pelas mulheres. Tal percepção que não é excluisva das mulheres, se encontra consubstanciada no contexto social onde aflora primeiro sua condição de procriadora e só secundariamente de vendedora de sua força de trabalho. Assim, a condição biológica inerente à mulher é apropriada pelo modo de produção capitalista, justificando e impondo a ela uma situação marginal no processo produtivo e simultaneamente na estrutura de classes.

Neste sentido, as mulheres do 1º grupo foram socializadas para um papel sexual, passivo, orientadas para os deveres conjugais, em especial da maternidade, pois, o sexo na sociedade brasileira é ideologicamente tratado como ligado à reprodução da espécie e vinculado à estrutura da família. Justificando tal ideologia, encontramos racionalizações que procuram enfatizar no sexo apenas a função biológica de reprodução.

A trajetória das mulheres reproduz este projeto social onde tudo que dizia respeito à sexualidade e ao sexo não deveria ser conhecido e comentado. Sua sexualidade era vista como"natural", assim como a fêmea de outras espécies, ela estava a serviço do homem. Ela era um instrumento de reprodução para a espécie humana e de prazer para o homem, associada à natureza. No plano da cultura, a mulher era classificada como desprovida de sexualidade. A mulher ideal neste período não deveria conhecer "as coisas da vida". Representava no casamento um papel cujo texto desconhecia e aí, começa um longo e difícil aprendizado, o qual depende da atitude que o seu instrutor - o marido - passava a ter para com ela. É a paritr da sua prática como esposa que ela percebeu que o seu marido não era o "príncipe encantado" que idealizou.

Este intrutor oficial reconhecido pela mulher como uma grande autoridade no assunto, com longa experiência, estabelece uma relação de dominação, classificando-a como adequada ou não para a vida sexual. Se esta mulher fosse classificada como "fria", assumiria este papel definitivamente, o que reafirmaria e justificaria as práticas extraconjugais do marido. Caso contrário, isto é se ela demonstrasse um grande interesse pelas relações sexuais, levantaria suspeitas.

As mulheres do 1.º grupo, que aceitavam o fato de que o casamento era destino feminino e mesmo que mal sucedido era ainda melhor do que o status de solteirona. "Contudo, estas mulheres na dinâmica da vida conjugal, vivenciando alterando o seu comportamento sexual. Tal percepção se dá principalmente, no processo de socialização das filhas.

As filhas, portanto, 2.º grupo de mulheres sofreram um processo dife- rente de socialização e foram em graus variados atingidas pelas idéias modernas de "ser mulher". Estiimuladas pelos pais a ter uma vida profissional e não apenas preparar-se para o casamento, a mulher passa freqüentar a universidade, trabalhar na indústria, comércio e serviços. Concomitantemente, questiona a autoridade dos pais e os valores tradicionais. Esta modernidade continua, contudo, apresentando contradições e conflitos. A sexualidade aparentemente liberada das jovens-mulheres, encontra-se simultaneamente sujeita aos valores novos e tradicionais em que foram socializadas.

Algumas mulheres do 2.º grupo, embora conhecedoras dos métodos anticoncepcionais, tiveram logo após o casamento o seu único filho. A maternidade, para este grupo de mulheres é entendida como limitadora da sua individualidade, criando conflitos na relação entre o marido e a mulher. Na tentativa de evitar a perda da individualidade, algumas mulheres deste grupo planejam não ter filhos. Para as mulheres que tiveram prole, ainda que reduzidíssima, a maternidade interferiu nas relações do casal, porque interfere também na questão do corpo. O fato de ter um único filho, padrão da maioria destas mulheres entrevistadas, também é conflituoso, quando ela se remete a família de origem, cuja média é de quatro filhos. Há uma espécie de crise de consciência entre a sua nova postura e o valor que a família de origem dá a prole. Estas moças se casaram conhecendo todos os métodos contraceptivos naturais e artificiais, e se utilizaram preferencialmente dos anticoncepcionais orais e injetáveis. Após o nascimento do primeiro filho continuaram se utilizando dos métodos contraceptivos.

A decisão pela laqueadura, neste grupo é uma opção das mulheres, diferentemente daquelas do 1.º grupo, onde a realização da cirurgia, dependia de uma indicação médica. Agora, as jovens-mulheres querem decidir sobre o seu corpo, sobre a sua sexualidade.

Analisando os dados da pesquisa, percebe-se que as mulheres mais velhas, do 1.º grupo faziam inicialmente uso de métodos contraceptivos naturais. A ineficiência destes métodos seja pelo uso inadequado, seja pela resistência masculina em praticá-los não permitiram o controle da natalidade pelas mesmas. Deste modo tiveram em média 4 filhos. Entretanto elas foram alcançadas pelos métodos modernos artificiais e assim puderam, controlar o número de filhos no decurso do casamento. As mulheres mais jovens do 20 grupo cujo início da vida sexual se deu mais recentemente, dentro de um contexto técnico e informativo muito mais eficiente, diminuíram, consideravelmente, a prole.

A proteção fornecida pelos anticoncepcionais permite uma gama de comportamentos sexuais. Algumas jovens assumem a sexualidade como natural, outras assumem-na de forma velada, isto é, escondem dos pais. Outras ainda, são virgens por opção. Estas diferentes práticas indicam dois caminhos para o casamento. As que optam pela liberdade sexual entendem que o exercício de sua sexualidade é condição primeira para escolha do parceiro mais adequado. As jovens-mulheres que optam pela virgindade são adeptas da escolha do parceiro por amor "sendo o sexo uma decorrência deste. Em qualquer das situações o casamento já não é pensado como definitivo: ele é eterno enquanto durar". A possibilidade de romper uniões formais tornou-se possível para estas mulheres pela sua inserção no mercado de trabalho, o que lhes dá autonomia financeira. Estas, associadas a facilidade de controlar a natalidade altera os padrões tradicionais de casamento.

A mulher moderna, do 2.º grupo continua gestar, parir, amamentar e criar o filho do mesmo modo que as mulheres do 1.º grupo sempre o fizeram. Apesar do novo contexto, o trato com a criança e o cuidado com a casa continuam tomando-lhe grande parte do tempo. Este trabalho doméstico, cuidar da prole, lavar, passar, cozinhar, desenvolvido pelas mulheres embora fundamental na sociedade, não é reconhecido como tal. A própria mulher assume que esta atividade não é trabalho, porque aprendeu que somente a atividade remunerada o é.

Comparando os dois universos, as mulheres de baixa renda e as de renda média, pode-se concluir que apesar da diversidade dos segmentos pesquisados, as regras sociais têm valor significativo na reprodução humana, porque interferem no controle da natalidade. Assim, a dominação da mulher seja no aspecto social, seja no aspecto sexual é uma das variáveis mais importantes nesta questão. Decorrente desta, outras se colocam: por um lado, a maternidade se apresenta como valor fundamental na construção da identidade da mulher; e por isso, a sociedade internaliza em seus membros a idéia de que as mulheres devem casar e procriar. Tanto que sexo se encontra associado a reprodução. Daí decorre no imaginário social que os métodos anticoncepcionais prejudicam o desempenho sexual: seja pelo uso da pílula e da laqueadura nas camadas de baixa renda ou seja a vasectomia nas camadas de renda média. Por outro lado, a virilidade se afirma através de gestação e do número de filhos da parceira, o que reforça a idéia de mulher como sinônimo de mãe. Além destas questões culturais, também interfere no comportamento reprodutivo o uso inadequado e o acesso limitado aos contraceptivos.

Pode-se dizer que embora os contracptivos tenham sido instroduzidos no mercado e o seu conhecimento tenha-se vulgarizado para toda a sociedade, isto não resolveu o problema do controle da natalidade ou do planejamento familiar, porque entre os processos técnicos e a clientela existem as variáveis culturais acima referidas, bem como as condições sócio-econômicas da sociedade brasileira.

Para o Estado, o planejamento familiar tem sido tratado como uma questão política, e/ou de saúde pública, sendo muito discutido teoricamente, mas, de fato, pouco viabilizado, no sentido de propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito. Assim, o serviço público não oferece a oportunidade para os casais que desejam realizar cirurgias como a laqueadura e/ou vasectomia. Enfim, não assume uma política clara de controle da natalidade, embora paradoxalmente tenha apoiado oficiosamente instituições internacionais e iniciativas privadas de planejamento familiar e de controle da natalidade que divulgaram e introduziram métodos modernos de contracepção. O que se verifica, no entanto, é que independente dos programas oficiais, várias pesquisas confirmam através de estudos estatísticos que as mulheres estão fazendo uso dos métodos contraceptivos numa escala crescente, o que explica a redução da natalidade. Porém, o controle da natalidade e o planejamente familiar continua sendo, uma questão cultural que passa pela Biologia.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Mar 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 1995
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