Acessibilidade / Reportar erro

Apresentação

DOSSIÊ

SINDICALISMO DOCENTE: EXPERIÊNCIAS, LIMITES, DESAFIOS E PERSPECTIVAS

Apresentação

Hyman (2004) afirma que um sistema de relações de trabalho é sempre um campo de tensão entre forças de mercado e normas sociais que procuram desmercantilizar o trabalho. Se este é um raciocínio válido para se compreender as relações de trabalho na área privada, sua transposição para a análise das relações de trabalho no setor público é, não apenas possível, mas totalmente pertinente, desde que façamos as mediações metodológicas necessárias para diferenciar em que consistem as características do trabalho no setor privado, regulado pelo contrato, e no setor público, regulado pelo estatuto (SUPIOT, 1995). Como um campo de tensão entre forças, o sistema de relações de trabalho no setor público contrapõe diferentes atores sociais que disputam, continuamente, os sentidos sociais, os enquadramentos jurídicos, os patamares de remuneração e as perspectivas de valorização profissional.

Esta contínua tensão que existe no sindicalismo de docentes e demais trabalhadores, um dos polos do conflito, tem ficado mais explícita no cenário público, no caso brasileiro, desde a aprovação da valorização do magistério como princípio constitucional (artigo 206 da Constituição Federal de 1988). Assim, as condições do trabalho em educação são, sincronicamente, resultado da organização política e da capacidade mobilizatória de professores e demais trabalhadores da área e base para a execução de uma educação de qualidade. Diante disso, para compreender criticamente o processo se faz necessário articular, ao menos, três campos de saberes - o campo do sindicalismo, o campo do trabalho docente e o campo da política educacional.

No primeiro campo estamos diante de um fenômeno típico da sociabilidade e do conflito político no interior do capitalismo ocidental: o sindicalismo, com sua força de resistência e sua capacidade de gerar cidadania no interior do processo civilizador moderno (ELIAS, 1994). Assim, compreender as organizações sindicais não apenas como um grito messiânico pelo coletivismo em um mundo cada vez mais individualizado se faz necessário. É preciso trazer à superfície, tanto a funcionalidade do sindicalismo na estruturação de pactos democráticos - sempre muito instáveis, devido à instabilidade do próprio sistema capitalista - que minimizam o processo de mercantilização do trabalho, como seu papel central em diversos movimentos emancipatórios do ocidente (ESTANQUE, 2005).

Quanto ao campo do trabalho docente, o desafio teórico e prático é desvendar como a organização do trabalho na escola influencia a construção da identidade coletiva e subjetiva do professor e da professora, assim como o seu reconhecimento social. Nessa empreitada não se pode perder de vista as reformas empreendidas na década de 1990, que deixaram marcas profundas no sistema educacional e consequentemente no trabalho docente; assim como não se pode desconsiderar que a primeira década dos anos 2000 recompõe lutas e tensões a partir do caldo daquelas reformas.

Por fim, o campo da política educacional constitui-se como um dos espaços estruturantes da ação social, na exata medida em que limita formal e legalmente os princípios que conferem legitimidade e sentido à movimentação dos atores sociais (TELLES, 1999). Mas, sincronicamente, é o conteúdo da própria disputa, pois, em última instância, define que modelo educacional, e, por consequência, que promessas de futuro um país projeta para si mesmo.

Para enfrentar tal objetivo, este dossiê reuniu produções sobre o tema sindicalismo e associativismo docente - e suas interfaces com o trabalho e a política educacional - no contexto atual brasileiro e de alguns outros países da América Latina. A articulação entre os diversos artigos que o compõe se estrutura sobre o pressuposto que a vinculação entre os três campos anteriormente citados - sindicalismo, trabalho docente e política educacional - não é apenas mais uma forma metodológica de se apropriar do mundo social, mas fundamentalmente uma imposição empírica do próprio objeto. Pois, apesar de, a la Weber (1994) - aqui pensamos nos tipos ideais - podermos captar, teórica e isoladamente, as diferentes racionalidades dos campos (isso pode ser útil e produtivo em muitas ocasiões), no objeto social essas racionalidades sempre se misturam. Assim, a ação de um ator social sempre contém um conjunto amplo de racionalidades.

É por essa razão que, para permitir uma tomada mais ampla da questão sindical e dos desafios do serviço público no campo das disputas pelo modelo de Estado, questões que são pertinentes especificamente ao sindicalismo docente do setor público, o dossiê começa com um debate sobre a crise do estado e os desafios sindicais no contexto europeu. A tomada não é gratuita, nem tampouco reflete qualquer tipo de mentalidade colonial em que sempre se paga um tributo ao colonizador. Apenas reconhece a importância histórica do desenvolvimento de um modelo de relação social que contrapõe três atores sociais - capital, trabalho e Estado - mas que é capaz de produzir pactos sociais amplos, que permitem significativo grau de coesão e estabilidade social. Esse modelo tem origem no território europeu, mas, como modelo, é exportado para o restante do globo através da expansão capitalista, ainda que guardando singularidades próprias em cada região ou realidade cultural, em função da seletividade do processo civilizador moderno (SOUZA, 2000).

Assim, o primeiro artigo, de autoria de Elísio Estanque, trata dos desafios do sindicalismo contemporâneo à luz da realidade Europeia, em especial no contexto português. Mas, a partir das tensões específicas desse contexto oferece uma visão aprofundada da complexidade que envolve as organizações sindicais imersas em transformações societárias do capitalismo do final do século XX e início do século XXI. Essas transformações redesenham o lugar da identidade laboral, descentralizam de formas diversas a intervenção do Estado Nacional na produção de políticas sociais e implicam redefinições para os movimentos de trabalhadores em geral e em especial das classes médias, contexto em que emerge o sindicalismo docente.

Se o texto de Elísio Estanque trouxe-nos a questão sindical sob a lógica de sua inserção em pactos de concertação social do processo de sociabilidade moderno - ou seja, a relação entre o sindicalismo e a política de Estado -, Sadi Dal Rosso, no segundo texto que compõe este dossiê, nos traz processos endógenos ao movimento sindical. Assim, seu texto nos coloca diante do amplo esforço político, que é estruturalmente necessário para o movimento sindical vencer as diversas tensões, geradas pelo sistema capitalista, que induzem à fragmentação da classe trabalhadora. Mas Dal Rosso não empreende um amplo esforço teórico para nos abandonar em um mundo abstrato do sindicalismo, sem sindicatos concretos. Dessa forma seu debate sobre a fragmentação sindical é exemplificado nos desafios concretos dos docentes do ensino superior e da recente legislação brasileira que impulsionou o aparecimento de novas Centrais Sindicais. Em conjunto, esses dois textos nos proporcionam terreno seguro sobre a política de Estado e o campo do sindicalismo, possibilitando um diálogo com o campo do trabalho docente, que virá na sequência.

No caso brasileiro, como dito anteriormente, a centralidade do debate da condição docente se expressa desde a aprovação da valorização do magistério como princípio constitucional, prolongando-se até o presente. Nesse momento, tal centralidade fica mais explícita na recente aprovação de um Piso Salarial Profissional Nacional e nos intensos debates e manifestações de conflito que a seguiram, tanto nas ruas, expressos em diferentes movimentos grevistas dos professores da educação básica, como no espaço institucional dos poderes legislativo e judiciário. A reflexão acerca das formas de disputa sobre o sentido da valorização dos professores, que está sempre pressuposta no imaginário sindical, implica conhecer quem é esse trabalhador que constrói seu ofício coletivamente em milhares de estabelecimentos escolares, sob a égide de diferentes gestores e que em 2011 totalizaram quase 2,5 milhões de sujeitos.

Para isso o terceiro artigo, de autoria de Ângelo Ricardo de Souza, evidencia, a partir de dados de bases nacionais, do Censo dos Profissionais do Magistério de 2003 e da Prova Brasil 2011, o perfil do trabalhador docente na educação básica brasileira em termos pessoais, considerando condições de gênero, raça-etnia e perfil cultural; assim como em termos de condições de trabalho, considerando formas de contrato, remuneração e carga horária. A discussão sobre quem são os profissionais do magistério e em que condições trabalham, apresentada por Souza, permite um solo fecundo para a problematização das trajetórias construídas pelos sindicatos docentes, que serão exploradas ao longo dos demais artigos do dossiê.

O quarto artigo do dossiê, de autoria de Julián Gindin, nos insere no contexto sindical de professores da educação básica considerando seu desenvolvimento organizacional e sua identificação política. Dimensões que, como nos ensina Gindin, não podem ser reduzidas uma à outra, ainda que sejam dialeticamente relacionadas. Para isso o autor retoma o histórico de organização das associações docentes pré-constituição de 1988 e a expressão nacional do processo na criação da Confederação de Professores Primários do Brasil (CPPB), acompanhando as tensões organizativas até a criação da Confederação dos Trabalhadores em Educação (CNTE). O autor consegue observar, no âmbito organizativo sindical, o movimento de municipalização decorrente da conjuntura da política educacional brasileira, em especial da década de 1990, destacando a incorporação dos sindicatos municipais na entidade nacional e problematizando as relações de poder no interior da Confederação. Ao mesmo tempo, em termos de forças políticas, o autor acompanha o desenvolvimento do debate sobre as Centrais Sindicais no movimento docente. Gindin termina com uma síntese primorosa sobre a diversidade do movimento de professores no contexto federativo brasileiro. Esta síntese da diversidade permite compreender a importância dos estudos de caso que se seguem.

Os temas da diversidade e da fragmentação sindical são retomados com admirável sensibilidade empírica por Savana Diniz Gomes Melo, no quinto artigo. Em sua análise das iniciativas políticas adotadas pelo Sind-rede/BH e Sind-UTE/MG, o ponto de partida para o debate é o processo de fragmentação política do Sind-UTE/MG, que deu origem ao Sind-rede/BH. Mas dessa constatação a autora salta para uma análise detalhada das pautas de reivindicação e do discurso das duas direções. Apoiada em documentos, boletins e outros informativos, Melo compara o posicionamento dos dois sindicatos, relativo a 11 eixos: 1) Salarial; 2) Profissional; 3) Seguridade Social; 4) Saúde; 5) Relações de Emprego; 6) Condições de Trabalho; 7) Organização e Relações Sindicais; 8) Gestão da Escola; 9) Política Educacional; 10) Justiça Social; e 11) Manifestações de Conflito. Nesse manancial de informações, Melo nos evidencia a radicalidade dos posicionamentos das duas entidades, mesmo no interior de sua profunda heterogeneidade, e revela, com esse ato, o amplo laço social que prende qualquer direção sindical aos interesses de sua base de trabalhadores e trabalhadoras. Em outras palavras, na fragmentação, a autora encontra a semelhança da representação do elo frágil do sistema capitalista: o trabalho.

O sexto texto, assinado por Andréa Barbosa Gouveia e Marcos Ferraz, parte de características do sindicalismo docente brasileiro - que são reconstruídas a partir de uma releitura histórica do movimento - para, apoiado em entrevistas com dirigentes de sindicatos de diferentes cidades, analisar a tensão entre interesses corporativos e preocupação com os rumos da política educacional. Assim, o ponto zero é a concomitância entre corporativismo e disputa da política educacional, a coexistência entre entidades representativas de interesses corporativos e generalistas, e a diversidade de representação, assim como a mútua influência entre os polos dessa equação. Mas o ponto de chegada não é simples constatação descritiva desses pressupostos. Gouveia e Ferraz nos sugerem que corporativismo e disputa pelos rumos da política educacional são um fenômeno único, ainda que dual e contraditório. Assim buscam superar a visão moral do fenômeno sindical - que condena a priori os traços corporativos - para nos lançar o desafio de compreender o fenômeno sindical em seus aspectos políticos e societários, este segundo mais frequentemente esquecido.

No sétimo texto, de Maria Dilnéia Espíndola Fernandes e Margarita Victoria Rodriguez, novamente poderemos encontrar diversidade, fragmentação e particularidades na organização local. As autoras compõem um interessante mosaico entre a criação do estado do Mato Grosso do Sul e a organização da associação e depois sindicato de professores de Campo Grande (ACP), assim como da criação da Federação dos Trabalhadores do Mato Grosso do Sul (FETEMS). Explorando aspectos da história política local, eivada de especificidades pela forma autoritária em que os estado é criado em plena ditadura militar, Fernandes e Rodriguez iluminam a compreensão sobre as forças que organizam a defesa corporativa dos professores e seus impasses internos, assim como a estrutura associativa/sindical. Mas as autoras também detêm um olhar sobre os desafios dessas entidades para responderem às conjunturas da política educacional. A organização peculiar do Mato Grosso do Sul, que tem um movimento docente e articulado em âmbito municipal independente da rede de ensino e que se compõe em uma federação estadual, permite problematizar o encontro das bases municipalistas da estrutura sindical brasileira, com a estrutura descentralizadora da política educacional.

O último texto do dossiê, de autoria de César Tello, nos convida a mudar o olhar do contexto local brasileiro, para uma reflexão mais ampla. Tello apresenta a realidade organizativa e política de sindicatos docentes em três países latino-americanos: Chile, México e Argentina. A primeira parte do texto faz uma reconstrução do cenário político dos anos de 1990, a partir do discurso dos principais atores sociais envolvidos nos conflitos educacionais. No entanto, é na segunda parte de seu texto que o autor nos presenteia com apurada análise sobre as relações entre organização sindical e política educacional. Ao descrever a trajetória do Colegio de Profesores do Chile, do SNTE1 1 Sindicato Nacional de Trabajadores de la Educación. do México e da CTERA2 2 Confederación de Trabajadores de la Educación de la República Argentina. da Argentina, Tello nos faz uma demonstração sobre como laços políticos necessários, em determinadas conjunturas, moldam o comportamento político e mobilizatório dos sindicatos. Assim, mesmo diante do mesmo cenário político neoliberal, nos anos de 1990, as ações dos sindicatos assumem práticas e conteúdos diferentes. No Chile, o longo tempo da ditadura aproximou professores e outros atores políticos em uma luta comum pelo retorno da democracia, mas significou, nos anos de 1990, uma atitude mais colaborativa e negociadora. Quanto ao caso mexicano, os longos anos de proximidade política entre o SNTE e o PRI institucionalizaram-se a tal ponto que as oligarquias sindicais e de governo colocaram seus interesses pela manutenção do poder sempre em primeiro plano, secundarizando a luta pelas condições de trabalho dos professores. Por fim, o tardio protagonismo dos professores argentinos liberou-os de laços institucionais mais rígidos, impulsionando uma oposição mais radical nos anos de 1990 e, mesmo, uma oposição, ainda que mais branda, aos governos kirchneristas.

Se os olhares sobre a diversidade brasileira nos permitem conhecer quem somos, o olhar sobre outras experiências pode nos ajudar a pensar sobre quem queremos ser. Assim, com a perspectiva de ampliar a reflexão sobre a política educacional, a partir da organização e da política sindical, apresenta-se, finalmente, a resenha elaborada por Maurício Estevam Cardoso sobre o livro de Adriana G. Migliavacca, intitulado La protesta docente en la década de 1990: experiencias de organización sindical en la provincia de Buenos Aires, em que a rica experiência argentina é explorada em diversas facetas.

Convidamos todos a aproveitar a reflexão!

Curitiba / Dourados / Belo Horizonte, verão de 2012.

Andréa Barbosa Gouveia

Marcos Ferraz

Savana Diniz Gomes Melo

  • ELIAS, N. O processo civilizador - vol. 2. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.
  • ESTANQUE, E. A reinvenção do sindicalismo e os novos desafios emancipatórios: do despotismo local à mobilização global. In: SANTOS, B. S. Trabalhar o mundo: os caminhos do novo internacionalismo operário. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
  • HYMAN, R. Europeização ou erosão das relações laborais? In: ESTANQUE, E. et al. Relações laborais e sindicalismo em mudança: Portugal, Brasil e o contexto transnacional. Coimbra: Quarteto, 2004.
  • SOUZA, J. A modernização seletiva Brasília: Ed. UnB, 2000.
  • SUPIOT, A. A crise do espírito de serviço público. Adverso. Revista da Associação de Docentes da UFRGS, ano V, n. 7, jul. 1995.
  • TELLES, V. S. Direitos sociais: afinal do que se trata? Belo Horizonte: UFMG, 1999.
  • WEBER, M. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva - vol. 1. Brasília: Editora UnB, 1994.
  • 1
    Sindicato Nacional de Trabajadores de la Educación.
  • 2
    Confederación de Trabajadores de la Educación de la República Argentina.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Jul 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013
    Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná Educar em Revista, Setor de Educação - Campus Rebouças - UFPR, Rua Rockefeller, nº 57, 2.º andar - Sala 202 , Rebouças - Curitiba - Paraná - Brasil, CEP 80230-130 - Curitiba - PR - Brazil
    E-mail: educar@ufpr.br